O defeito da virtude

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Saiba por que a passividade e o cristianismo estão em extremos opostos da vida religiosa
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A Escritura Sagrada registra explicitamente os pecados cometidos por quase todos os personagens bíblicos mais conhecidos. Jó, o patriarca do Antigo Testamento, compõe a pequena lista de honrosas exceções. Já houve, inclusive, quem cogitasse que esse santo homem, além de santo, fosse impecável, coisa que a própria Bíblia desmente de modo categórico (Jó 42:3-6; Rm 3:23; Sl 51:5; Is 53:6; Jr 13:23; 17:9), deixando Cristo sozinho na categoria dos impolutos (Hb 4:15; Ap 5:1-14). Algo curioso, porém, ocorre entre os que “caçam” no texto bíblico os possíveis pecados de Jó. Dizem que seu erro foi o fato de orgulhar-se da própria santidade, ou seja, sua arrogância espiritual e falta de humildade. Será?

Esse questionamento criativo e sui generis acerca de Jó nos leva a pensar que, dentro da esfera humana, mesmo na virtude pode haver defeito. Talvez esse não tenha sido o caso de Jó, mas em nosso tempo e em nossa sociedade existem claramente algumas “virtudes defeituosas” que, como cristãos, gostamos de cultivar e louvar. Uma delas é a “tendência piedosa” que temos para valorizar mais a passividade que a atividade. Consequentemente associamos o que é mau à ação e ao desprendimento, e o que é bom à calma, à lentidão e à inércia.

Assim, no terreno da moralidade cristã, as “virtudes passivas” (paciência, serenidade, tolerância, ordem, etc.) são mais cotadas que as “ativas” (coragem, proatividade, firmeza, dinamismo, etc.). Nesse sentido, ser bom poderia significar, por exemplo, socorrer quem está em apuros, ajudar a quem pede ou não se recusar a emprestar algo a alguém. Contudo, sair por aí recolhendo famintos e sem-teto talvez fosse um exagero insano, embora haja no evangelho certos precedentes perturbadores nessa linha (Mt 22:9,10; 25:35; Lc 10:31-35). Outro exemplo ilustrativo seria o da fidelidade. Ser fiel poderia significar não tomar a iniciativa de entrar numa relação virtual ou sexual com um “estranho”. Entretanto, deixar de cultivar o próprio relacionamento de maneira exemplar, criativa, constante e intensa não necessariamente seria considerado uma traição ou um problema (ao menos não até o casamento afundar!). Falar a verdade, por exemplo, seria responder algo sem intenção de enganar; só isso, nada mais. No entanto, investigar a coerência de uma afirmação ou a veracidade de um fato poderia facilmente ser tachado de malícia, desconfiança ou bisbilhotice. Assim são os tempos em que vivemos. O assunto é complexo e o debate pode ir até onde nossa elasticidade mental permitir. O certo é que nele há uma “zona cinzenta” que mexe com a nossa massa encefálica, trazendo às vezes dúvida, questionamento e perplexidade.

Isso ocorre porque frequentemente nos sabotamos, mesmo sem querermos ou termos a intenção de fazer isso. Somos por natureza seres complexos, contraditórios e, às vezes, incompreensíveis. Desde a queda de Adão temos uma “fissura” em nosso ser que nos impõe essa condição (Rm 3:23). Somos, ao mesmo tempo, bons e maus. Todavia, apesar de nossa constante inclinação para o mal, também pulsa dentro de cada ser humano um coração potencialmente inconformista e inconformado com os erros e limitações da vida neste mundo. Em cada um de nós, mesmo nos mais passivos e vis, há um anseio por algo superior, maior e melhor que aquilo que normalmente encontramos em nosso dia a dia (Ec 3:11). É desse sentimento básico que surge a indignação contra a injustiça, a resistência ao mal, a necessidade de reconhecimento, o ímpeto pela defesa de uma causa ou ideal elevado, o desejo implícito pela existência do Céu. Estamos falando da natureza moral do ser humano. Ela é parte de nós. É uma das coisas que nos diferenciam dos animais. E serve, dentre outras coisas, para nos aproximar de Deus. Essa natureza, responsável por parte do que somos e fazemos, é também o que nos impele ao crescimento e à autossuperação, bem como à busca de melhores oportunidades na vida. Da natureza moral vem essa especial sensibilidade e interesse do ser humano em perseguir e alcançar o certo, o bom e o belo.

Portanto, parece haver certo sentido na caricatura que Robert Louis Stevenson fez ao escrever O Médico e o Monstro evidenciando que o ser humano tem ao menos duas forças opostas e conflitantes dentro de si. Em sua obra, Stevenson optou por ressaltar que o lado oculto e sombrio do homem pode ou tende a assumir o controle afinal, ou seja, que o mal que um dia esteve oculto cresce dentro de nós, revela-se e acaba se tornando a força dominante da vida. Motivo? A dificuldade do indivíduo – nesse caso do Dr. Jekyll – para encontrar um equilíbrio interno, especialmente quando a vergonha e a sensação de indignidade e de fracasso dominam a mente e o sentimento daquele que não conseguiu corresponder às suas próprias expectativas morais e que, finalmente, desiste de tentar. É como se a dissonância na mente da pessoa soasse tão alto e tão forte que ela, na tentativa de ter paz e de sentir-se menos atormentada, entregasse os pontos, chutasse o balde, “desligasse os aparelhos”, parasse de lutar.

Por essa razão, a fim de evitar essa nebulosidade desconfortável e ter clareza e convicção, o interessado em ser correto, belo e bom talvez se sinta mais seguro reagindo que agindo, sendo responsivo antes que propositivo, ou seja, optando pela passividade e pela contemplação, mais que pela implicação. A atitude tipicamente cristã e conciliatória tem essa característica. Preferimos ver a Jesus mais como o Cordeiro de Deus e menos como o Leão da tribo de Judá, mais como o Príncipe da Paz que como o Rei dos reis ou Senhor dos exércitos. Não entendemos bem os salmos imprecativos; e não nos parecem suficientemente bons. Costumamos afirmar que não temos inimigos. Gostamos de nos ver assim, idilicamente. Queremos ficar bem na fita e bonitos na foto. Cuidamos de nossa autoimagem. Aceitamos ser realistas e honestos só até o “limite do espelho”, ou seja, até o ponto em que o reflexo que ele nos devolve não mexe com nossos brios nem fere nosso orgulho. Dentro de nós, ordem e progresso são faces inseparáveis da mesma moeda. É quase como se uma coisa fosse a outra e a outra fosse a uma. Nossa mente trava aí, o processador entra em pane. Sem percebermos, nossa emoção viciada limita e engessa o potencial de nossa inteligência e bom senso.

Para alguns, a combinação de dinamismo com cristianismo não deveria se aplicar à vida moral e espiritual, mas apenas à esfera administrativa da atividade religiosa e ao trabalho organizacional da igreja. Em termos de vida espiritual, somos como tartarugas gigantes, obesas e octogenárias tentando pilotar aviões supersônicos, trabalhar como agentes secretos e ganhar medalhas olímpicas. Tudo isso sem sair do casco! Difícil missão. Tememos o frio e a dor, por isso não queremos nos expor. Confundimos prudência com sabedoria, e estabilidade com solidez. Falta-nos fibra moral. Em Meditaciones, o pensador espanhol José Ortega y Gasset escreveu: “Um homem desmoralizado é simplesmente um homem que perdeu o domínio de si mesmo, que está fora de sua radical autenticidade” (IV, p. 72). Não dá para ser autêntico quando você se abriga e se oculta no conforto da escuridão ou do anonimato, na comodidade de uma solidão que evita o diálogo por querer esquivar o confronto, e que evita o confronto não por medo dos cadáveres, mas por temer a verdade viva e vívida. Isso é ser responsivo.

O problema é que o responsivo e o responsável estão em extremos opostos, embora juntos no dicionário. Nenhum líder sobrevive sendo apenas responsivo; e menos ainda se o ambiente for instável e desafiador. Nenhum processo verdadeiramente criativo, inovador ou revolucionário é meramente reativo ou responsivo. Nenhum relacionamento amoroso é só reação pacífica e estabilidade plena. É ação também. Surpresa. Pulsação. Movimento. Mudança. Por essa razão o barulho dos maus pode às vezes ter mais impacto que o silêncio dos bons, assim como a paz e a bonança podem, sem querer, produzir aberrações. Por isso a prosperidade não é um bem absoluto, e o pacifismo diplomático exige sempre alianças fortes, articulações e sinergias constantes, senão vira discurso vazio.

Dito isso, e antes de terminar, cito as palavras inquietantes de Antonio Mesa em Los Procesos de Cambio de la Persona: “Existem dois tipos de orgulho: o que está satisfeito consigo mesmo e o que está descontente consigo porque esperava muito de si e por isso se decepcionou. Este segundo tipo de orgulho é muito mais refinado e perigoso, portanto, contra tal presunção de um ego inflado ninguém deveria se considerar suficientemente vacinado” (p. 12). Esse é o motivo pelo qual o maior defeito da virtude é duplo: por um lado, o exibicionismo alegre de quem quer receber paparicos, aplausos e elogios pelo que conquistou e, por outro, o acanhamento simplório e ingênuo de quem ainda não entendeu que tem uma missão a cumprir neste grande mundo de meu Deus. Neste último extremo se encontra aquela zona de conforto nebulosa da qual falamos, e onde a maioria das “pessoas de bem” arma tranquilamente a sua tenda, estende a sua rede à sombra de uma árvore e passa a vida tomando água de coco enquanto, não muito longe dali, o circo pega fogo.

JÚLIO LEAL é pastor, doutor em Educação e editor de livros didáticos na Casa Publicadora Brasileira

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.