Somente pela fé

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Ao se aproximar a festa dos 500 anos do movimento que revolucionou o cristianismo, saiba o que significa a justificação somente pela fé no Novo Testamento
O trabalho de Lutero foi guiado por Deus para as necessidades mais urgentes de seus dias e, por isso, devemos celebrar a Reforma. Créditos: Fotolia
O trabalho de Lutero foi guiado por Deus para as necessidades mais urgentes de seus dias e, por isso, devemos celebrar a Reforma. Créditos: Fotolia

Uma grande celebração da Reforma Protestante está se encaminhando. Desde 2008, a Alemanha vem comemorando a “década de Lutero”, cujo clímax será o aniversário de 500 anos da Reforma em 2017. Em 31 de outubro de 1517, Lutero fixou as 95 teses sobre justificação pela fé na catedral de Wittenberg. Desde então, o conceito de justificação pela fé tem sido o eixo doutrinário central da separação entre católicos e protestantes.

Como parte de esforços ecumênicos, a “declaração conjunta sobre a doutrina da justificação” (veja o documento aqui) redigida em 1999 pela Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica procurou aproximar as duas denominações ressaltando pontos comuns na interpretação dessa doutrina por essas duas tradições cristãs. Contudo, as diferenças fundamentais permanecem. Por exemplo, enquanto os luteranos advogam a justificação somente pela fé (sola fide), particularmente com base em passagens bíblicas paulinas, os católicos rejeitam a noção de sola fide. A força dessa rejeição parece residir no livro de Tiago. De fato, Lutero não apenas evitou a inclusão de Tiago na elaboração de seu conceito de justificação pela fé, mas também afirmou a incompatibilidade de Paulo e Tiago no entendimento desse conceito. Para o reformador, Tiago é de secundária importância para a compreensão dessa doutrina.

REFORMA INCOMPLETA

Nesse caso, deveriam os adventistas comemorar a iniciativa de Lutero em 1517 e afirmar com ele a crença na justificação somente pela fé? De forma concisa, a resposta é “sim, mas com ressalvas”, especialmente no que diz respeito à sua visão negativa de Tiago.

De acordo com Ellen White, os esforços de Lutero foram guiados por Deus. Ele promoveu uma verdade divina de especial importância para as circunstâncias de seus dias (O Grande Conflito, p. 120, 131, 143). Entretanto, a reforma não foi finalizada. Lutero transmitiu a luz limitada que recebeu, e os séculos seguintes testemunharam uma compreensão progressiva sobre a Bíblia (p. 148).

Como seria a combinação das vozes de Paulo e Tiago cantando uma música sobre justificação? Na opinião de Lutero, elas seriam terrivelmente dissonantes. Por isso, ele prefere ouvir o solo de Paulo. Mas o conceito de que “toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3:16, itálico acrescentado) sugere a possibilidade de um belo dueto.

Obviamente, um texto pode ser lido em diferentes níveis. No nível de terminologia ou palavras, uma rápida comparação entre Romanos 3:28 (“o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”) e Tiago 2:24 (“uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente”) parece soar dissonante. Já no nível de teologia ou conceitos, Paulo e Tiago cantam um dueto harmonioso, nem sempre em uníssono, na medida em que eles projetam suas vozes a partir de diferentes ângulos e usam palavras com ênfases distintas.

Em termos dos diferentes ângulos, uma leitura inicial de Romanos 3:28 e Efésios 2:8 e 9 em seu contexto imediato parece sugerir que Paulo estava preocupado com uma compreensão equivocada do papel das obras no contexto da salvação (obras que geram o sentimento de autoglorificação, salvação alcançada por esforços próprios). Por sua vez, Tiago (2:14-26) parece lidar com uma visão inadequada da fé no processo de salvação (uma fé que não se traduz em ações).

Isso significa que Lutero poderia usar Tiago para sustentar a noção fundamental da Reforma de justificação somente pela fé? Aparentemente, no nível terminológico, Tiago 2:24 provê uma resposta negativa. No nível teológico ou conceitual, Tiago não rejeita uma crença adequada da justificação pela fé somente, mas repudia uma crença inadequada da justificação. Isso depende do que as palavras “fé” e “somente” significam. O argumento central que leva a essa conclusão é de que em Tiago as obras são precedidas pela fé. A despeito de sua ênfase nas obras, ele mantém a preeminência da fé, o que invalida a ideia de méritos humanos na salvação.

LEITURA DE TIAGO

O capítulo 1 de Tiago fornece algumas ideias essenciais para o entendimento da discussão sobre fé e obras no capítulo 2. De acordo com 1:18 e 21, Deus “nos gerou pela palavra da verdade” (itálico acrescentado), e a palavra implantada em nós é poderosa para nos salvar e necessita ser recebida com humildade. O verso 22 sugere que essa recepção está associada com a prática da palavra, e não meramente com o ato de ouvi-la. Paulo defende a mesma ideia (Rm 2:13).

Tiago iniciou o capítulo 2 criticando um tipo equivocado de fé: a que faz acepção de pessoas (v. 1). No verso 14, ele questiona se uma fé sem obras pode salvar. O autor iniciou sua discussão em 2:14-26 com situações hipotéticas (o termo “se” aparece nos versos 14, 15 e 17). Nessas situações, ele não questionou se a fé pode salvar, mas se uma fé sem obras pode salvar. Com efeito, esse tipo de fé não constitui uma fé real nem viva, mas morta e inoperante (2:17, 20).

Na situação hipotética do verso 18, Tiago parece inicialmente contrapor fé e obras (“tu tens fé, e eu tenho obras”), mas a segunda parte do verso revela que ele está, de fato, contrapondo dois tipos de fé: o tipo sem obras (“essa tua fé”) e o tipo com obras (“com as obras, te mostrarei a minha fé”). O contexto dessa passagem sugere que as obras evidenciam que a fé é real e viva.

O verso 21 parece afirmar que Abraão foi justificado pelas obras. Todavia, o verso subsequente informa que a fé estava vividamente presente. Em 1:4, a perseverança chega à sua plenitude ou ao seu efeito completo por meio das provações. No capítulo 2, as obras de Abraão levaram sua fé a uma medida completa e perfeita. Assim, a fé precede as obras, é simultânea às obras, e sua plenitude constitui o alvo das obras. As obras evidenciam que a fé é viva e colaboram para que ela se desenvolva.

O uso que Tiago fez do Antigo Testamento em 2:21 e 23 é particularmente instrutivo. De modo curioso, em 2:23 o autor utilizou a mesma passagem (Gn 15:6) citada em Romanos 4:3. Paulo a menciona como evidência de que Abraão foi justificado pela fé, não pelas obras. Contudo, ao sugerir que Abraão foi justificado pelas obras em 2:21, Tiago não se referiu a essa passagem de Gênesis, mas ao capítulo 22 (o oferecimento de Isaque). De acordo com Tiago 2:23, as obras de Gênesis 22 foram um cumprimento da fé demonstrada por Abraão em 15:6. Assim, Tiago parece ter levado em conta um período maior de tempo em que as obras (Gn 22) evidenciam que a fé revelada por Abraão (Gn 15:6) foi real, viva e plena.

Com relação à palavra “somente”, ela ocorre no grego apenas duas vezes em Tiago. Em 2:24, o autor parece afirmar novamente a justificação pelas obras em contraposição à justificação pela fé, mas a última palavra do verso (“somente”) revela que essas obras pressupõem a presença da fé.

O outro uso da palavra (1:22) também elimina a contraposição entre duas possibilidades. Em vez da contraposição “praticantes da palavra” e “ouvintes” da palavra, o termo “somente” revela que o praticante da palavra também é um ouvinte, e sua prática é precedida pelo ouvir. De acordo com o uso do termo “somente” em Tiago, a justificação pelas obras no capítulo 2 pressupõe que elas sejam precedidas pela fé. Em comparação com Paulo, se a ênfase do apóstolo é a de que as obras são válidas apenas como fruto da fé, Tiago ressalta que a fé só é válida como raiz das obras.

Em síntese, Tiago contrapõe dois tipos de fé: a viva e a morta. Nesse contexto, seria possível afirmar que a justificação é pela fé somente? Se for a fé viva, sim. Mas isso significaria “pela fé somente”? Depende. Ao se opor ao catolicismo romano, Lutero, em sua leitura de Paulo, usou a palavra “somente” para afirmar que a única base de nossa salvação é a graça divina recebida pela fé, e não as obras humanas. Se isso significar que a fé vem primeiro e elimina qualquer noção de mérito humano, para Tiago (e Paulo também) esse uso do termo “somente” seria adequado.

Deveríamos celebrar os 500 anos da Reforma, afirmando com Lutero a justificação somente pela fé? Sim, na medida em que essa for uma fé viva.

ADRIANI MILLI, professor de Teologia no Unasp, está cursando o programa de PhD na Universidade Andrews (EUA)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.