Lições de Battle Creek

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Quem se esquece do passado está condenado a repeti-lo

Alberto R. Timm

Em apenas um ano, a igreja perdeu duas das suas principais instituições em incêndios: o renomado Sanatório Battle Creek em 18 de fevereiro e o prédio da Review and Herald, no dia 30 de dezembro de 1902. Imagem: Dr. Milton Hook Collection/AC-EGWRC

O que vem à sua mente quando ouve o nome Battle Creek? Da perspectiva sociopolítica, a palavra “batalha” poderia sugerir uma guerra importante que ocorreu em algum lugar dos Estados Unidos. Contudo, como observou James Nix, o confronto na cidade de Battle Creek foi somente uma briga entre quatro homens: dois topógrafos do governo norte-americano e dois índios Potawatomi. Do ponto de vista comercial, o nome Battle Creek está associado à Companhia Kellogg’s, poderosa empresa multinacional de alimentos, com sede nessa cidade.

No entanto, da perspectiva adventista, nenhuma outra cidade do mundo foi palco de tantos eventos significativos no desenvolvimento e na consolidação da Igreja Adventista do Sétimo Dia como Battle Creek. Ali você pode dar asas à sua imaginação e ver José Bates batendo à porta de David Hewitt, “o homem mais honesto da cidade”, para compartilhar com ele e sua família a mensagem adventista. Você pode imaginar Ellen White escrevendo, em 1858, sua visão do Grande Conflito, ou ainda os pioneiros da igreja escolhendo o nome “Adventista do Sétimo Dia”, organizando a Associação Geral, abrindo o Instituto Ocidental de Reforma de Saúde (mais tarde denominado Sanatório de Battle Creek), o Colégio de Battle Creek e reorganizando a estrutura da igreja na Assembleia da Associação Geral de 1901. Você também pode imaginar o espírito político e belicoso que culminou com estranhos “incêndios”, identificados por Ellen White como juízos punitivos de Deus.

O nome Battle Creek gera sentimentos variados para os adventistas do sétimo dia. Por um lado, nessa cidade a igreja venceu muitas batalhas e recebeu incontáveis bênçãos. Por outro, algumas tensões teológicas e conflitos pessoais terminaram em apostasias trágicas, como os casos de Dudley Canright, Franklin Belden, John Kellogg, Alonzo Jones e alguns outros. Como é possível que pessoas que amam o mesmo Senhor e leem a mesma Bíblia possam lutar umas contra as outras de maneira tão hostil? O que leva alguém que defendeu a igreja a lutar contra ela e suas doutrinas? Quais lições podemos aprender de toda a história ocorrida em Battle Creek?

Em 1 Coríntios 10:1 a 10, Paulo fez uma reflexão sobre os 40 anos de peregrinação dos israelitas no deserto, e então acrescentou: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos. Assim, aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia! Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens. E Deus é fiel; Ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar. Mas, quando forem tentados, Ele lhes providenciará um escape, para que o possam suportar” (1Co 10:11-13, NVI).

O apóstolo incentivou seus leitores a se familiarizarem com a história do povo de Deus e tirar lições práticas dela. George Santayana (1863-1952) advertiu: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo.” Sendo esse o caso, poderíamos fazer a seguinte pergunta: Estamos realmente interessados em ser inspirados e aprender com o nosso passado?

Permita-me destacar algumas lições que acredito serem muito significativas:

Nossa história, permeada por lutas e tensões, só pode ser entendida dentro da estrutura do grande conflito histórico-cósmico entre o bem e o mal. Essa estrutura pode nos ajudar a desvendar alguns dos capítulos mais complexos de nossa história e deve nos auxiliar a perceber que a oração e a espiritualidade, por mais importantes que sejam, não implicam infalibilidade. O fato de que o Senhor falou por intermédio de Balaão (Nm 22–24), e Satanás tenha influenciado Pedro a negar a predição da cruz de Cristo (Mt 16:21-23), deve nos lembrar de que todos somos seres humanos falíveis, cuja força está somente no Senhor.

Nossa autoridade espiritual, acadêmica ou administrativa é diretamente proporcional à lealdade que devotamos à Palavra de Deus. O Espírito Santo concedeu à igreja diferentes dons, talentos e ofícios (1Co 12; Ef 4:11-16). Por isso, devemos respeitar nossos líderes (1Ts 5:12-14; Hb 13:17). Contudo, nossa autoridade não é inerente a nós. Ela deriva de Deus e Sua Palavra infalível.

De acordo com Alister McGrath, “os reformadores argumentavam que a autoridade na igreja não deriva do status do portador do ofício, mas da Palavra do Deus ao qual o portador serve” (Alister E. McGrath, O Pensamento da Reforma [São Paulo: Cultura Cristã, 2014], p. 122, 123). Isso significa que minhas decisões e nossas decisões “são autoritativas na medida em que elas são fiéis às Escrituras”.

Nos escritos inspirados encontramos leis/normas, princípios e conselhos que devem permanecer como tais. Crucial para a interpretação dos escritos inspirados – a Bíblia e os escritos de Ellen White – é identificar e distinguir entre (1) leis/normas, (2) princípios e (3) conselhos. Os liberais tendem a rebaixar as leis/normas ao nível de simples conselhos. Os fanáticos tendem a elevar os conselhos ao nível das leis/normas. Devemos consentir que cada uma dessas categorias permaneça como tal, sem transferi-las para um status ao qual elas não pertençam. Essa não é uma tarefa fácil, mas pode nos ajudar a evitar muitas tensões doutrinárias, teológicas e administrativas.

Muitas crises na igreja são agravadas pela tendência humana de exagerar as causas. “Curvar madeira” é uma técnica de marcenaria na qual um pedaço de madeira é arqueado e curvado até que fique na forma desejada. Isso pode funcionar bem com pedaços de madeira, mas não em questões de verdade e princípios. Como afirmam William Struck Jr. e E. B. White, no clássico livro The Elements of Style, “quando você exagerar, os leitores se colocarão imediatamente em alerta, e tudo o que precedeu o exagero, bem como tudo que segui-lo, gerará suspeita na mente deles, porque eles perderam a confiança em seu julgamento ou sua postura” (William Struck Jr. e E. B. White, The Elements of Style (Boston, MA: Allyn & Bacon, 2000), p. 73). E isso se torna ainda pior quando as pessoas acabam rotulando outras.

Devemos ser maduros o suficiente para lidar com assuntos extremamente controversos sem confundir as questões (que precisam ser abordadas) com as pessoas (que devem ser amadas). No mundo competitivo em que vivemos, a tendência humana é minar a reputação de pessoas que não veem as coisas da nossa perspectiva. Tensões sobre pontos discutíveis podem facilmente se transformar em guerra de personalidades, com vencedores e perdedores!

Lembre-se de que até mesmo os discípulos de Jesus discutiram quem seria o maior entre eles (Mc 9:33, 34). E pior, dois dos discípulos se aproximaram Dele com um pedido político: “Permite que, na Tua glória, nos assentemos um à Tua direita e o outro à Tua esquerda” (Mc 10:37, NVI). Entretanto, Jesus respondeu: “Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo” (Mc 10:42, 43).

Jamais devemos nos esquecer da direção divina. O Senhor nos confiou responsabilidades diferentes, e somos responsáveis por isso. Contudo, infelizmente, ao longo da história cristã tivemos pessoas que se comportaram como autoproclamados “salvadores” da igreja. Jamais devemos nos esquecer de que temos apenas um Salvador e Senhor, Jesus Cristo. Ele está conduzindo Sua igreja! “Os registros da história sagrada estão escritos não meramente para que possamos ler e nos maravilhar, mas para que a mesma fé demonstrada pelos servos de Deus no passado possa atuar em nós. O Senhor agirá hoje, de uma forma não menos notável, onde quer que haja corações cheios de fé para serem canais de Seu poder” (Ellen G. White, Profetas e Reis [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014], p. 175).

Em 1892, Ellen White escreveu: “Não há nenhuma necessidade de duvidar, de estar temeroso de que a obra não seja bem-sucedida. Deus está à frente da obra, e porá tudo em ordem. Caso haja coisas necessitando ser ajustadas na direção da obra, Deus cuidará disso e trabalhará para corrigir todo erro. Tenhamos fé que o Senhor vai conduzir, em segurança, a nobre nau que transporta Seu povo para o porto” (Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 2 [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015], p. 390).

Cerca de dez anos depois, ela escreveu para os ministros que estavam trabalhando entre os ex-escravos na região Sul dos Estados Unidos: “Surgirão dificuldades para provar sua fé e paciência. Enfrentem-nas com bravura. Observem o lado luminoso. Se a obra está em dificuldade, assegure-se de que não é por sua culpa, e então prossiga, regozijando-se no Senhor” (Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja, v. 7 [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010], p. 244). Faremos bem em seguir esses conselhos! 

ALBERTO R. TIMM, doutor em Teologia, é diretor associado do Ellen G. White Estate

(Artigo publicado na edição de março-abril da Revista Ministério

Última atualização em 20 de maio de 2022 por Márcio Tonetti.