Salvo no fogo

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Conheça a história do iraquiano que foi alcançado por Cristo e se tornou um influente teólogo e escritor adventista
Créditos: arquivo pessoal / Fotolia

Olhar sereno que revela genuína paz de espírito. Passos firmes que descansam na certeza de que “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam” (Rm 8:28).

O nome completo é Sabah Joseph Kidder, doutor Kidder para os alunos do Seminário Teológico da Universidade Andrews (EUA), onde leciona. Todos os dias, quando tem classes para ensinar, é assim: no intervalo do almoço, sozinho ou acompanhado de um amigo, é possível vê-lo em sua caminhada de oração ao redor do campus. Passando pelos prédios de apartamentos estudantis enquanto ora pelas famílias de alunos, ou viajando pelo mundo como palestrante, autor e pregador (como fez no Unasp, campus Engenheiro Coelho, no fim de janeiro do ano passado), Joseph Kidder carrega na memória a lembrança sempre presente de como Deus o conduziu através de uma experiência única de fé.

A mudança radical na sua vida começou numa tarde de verão da antiga cidade de Nínive, atualmente chamada Mosul, localizada no norte do Iraque. Ainda hoje a história de Jonas está presente na vida daquele povo, chamando-o ao arrependimento e de volta para um Deus que pode oferecer perdão e propósito. Foi a visita do primo Bashir que desencadeou uma sequência quase cinematográfica de eventos.

A primeira ideia dos primos foi jogar futebol. Porém, a diversão não foi adiante, pela falta de habilidade e interesse de Bashir. Os dois concordaram então em sair para uma caminhada. Por acidente, ou providência divina, encontraram a Igreja Adventista do Sétimo Dia onde um pequeno cartaz no muro convidava para um filme sobre a vida de Jesus. No Iraque, país muçulmano, é ilegal promover qualquer iniciativa evangelística, mas essa foi uma atitude corajosa do pastor local.

Filho de cristãos ortodoxos não muito praticantes, que iam à igreja apenas em datas especiais, Joseph e o primo acharam que aquela seria uma boa forma de passar a tarde. No fim da exibição, Joseph foi tocado pelo sentimento de que, se Jesus o amava tanto, ele precisava saber mais sobre o Salvador. Com 15 anos de idade, pediu um estudo bíblico ao pastor local. No entanto, a coragem para viver plenamente o que aprendia ainda não era suficiente. Os estudos lhe ensinaram sobre o sábado, e ele entendeu que deveria fazer uma escolha. Numa cultura em que a mudança de religião traz vergonha à família, o medo geralmente vence a razão. Enfrentando uma intensa luta interna, Joseph chegou a procurar religiosos de outras denominações, na esperança de encontrar apoio para não guardar o sábado. A busca foi inútil.

Ao procurar o pastor adventista, Joseph falou da vontade de ser batizado e do medo de perder tudo que tinha na vida. Sabendo da
importância daquele momento, o pastor lembrou-lhe a história de outros três jovens: Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. A história aconteceu a apenas 120 quilômetros dali. “Deus não os livrou do fogo, mas no fogo”, ressaltou o pastor. “Foi porque Deus em sua sabedoria os livrou no fogo que nós conhecemos a história deles hoje”, acrescentou. No fim daquela conversa, o pastor prometeu unir a igreja em oração por ele, mas lembrou: “Esteja preparado para estar no fogo.”

No sábado seguinte, Joseph acordou às 5h da manhã. A igreja o esperava para o batismo e a universidade o esperava para as três provas finais. A batalha pela decisão só terminou perto do meio-dia, quando Joseph finalmente foi batizado na Igreja Adventista do Sétimo Dia de Bagdá. Aquela escolha custou caro. Perdendo dois anos de estudo e acusado de fanático na escola, Joseph ainda teria que enfrentar a família.

Indignado com a decisão do filho, o pai ligou para os familiares. Numerosos e unidos naquela cultura, eles rapidamente se reuniram em casa, pelo menos uma centena deles. Entre gritos e acusações de deslealdade, o pai retirou o calçado e o atirou no filho. No Oriente Médio, esse é o último recurso da ofensa, sinal de desgraça para quem é o agredido. O primo Bashir estava presente e, junto com um de seus irmãos, Waddallah, o agarrou, levantou-o e iniciou o espancamento. Logo, todos na sala se juntaram a eles. Já sem consciência, Joseph foi jogado sangrando na rua, e as últimas palavras que ouviu foram: “Não queremos vê-lo novamente!”

Horas depois, ao acordar, Joseph apenas conseguia questionar-se: “Se estou fazendo a coisa certa, por que coisas ruins estão acontecendo comigo?” As palavras de Paulo aos Romanos (8:31-39) lhe vieram à mente e lhe trouxeram paz. Mesmo tendo sido acolhido na casa de um jovem casal da igreja, seus problemas persistiam: “Você não tem futuro neste país. Você precisa ir para o Colégio Adventista do Oriente Médio”, diziam. Na época, entretanto, o colégio não era reconhecido pelo governo do Iraque, e um visto não seria concedido.

Os problemas cresceram quando seu irmão lhe entregou uma carta informando que, por ele ter perdido os estudos na universidade, deveria servir ao exército. O pai, que o havia expulsado de casa, sabendo que aquilo representava praticamente uma sentença de morte num país em guerra com Israel, ofereceu-lhe a oportunidade de voltar, desde que renunciasse à sua fé.

A mãe, que sentia demasiadamente a ausência do filho e naqueles dias havia acompanhado o sepultamento de um jovem vizinho, morto em combate, implorou ao pai para que deixasse Joseph voltar, independentemente de sua religião. O pai aceitou. Ainda na primeira noite de volta à sua própria casa, o mesmo primo e o irmão que o haviam espancado apareceram em seu quarto, convidando-o para uma caminhada. Por volta da meia-noite, e depois de terem andado 6 quilômetros, chegaram a um parque da cidade. Joseph, que já esperava pelo pior, fechou os olhos, aguardando o fim. Para sua surpresa, o primo Bashir lhe dirigiu uma pergunta que foi a recompensa de toda a sua jornada de fé. “Nós vimos tudo pelo que você passou”, disse o primo. “Ou você é um louco ou tem alguma coisa que nós queremos ter também”, confessou. A pergunta abriu o caminho para um estudo da verdade que não terminou antes das 6h da manhã. Ambos aceitaram Jesus e se uniram à Igreja Adventista pouco tempo depois.

A história começava a mudar, mas a convocação para o serviço militar ainda era uma realidade. A igreja já havia tentado todos os caminhos para conseguir o reconhecimento do colégio do Líbano. O último recurso era a oração. Quando a pequena comunidade adventista de Bagdá se comprometeu a orar e jejuar por três dias, o milagre aconteceu. Joseph Kidder teve, finalmente, a oportunidade de ir para o Colégio do Oriente Médio, em Beirute.

Entretanto, no plano de Deus, aquela era apenas mais uma etapa da jornada. A guerra civil explodiu no Líbano e as portas do impossível tiveram que ser abertas uma vez mais. Numa época em que os Estados Unidos não recebiam imigrantes iraquianos, o passaporte com o nome de Sabah Joseph Kidder, assinado por ninguém menos do que Saddam Hussein, então primeiro-ministro do Iraque, foi aceito pelas autoridades americanas.

O encontro real com Jesus numa tarde em Nínive transformou a vida daquele jovem iraquiano. Joseph Kidder se graduou em Engenharia e Teologia nos Estados Unidos. Tem um mestrado e um doutorado em Teologia e um ministério frutífero de 20 anos como pastor local e 14 como professor de Ministério Cristão, Crescimento de Igreja, Discipulado e Crescimento Espiritual. É o autor do livro Adoração Autêntica, lançado pela CPB, e de outros ainda não traduzidos para o português. Já seu primo Bashir é hoje o pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia de Bagdá.

Por razões de segurança, Joseph nunca mais voltou ao Iraque, mas continua vivo porque naquela tarde aceitou o convite de Jesus e decidiu permanecer fiel até o fim. Enquanto caminha, ensina e testemunha, Sabah Joseph Kidder olha para trás e diz: “Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8:31). Ele sabe que sua trajetória é um milagre da graça de um Deus que sempre esteve do seu lado.

LISANDRO WINCKLER STAUT é jornalista e está cursando mestrado em Teologia na Universidade Andrews (EUA)

(Texto publicado originalmente na edição de abril de 2016 da Revista Adventista)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.