Fenômeno da inspiração

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Cem anos depois de sua morte, Ellen White ainda é a personalidade mais influente do adventismo

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Em seus 70 anos de ministério, Ellen White falou e escreveu sobre virtualmente todos os assuntos de interesse para a igreja e os cristãos. Foto: Ellen G. White Estate / Arte: Eduardo Olszewski

Se você viajasse cem anos de volta no tempo, em direção a Santa Helena, na Califórnia, poderia testemunhar o fim de uma era e o início de outra na história de um movimento destinado a mudar a maneira de muita gente ver Deus, o Universo, o estilo de vida, o conflito entre o bem e o mal, o labirinto das ideias religiosas e o fim do mundo.

Às 15h40 de uma sexta-feira, dia 16 de julho de 1915, aos 87 anos, chegou ao fim a longa jornada de 70 anos de ministério de Ellen Gould (Harmon) White, “uma das mulheres mais notáveis do século 19”, no dizer de Jerry Moon e Denis Kaiser na enciclopédia de quase 1.500 páginas escritas em memória dela. De acordo com seu filho William, a morte da matriarca foi como uma vela se apagando. “Eu sei em quem tenho crido”, ele pareceu ouvi-la dizer.

Contudo, o tempo não apagou a memória nem a influência dela. Ao contrário, em 2014, a revista Smithsonian a classificou como uma das cem personalidades mais importantes da história norte-americana, num seleto grupo de apenas 11 pessoas na categoria de figuras religiosas. E, enquanto se multiplicam teses sobre seus conceitos, simpósios continuam a marcar o centenário de seu adeus. Se cem anos costumam ocultar a maioria absoluta dos nomes na irrelevância da obscuridade, no caso de Ellen White fizeram sua história brilhar ainda mais. “A mulher que uma vez gritou ‘Glória!’ diante da visão do céu conquistou sua própria glória na Terra”, comentou Jonathan Butler na obra Ellen Harmon White: American Prophet, lançada no ano passado pela editora da Universidade de Oxford.

Para muitos adventistas, foi difícil acreditar que estava sendo virada a última página do livro da vida da mensageira do Senhor. Alguns achavam que ela permaneceria viva até a volta de Jesus. Porém, os sinais de fraqueza já vinham sendo notados. No dia 25 de fevereiro de 1915, William White havia anunciado na Review and Herald que sua idosa mãe, com a memória já vacilando, havia caído e fraturado o fêmur.

Uma celebridade como Ellen White não podia ser sepultada sem múltiplas despedidas. Por isso, foram programados três funerais. O primeiro, mais informal, foi realizado no domingo à tarde, 18 de julho, no gramado de Elmshaven, sua última residência. Levada de trem para Richmond, na Califórnia, onde estava sendo realizada uma reunião campal, cerca de mil pessoas participaram de outro funeral na segunda de manhã, dia 19. À tarde, ela foi transportada para Chicago, de onde seria levada para Battle Creek, local da terceira cerimônia, a 3.600 km de Richmond.

No sábado, 24 de julho, desde as 8h da manhã, 3 mil pessoas se acotovelaram na igreja do tabernáculo para se despedir da irmã White (na realidade, mais mãe do que irmã), enquanto pelo menos mil ficaram do lado de fora. A cerimônia começou às 11 horas. Música e oração antecederam a longa biografia apresentada por Arthur Daniells, presidente mundial da igreja, e o sermão de Stephen Haskell, que em 1894 havia chegado a pedi-la em casamento, quando a profetisa já era viúva. Uma longa procissão de automóveis e pessoas de muitos lugares acompanhou o féretro até o cemitério de Oak Hill, onde a mensageira repousa até que o Senhor a desperte para a imortalidade.

RETRATO

Entre esse momento e o início de sua carreira foram 70 anos de vida intensa. Os primeiros passos na vida cristã ocorreram quando a menina Ellen cresceu numa piedosa família metodista em Portland (Maine), com cerca de 12 mil habitantes na época e 66 mil hoje. Se o estilo de vida atual da cidade não combinaria com o padrão austero e vitoriano de Ellen White, o belo farol da cidade portuária, inaugurado em 1791 e talvez contemplado muitas vezes por ela, serviria de símbolo da luz menor que a profetisa espalhou para guiar milhões à luz maior, a Bíblia.

Nascida em 26 de novembro de 1827 perto da cidadezinha de Gorham, Maine, Ellen veio ao mundo ao lado da irmã gêmea Elizabeth (Lizzie). Seus pais, Robert e Eunice, que já tinham dois filhos e quatro filhas, eram muito religiosos e exerceram uma boa influência na vida da menina. Três filhas deles se casaram com pastores. Eunice Gould Harmon, uma mulher de caráter e princípios, tinha capacidade de pensar de forma clara e rápida, o que “a tornou uma firme e sábia disciplinadora”, como observaram Moon e Kaiser. Robert Harmon, alternando-se entre a atividade na fazenda em Poland e Gorham e o negócio de chapéus em Portland, mostrou a importância do trabalho sério.

Ellen não cresceu numa família literária, mas tinha uma ambição muito grande de estudar. Contudo, em dezembro de 1836, seu sonho foi interrompido subitamente por um acidente trágico. Ao voltar da escola, Ellen, Lizzie e uma amiga foram hostilizadas por uma colega mais velha. Diante da ameaça, as três, seguindo o conselho dos pais, procuraram ir para casa o mais rápido possível. Porém, a menina jogou uma pedra na direção delas. Quando Ellen olhou para trás, a pedra acertoulhe a face em cheio. Nocauteada, rosto ensanguentado, ela perdeu os sentidos. Levada para casa, passou três semanas em estado semiconsciente.

A menina ficou tão desfigurada que o pai, ao voltar de viagem, não a reconheceu. O acidente afetou-lhe a autoestima. Anos depois, a adolescente carente de relacionamentos sociais olhava-se no espelho e sofria com a imagem contemplada. A ideia de conviver com aquela face parecia-lhe insuportável. Desejou morrer, mas não podia fazê-lo estando despreparada.

Durante a década de 1830 e o início dos anos 1840, acompanhada da família, Ellen frequentava a igreja metodista da rua Chestnut, a maior da denominação no Maine. A igreja tinha uma boa biblioteca com livros para crianças, inclusive alguns sobre uma menina chamada Ellen. Fascinada por boa literatura, nossa personagem leu muitos desses livros, mas as histórias idealizadas a deixavam deprimida, pois imaginava que jamais conseguiria alcançar tal nível de perfeição e santidade. Seu medo de perder a salvação só se dissiparia quando, após algumas crises, em momentos diferentes, ela passou por um processo de conversão, e a noção de justificação pela fé começou a ganhar moldura na mente da adolescente.

Em 1842, mesmo depois de estar se preparando para o batismo e ter se tornado uma ardorosa fã da mensagem de Guilherme Miller, que visitara Portland duas vezes, ela ainda lutava com o medo de não estar preparada para a volta de Jesus, especialmente porque a ideia do tormento eterno espalhava em seu coração o terror de um Deus tirano que sentia prazer “na agonia dos condenados”. A descoberta posterior de que a alma não é imortal e de que os ímpios não vão queimar no fogo do inferno para sempre foi um alívio indizível. Finalmente, ela havia descoberto a face amorosa de Deus, que a aceitava sem julgar sua própria face.

A ênfase no amor de Deus marcaria algumas de suas obras mais importantes. As palavras “Deus é amor” estão na abertura e no encerramento de sua obra magna, os cinco volumes da série Conflito dos Séculos. Como uma moldura para seu pensamento, essas palavras iniciam Patriarcas e Profetas e, mais de 3.500 páginas depois, fecham O Grande Conflito. Para a autora, o aspecto central do conflito cósmico é o caráter de Deus, expresso em sua lei de amor, que resume o estilo divino de exercer o poder.

Batizada nas águas do Oceano Atlântico, em 26 de junho de 1842, Ellen estava pronta para seguir seu Salvador com grande dedicação. No entanto, à medida que o dia marcado para a volta de Jesus se aproximava, ela ainda se preocupava com seu processo de santificação, tema enfatizado na Igreja Metodista. Foi nessa época que, notando a ansiedade da filha, Eunice Harmon a enviou para falar com o pastor Levi Stockman. “Ellen, você é apenas uma menina”, ele ponderou. “Sua experiência é muito singular para alguém da sua idade. Jesus deve estar preparando você para uma obra especial.” Sem dúvida, estava.

A mensagem milerita da segunda vinda de Cristo, cronometrada para ocorrer primeiramente em 1843 e depois em 22 de outubro de 1844, encheu de alegria o coração da jovem Ellen. Mais tarde, ela descreveria esse período como “o ano mais feliz de minha vida”. No entanto, o dia 22 chegou e se foi sem que os 50 a 100 mil mileritas, liderados por dezenas de ministros atraídos de várias denominações, pudessem ver a glória de Jesus nas nuvens. A decepção foi tão grande que, no restante da noite, as lágrimas incharam os olhos de muitos e banharam a “pedra da ascensão”. Ellen também chorou.

No cenário pós-desapontamento, surgiu um emaranhado de crenças sobre a volta de Jesus. Até o clareamento das ideias, foram muitas horas de estudo profundo e intensa oração. Ellen participou desse período e, mesmo com as novas descobertas, reposicionando 22 de outubro como a data da mudança de fase no ministério de Cristo no santuário celestial, não deixou de crer no iminente segundo advento literal. Mais tarde, contra os espiritualizadores, ela pintaria um quadro literalista e esplendoroso das realidades celestiais e da volta de Cristo.

Ellen nunca perdeu o senso de urgência. Com o olhar fixo no céu, nutria uma expectativa inabalável na proximidade da segunda vinda. Para ela, se a igreja houvesse cumprido seu papel em advertir o mundo, Cristo já poderia ter voltado. Deus é soberano em seus propósitos, mas interage com as variáveis humanas. Na perspectiva dela, está em nosso poder apressar o aparecimento do Filho do Homem nas nuvens para pôr fim à história de pecado e à miséria do mundo.

Jonathan Butler observou: “Cada página que Ellen White escreveu e cada sermão que pregou estimulavam os adventistas ao mais alto grau moral possível no preparo para a vinda de Cristo. E, como era típico do período, fez isso ao abraçar a moral com mais ardor do que a teologia, o aspecto experiencial acima do ideológico.”

Em vez de elaborar um sistema teológico, diz Butler, Ellen escreveu testemunhos, apresentando “o adventismo como uma história épica” na série Conflito dos Séculos, e não “um conjunto de ideias”. Na verdade, nos escritos dela, um coerente e sofisticado sistema de crenças convive lado a lado com uma forte experiência de fé. Em grande parte por influência de Ellen White, o adventismo combina a excelência da razão bíblica e o melhor do coração religioso. Familiar com o estilo metodista, mesmo condenando o fanatismo e o desequilíbrio, ela não se acanhava de dizer: “Glória! Glória! Glória!”

Embora muitos mileritas considerassem o casamento uma iniciativa imprópria em face do iminente regresso de Cristo, Ellen acabou se unindo, no dia 30 de agosto de 1846, a um pregador oriundo da Conexão Cristã chamado James (Tiago) Springer White. Ao lado de outras pessoas, ele já vinha acompanhando Ellen em suas viagens para falar de suas visões. O enlace sugeria que a vida na Terra continuaria, mas era melhor enfrentar a crítica de falta de fé do que de mau comportamento.

A parceria no amor e no ministério não poderia ter sido melhor, apesar da personalidade forte dos dois e de alguns desentendimentos. Afinal, um presidente da Associação Geral multitarefa e uma profetisa determinada viajando juntos 24 horas por dia não deve ter sido fácil. Mas o casamento se sustentou porque era nutrido por um amor sincero, um objetivo comum e um propósito maior do que os dois: a missão de preparar um povo para se encontrar com Jesus.

Ellen não seria Ellen White sem Tiago. Em seu livro The Prophetess of Health, Ronald Numbers destacou o papel do casal: “O adventismo do sétimo dia não seria o mesmo sem Ellen White; ele não existiria sem Tiago.” A união durou até 1881, quando, precocemente, ele morreu aos 60 anos. Parecia que ela não suportaria a perda, mas a graça divina e outras pessoas a ajudaram a prosseguir. Vida dividida ao meio, Ellen ficou casada por 35 anos e viúva por 34.

AMBIENTE

Ellen White transcendeu seu contexto, pois tinha uma mensagem eterna para proclamar, mas não deve ser entendida como alguém de outro mundo. Em certo sentido, ela foi uma mulher de sua época, usando as roupas do momento, abordando os temas do dia a dia e discutindo questões em pauta no adventismo e fora dele. Personalidade antenada nos acontecimentos, mente aguçada pela percepção do Espírito, observadora privilegiada da história, ela sonhava com a transformação da sociedade e a inauguração de outra era. Contudo, a esperança do futuro não tirava seus pés da realidade.

“A era vitoriana foi excepcional, e Ellen White também”, observou o historiador Grant Wacker no prefácio da obra Ellen Harmon White: American Prophet. “Todas as eras passam por mudanças, mas a América vitoriana testemunhou mudanças em um grau que continua sem paralelo”, escreveu. Entre outras coisas, as carroças puxadas a cavalo foram substituídas pelas locomotivas e os automóveis, a revolução industrial impulsionou a produção em massa e mudou o cenário das empresas, os relógios mais precisos possibilitaram uma consciência maior da passagem do tempo e incentivaram o senso de disciplina, o reavivamento transmitiu a ideia de um Deus mais próximo e a ênfase na moralidade e no caráter servia de régua para medir as artes e o entretenimento.

Para ele, Ellen White “não pode ser reduzida ao seu tempo, pois trouxe extraordinários ‘dons e graças’ ao seu trabalho, como diriam seus pais metodistas”, e em aspectos cruciais ela contrariou o pensamento da época. No entanto, “ela somente pode ser compreendida no contexto das realizações tecnológicas, das estruturas sociais, das pressuposições culturais e das aspirações religiosas da época”.

Por exemplo, é impossível imaginar seu sucesso sem a tecnologia das estradas de ferro e o alcance da imprensa. “Viajante compulsiva”, como define Wacker, “ela fez 24 viagens por trem de Michigan para a Califórnia.” Isso sem falar nos dois anos de giro pela Europa (1885-1887) e nos quase dez anos na Austrália (1891-1900). Escritora prolífica, inserida num adventismo dependente das publicações, ela contou com a revolução da imprensa a vapor e as novas máquinas para fabricar papel.

No contexto religioso, Ellen White foi (a)típica também. Ela era essencialmente protestante, partilhando muitos traços de sua herança metodista, que dominou o século 19, e cultivando mentalidade “antipapista”, comum na época, mas foi além da retórica protestante. Ela incorporou novos arrazoados bíblicos para explicar por que o poderio sedutor do catolicismo, com seus rituais paganizados, não combina com o evangelho e a essência do cristianismo puro. No entanto, longe de se opor a Roma por se opor, ela via um grande número de fiéis no romanismo, gente que precisava ser resgatada de Babilônia para receber o sinal de Deus. De igual modo, sentenciou que as promessas enganosas do espiritismo, com seus expedientes proibidos, não são rotas aceitáveis para a verdade. E censurou os excessos do pentecostalismo, com seus carismas divorciados da sã doutrina.

A reforma de saúde, também apregoada por muitos sonhadores da época, como Sylvester Graham, e tão necessária numa sociedade em que a medicina era mais precária do que a expectativa de vida abaixo dos 40 anos (em 1850) e num tempo em que os venenos vinham disfarçados com o nome de remédios, foi objeto de especial atenção de Ellen White. Novamente, ela capitalizou ideias e movimentos da época, mas transcendeu o contexto.

“A principal diferença entre Ellen White os reformadores de sua época era filosófica”, comenta George Knight. Ela colocou seus conselhos na moldura do conflito cósmico, aplicando-os igualmente ao dia a dia e ao preparo para o tempo do fim e ligando-os à medicina e às três mensagens angélicas de Apocalipse 14. Para White, é dever dos adventistas viver bem e levar alívio ao mundo adoecido. Suas obras nessa área, com o selo da inspiração validando conceitos e adiantando prognósticos, têm sido amplamente comprovadas pela ciência.

Ellen White tinha o Céu no coração e o coração no Céu, mas não perdia a oportunidade de falar das realidades terrenas. Vivendo à frente de sua época em vários aspectos, ela pregava um estilo de vida austero e produtivo. Sua percepção das artes e da vida era pragmática. O que contribui para a moralidade e o desenvolvimento do caráter deve ser valorizado; o que atrapalha deve ser descartado. Literalmente, seu olhar para as coisas da Terra era condicionado pelas visões do Céu.

INSPIRAÇÃO

info4-Ellen-WhiteAo longo de 70 anos, desde a primeira visão aos 17 até a morte aos 87, Deus concedeu a Ellen White cerca 2 mil sonhos e visões, que variavam de menos de um minuto a quatro horas e abrangiam uma diversidade de assuntos. As primeiras visões eram mais longas e mais abrangentes, enquanto as últimas eram mais breves e mais limitadas no enfoque.

O caminho das visões foi aberto em dezembro de 1844, cerca de dois meses depois do desapontamento. Durante um culto na casa de amigos, o poder de Deus repousou sobre Ellen, que perdeu a noção do ambiente. Foi-lhe mostrada a jornada do povo do advento para a cidade de Deus. Essa visão se encontra em Primeiros Escritos, páginas 13 a 20. No fim do relato, ela lamentou ter que voltar a este “mundo escuro”, onde todas coisas “parecem demasiadamente áridas”. “Chorei quando me encontrei aqui, e senti saudades”, revelou. “Eu tinha visto um mundo melhor, e o atual perdeu seu valor.”

Em abril de 1847, sete meses depois que o casal White havia começado a observar o sábado com base nas evidências bíblicas apresentadas em um folheto escrito por Joseph Bates, Ellen teve uma visão destacando a importância do sábado. Ela contemplou as tábuas da lei no santuário celestial e um “halo deglória” circundando o quarto mandamento, que “brilhava mais do que os outros”. Esse padrão de receber uma visão para confirmar o estudo da Bíblia e ampliar a compreensão do assunto se repetiu em várias circunstâncias.

Uma das visões mais importantes ocorreu em Ohio, na escola pública de Lovett’s Grove, em 1858. Em duas horas de visão, ela contemplou o desenrolar do grande conflito entre Cristo e Satanás, cada lado com seus anjos. Embora dois dias depois o inimigo tenha tentado tirar-lhe a vida para que ela não compartilhasse o conteúdo revelador, Deus a sustentou, e as cenas mostradas apareceram no mesmo ano nas páginas do volume 1 de Spiritual Gifts.

Em Otsego, Michigan, no dia 6 de junho de 1863, num momento em que a saúde de Tiago White e de outros líderes da obra estava em estado deplorável, Ellen recebeu uma visão estabelecendo uma conexão entre o corpo e a espiritualidade. Essa visão, ao lado de outras com a mesma tônica, deu origem não só a livros e revistas, mas também a instituições de saúde. A partir dessa data, ela sempre enfatizou a reforma de saúde e o vegetarianismo, embora sua vitória permanente sobre o apetite cárneo só tenha ocorrido nos anos 1890.

Para virtualmente todas as áreas importantes da vida e da igreja, Ellen White recebeu visões e instruções divinas. E o fenômeno de sua inspiração não se tratava apenas de alta voltagem cerebral, mas de revelações objetivas vindas do Espírito de Deus. Ela passou em todos os testes bíblicos de um profeta verdadeiro. As evidências e os frutos de seu chamado e ministério perduram até hoje.

Pelos relatos disponíveis de Tiago White, John Loughborough e outros, é possível reconstruir o roteiro de uma visão típica de Ellen White: (1) os presentes no ambiente sentiam uma forte impressão da presença de Deus; (2) quando a visão começava, ela exclamava “Glória!” ou “Glória ao Senhor!”; (3) no início, ela experimentava fraqueza, mas depois manifestava força sobrenatural; (4) ela não respirava, mas seu batimento cardíaco continuava normal; (5) às vezes, ela pontuava com exclamações a cena que lhe estava sendo apresentada; (6) seus olhos ficavam abertos, como se ela estivesse assistindo a algo; (7) sua posição podia variar, ficando sentada, reclinada ou andando, e fazia gestos graciosos; (8) ela ficava inconsciente do que acontecia ao redor; (9) o fim da visão era indicado por uma profunda inspiração, e logo sua respiração
voltava ao normal; (10) após a visão, tudo lhe parecia escuro.

Para os adventistas, conforme se lê no livro Nisto Cremos, “os escritos de Ellen White não constituem um substituto para a Bíblia”, que ocupa “posição única”. Entretanto, eles reconhecem a necessidade do dom profético, conforme escreveu a própria Ellen White em O Grande Conflito: “O fato de que Deus revelou sua vontade aos homens por meio de sua Palavra não tornou desnecessária a contínua presença e direção do Espírito Santo. Ao contrário, o Espírito foi prometido pelo nosso Salvador para aclarar a Palavra a seus servos, para iluminar e aplicar seus ensinos.”

Alguns críticos debatem sobre o grau de inspiração dos escritos de Ellen White e os empréstimos literários em suas obras. Nem precisariam fazê-lo, pois praticamente todos os tipos de questionamentos e análises foram feitos pelos próprios adventistas ao longo do tempo. Desde que Dudley Canright se tornou o pai dos críticos whiteanos, muitos outros apareceram usando o mesmo tipo de arsenal, especialmente a acusação de plágio. Porém, ela tem sobrevivido a todos. De fato, Ellen White citou muitos autores e contou com a ajuda de uma equipe de assistentes, mas fez as coisas dentro das regras da época e do seu conceito de inspiração. Esse conceito, como expresso na introdução de O Grande Conflito, vê os escritos sagrados como “uma união do divino com o humano”, mas apresentados na linguagem humana e refletindo a cultura e o estilo dos diferentes autores.

LEGADO

info5-Ellen-WhiteMovida pelo Espírito de Deus e pela necessidade da igreja, Ellen White escreveu o impressionante total de mais de 100 mil páginas. Um balanço por ocasião de sua morte indica 26 livros publicados, 200 folhetos e panfletos e 5 mil artigos, sem falar num grande número de manuscritos, cartas e diários. Hoje, só em português são 118 títulos, incluindo as meditações. Por exemplo, o livro Caminho a Cristo já foi traduzido para mais de 165 línguas e vendeu mais de 100 milhões de cópias.

Falando com a autoridade de profetisa, mas apresentando insights profundamente teológicos, ela ajudou a decifrar os meandros da história religiosa do mundo. Sua metanarrativa do grande conflito antecipou um estilo de fazer teologia valorizado na atualidade.

Antes de morrer, Ellen White tomou providências em testamento, modificado várias vezes (1891, 1901, 1906, 1909, 1912), para que seus escritos perpetuassem seu legado. O Ellen G. White Estate foi criado como expressão do desejo dela para manter a custódia de seus escritos, lidar com suas propriedades, preparar compilações de seus manuscritos e assegurar a impressão de novas traduções.

Seu testamento final, datado de 9 de fevereiro de 1912, nomeou uma comissão de cinco líderes para servirem como depositários: Arthur G. Daniells, presidente da Associação Geral; William C. White, seu filho; Clarence Crisler, um estimado secretário dela por muitos anos; Charles Jones, gerente da Pacific Press; e Francis Wilcox, editor da Review and Herald. Até hoje, a instituição procura “manter viva a visão”, como diz seu slogan.

Ao falar na cerimônia de despedida de Ellen White em Battle Creek, que já não era o centro do adventismo, mas teve a honra de sediar o adeus à profetisa, o presidente Arthur Daniells falou de sua confiança no legado que ela deixaria: “Sua voz está silente; sua pena foi colocada de lado. Porém, a poderosa influência dessa vida ativa, vigorosa e plena do Espírito continuará.” Para ele, o monumento que ela deixou “nunca irá ruir nem perecer”. Ele não se referia apenas a seu corpo literário, mas às suas contribuições em muitas áreas.

Mulher de visão, Ellen White foi também uma visionária que ajudou a estabelecer uma igreja e forjar a alma de um povo. Mensageira e profetisa, falou de muitas maneiras, pois um profeta não comunica apenas com as palavras, mas pelas ações. Suas iniciativas, decisões, elogios e censuras se tornam parâmetros para as gerações seguintes. No livro Adventism and the American Republic, Douglas Morgan afirma que Ellen White influenciou “todos os aspectos da crença e vida adventista do sétimo dia”.

Os escritos de Ellen White, que era apaixonada pela Bíblia e por Jesus, são um tesouro inesgotável. Assim como tiramos “coisas novas e coisas velhas” do depósito inspirado das Escrituras (Mt 13:52), do armazém dos testemunhos tiramos coisas para todas as necessidades. Quando o Espírito de Deus se manifesta, o resultado é tão rico que podemos explorar a mina da verdade por cem anos ininterruptos, extraindo mensagens, conselhos e conceitos, sem esgotá-la.

“A responsabilidade de minha obra é preparar um povo que subsista no dia do Senhor”, ela escreveu (Mensagens Escolhidas, v. 2). “Seja ou não poupada a minha vida, meus escritos falarão sem cessar, e sua obra irá avante enquanto o tempo durar”, acrescentou. Contudo, para obter o benefício, é necessário ler e estudar os escritos da autora inspirada. Todo esse tesouro será inútil se não for explorado. O legado de Ellen White nesses cem anos não deve ser apenas da igreja, mas de cada um; não deve ficar apenas no papel, mas ser guardado no coração e aplicado à vida.

MARCOS DE BENEDICTO é editor da Revista Adventista

Fontes

Arthur L. White, Ellen White: Mulher de Visão (CPB, 2015).

Denis Fortin e Jerry Moon (orgs.), The Ellen G. White Encyclopedia (Review and Herald, 2013).

Ellen G. White, Primeiros Escritos (CPB, 1991).

George R. Knight, Walking with Ellen White (Review and Herald, 1999).

Terrie Dopp A. Amodt, Gary Land e Ronald L. Numbers (orgs.), Ellen Harmon White: American Prophet (Oxford University Press, 2014).


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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.