Música em tempos de pandemia

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Como os músicos adventistas têm se adaptado para evitar a propagação do novo coronavírus

Joêzer Mendonça
Foto: Adobe Stock

Um relatório médico acompanhou um ensaio musical com 61 pessoas em que um dos coralistas era sintomático da Covid-19. Alguns dias depois do ensaio, 32 pessoas haviam sido infectadas e mais 20 casos posteriores provavelmente estavam relacionados àquela ocasião. Três coralistas foram hospitalizados e dois faleceram. O relatório aponta que a proximidade das pessoas durante o ensaio e também o ato de cantar foram fatores relevantes para a contaminação média de 50% a 80% dos integrantes do coral.

O relatório concluiu que o volume da voz no ato de cantar libera a emissão de aerossóis que contribuem para a transmissão em massa. Além disso, algumas pessoas são superemissoras, isto é, liberam mais partículas de aerossol do que seus colegas, o que aumenta consideravelmente os níveis de transmissão do novo coronavírus (saiba mais aqui).

Esse ensaio ocorreu em 10 de março, em Washington (EUA). Uma semana depois, diante dos primeiros casos de infecção e óbito por Covid-19 no Brasil, houve paralisação dos ensaios e apresentações de grupos vocais e instrumentais em todas as igrejas e colégios adventistas. Nessa conjuntura, os internatos adventistas sentiram o impacto do isolamento social. A maioria dos estudantes teve que retornar para casa e, assim, as atividades e os projetos para este ano foram bruscamente interrompidos.

Selma Correia, regente e diretora da Escola de Artes do Instituto Adventista de Ensino de Santa Catarina (IAESC), relata que os ensaios dos corais e demais grupos vocais foram paralisados, e que foram realizados dois projetos em conjunto com os corais do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul (IACS) e do Instituto Adventista Paranaense (IAP). Somente as aulas de música prosseguiram, em modelo remoto, exceto para os alunos que não possuíam instrumento em casa, os quais tiveram maior reforço em aulas teóricas. A maestrina avalia que “houve dificuldades iniciais de adaptação ao uso de vídeo durante as aulas, mas no fim também houve bons resultados, sendo possível completar o planejamento do semestre, graças ao esforço e dedicação de professores, alunos e pais”.

Pablo Sanches, coordenador da Escola de Música da Faculdade Adventista da Bahia (FADBA), e Jetro Oliveira, coordenador musical da Faculdade Adventista da Amazônia (FAAMA), observaram que houve dificuldades financeiras dos alunos em diversos colégios adventistas, afetando as atividades de ensino e produção musicais. De fato, pode-se notar que, de Norte a Sul, o impacto econômico obrigou igrejas e escolas a buscar reorganização financeira. Infelizmente, neste período da pandemia registrou-se acordos salariais que diminuíram remunerações, suspensão de contratos de profissionais da música e demissão parcial ou total da equipe de funcionários e professores das escolas de música.

Pablo Sanches acredita que “a palavra-chave para nossa situação é reinvenção; estamos nos reinventando”. Portanto, na medida do possível, as aulas de música foram mantidas no modelo remoto, foram realizados recitais on-line e os ensaios resultaram em produção de videoclipes de grupos instrumentais e vocais. Essa reinvenção emergencial é atestada por Vinícius Panegacci, maestro da Orquestra Sinfônica do UNASP, campus Hortolândia: “Os ensaios on-line têm sido feitos parte em explanação e análise de obras do repertório, parte em masterclass realizadas pelos professores da orquestra, e estudo técnico do repertório com ensaios de naipe. Esta foi a maneira encontrada para voltar às atividades, mesmo com o campus completamente fechado. Já fizemos um projeto de gravação de videoclipe remoto, e outros projetos similares ainda virão.”

As escolas do ensino básico também precisaram se reorganizar para adequar os conteúdos às aulas remotas, conforme conta Daniel Derevecki, professor de Artes no Colégio Adventista de Araucária (PR): “Precisei desenvolver um fluxo de trabalho que envolveu a gravação de aulas em vídeo e a transposição para um formato através do qual os estudantes tenham condições de assimilar o conteúdo remotamente”. O professor observou que, em 2019, “os professores da Rede Adventista tiveram treinamento em metodologias de gravação de vídeo e acompanhamento da aprendizagem dos alunos através de plataformas digitais. Tudo isso está sendo colocado em prática agora. Isso denota o cuidado de Deus para com Sua escola”.

As igrejas adventistas também evitaram os cultos presenciais, sendo registrada a abertura eventual de poucos templos, que fizeram ajustes recomendados pelas secretarias de saúde municipais e estaduais. No entanto, o canto congregacional também é um fator de alta transmissão da Covid-19, pois o vírus é transportado por gotículas visíveis, lançadas ao ar pela fala ou pelo canto, e pelos invisíveis aerossóis, os quais permanecem mais tempo no ar formando uma nuvem que, dependendo da ventilação do recinto e da intensidade do ato de cantar, podem ser projetados a vários metros de distância. Vários estudos comprovam as condições desfavoráveis para a prática de ensaios e apresentações em público de grupos vocais e orquestrais (veja os artigos indicados no fim do texto). Por esses motivos, Bruno Volponi, ministro de música da Igreja Central de Londrina (PR), encontrou no formato do Coral Virtual a maneira de manter ativos os participantes do Coral Jovem: “Tivemos grande adesão por parte dos coralistas e da banda, sempre na média de 70 pessoas por vídeo. Produzimos três vídeos que, somados, foram visualizados por milhares de pessoas, um trabalho que dificilmente realizaríamos de maneira presencial”.

Ministro de música da Igreja Central Paulistana, Sandro Matias enfatiza a integração da igreja em suas diferentes faixas etárias e grupos musicais: “Produzimos dez vídeos no modelo Coral Virtual, incluindo o Coro Infantil, o Coro Adulto e os grupos vocais e instrumentais da igreja. Inclusive, pessoas que não conseguiam lidar com algumas ferramentas tecnológicas, como filmagem em celular, superaram o desafio e participaram dos projetos. Todos os participantes demonstram-se motivados para as gravações e costumam ficar ansiosos para a próxima”.

Vivemos uma situação que requer grandes cuidados pessoais e cautelas institucionais. Em meio a perdas financeiras, há perdas mais extremas, de vidas. Neste tempo, os profissionais da música têm motivado seus grupos musicais a prosseguir em meio à crise, incentivando o cuidado uns pelos outros, servindo de inspiração com seus cânticos de esperança e confiança em Deus.

JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor dos livros Música e Religião na Era do Pop e O Som da Reforma: A Música no Tempo dos Primeiros Protestantes

Fontes: High SARS-CoV-2 Attack Rate Following Exposure at a Choir Practice — Skagit County, Washington, March 2020. Relatório publicado pelo Centro de Controle e Prevenção dos Estados Unidos, 12/05/2020, https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69/wr/mm6919e6.htm; Aerosol emission is increased in professional singing. Artigo publicado pela Technische Universität Berlin, https://depositonce.tu-berlin.de/handle/11303/11491; Risk of infection with COVID-19 from singing: First results of aerosol study with the Bavarian Radio Chorus. Pesquisa publicada pela Clínica da Universidade de Munique, https://idw-online.de/de/news750584.

Última atualização em 31 de julho de 2020 por Márcio Tonetti.