Estrangeiros na própria terra

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O êxodo venezuelano entrou para a história como uma das maiores migrações em massa da América Latina, mas a Bíblia fala de um êxodo ainda maior
Imagem captada por fotógrafo da agência EFE mostra a ponte que liga San Antonio del Táchira, na Venezuela, a Villa Del Rosario, do lado colombiano: símbolo do êxodo venezuelano. Foto: Juan Pablo Cohen / EFE

A Venezuela tem passado por uma crise humanitária que culminou naquilo que já é considerada uma das maiores migrações em massa da América Latina. Uma reportagem publicada recentemente pela BBC informou que, no país que tem uma inflação de 82.766% e que pode chegar a um milhão por cento até o fim do ano, quatro em cinco venezuelanos vivem na pobreza. Há falta de remédios e artigos básicos. Por isso, a ponte que divide a Venezuela e a Colômbia se tornou um símbolo de um êxodo em massa de gente à procura de melhores condições de vida. Estima-se que 2,3 milhões de pessoas, cerca de 7% da população, já deixaram a Venezuela.

A Bíblia também fala de um êxodo em larga escala. E não estou me referindo à migração dos israelitas para a terra prometida, quando deixaram para trás o Egito e os anos do cativeiro naquela nação estrangeira. Estou pensando em um êxodo ainda maior, do qual aquele registrado no segundo livro da Bíblia é apenas uma pequena representação. Refiro-me à jornada de milhões de peregrinos ao longo dos séculos rumo à pátria celestial. Ali, eles esperam ter não apenas melhores condições de vida, mas vida plena, perfeita, livre do pecado e de todas as desastrosas consequências por ele provocadas.

De Gênesis a Apocalipse, encontramos histórias de diversos heróis que abriram mão de tudo que tinham a fim de abraçar o sonho de um dia viver numa pátria superior. Porém, nada se compara ao que encontramos em Hebreus 11. Esse capítulo se tornou conhecido como “a galeria da fé”, em que nomes de grandes homens e mulheres do passado “desfilam” diante dos nossos olhos. A expressão “pela fé” é, por assim dizer, a “marca registrada” desse texto. Ela funciona como uma espécie de papel timbrado sobre o qual muitas vidas foram construídas.

O autor inicia com uma breve definição de fé, e o restante do capítulo ilustra essa definição. Fé “é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem” (v. 1). Pela fé, é possível alcançar bom testemunho (v. 2) e entendimento (v. 3). Essa ideia é apresentada logo no início do capítulo porque ela vai determinar a maneira como o leitor deve absorver o conteúdo do que vem em seguida. O entendimento que vem pela fé nos traz a compreensão de que aquilo que vemos é apenas a “ponta do iceberg”. Para dizer de outro modo, Hebreus mostra que existe uma realidade invisível por trás das coisas visíveis. Como diz o verso 3, “o visível veio a existir das coisas que não aparecem”. Muitas pessoas querem primeiro entender, para então ter fé. Hebreus nos ensina o inverso: a fé vem primeiro, e o entendimento, depois. É precisamente esse entendimento que vem da fé que fez com que os heróis ali descritos desenvolvessem a capacidade de remover a “cortina” que separa o visível do invisível, e ter um vislumbre do lar eterno que nos aguarda.

Hebreus 11:9 diz que Abraão viveu na terra da promessa como se estivesse em terra estrangeira. Com isso, o autor coloca o leitor diante de um aparente paradoxo: Como pôde Abraão viver como estrangeiro na terra prometida? Não deveria ser essa terra o lugar de seu descanso? O paradoxo é resolvido no verso 10, por meio da seguinte explicação: “porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador”. A expressão “a cidade que tem fundamentos” parece contrastar com as “tendas” no verso 9. O autor quer demonstrar que as “tendas” deste mundo não têm fundamentos porque foram construídas por homens. Porém, a cidade celestial tem fundamentos porque foi erigida pelo próprio Deus.

Depois de mencionar alguns nomes, o autor de Hebreus comenta que “todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra” (v. 13, itálicos acrescentados). Eles se viam como estrangeiros e peregrinos na terra porque aspiravam “uma pátria superior, isto é, a celestial”. Eles tinham consciência de que Deus “lhes preparou uma cidade” (v. 14). Como eles desenvolveram essa consciência? Pela fé. A fé era o padrão da existência desses homens e mulheres do passado e a regra sobre a qual eles estavam dispostos a viver e morrer. A frase “vendo-as, porém, de longe” demonstra que eles tinham apenas uma vaga ideia a respeito do cumprimento final das promessas de Deus. No entanto, isso foi o suficiente para que seguissem adiante.

Essas pessoas tinham como filosofia de vida aquilo que Paulo escreveu em 2 Coríntios 4:18: “não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas”. Isso fica claro em Hebreus 11:15. Uma tradução dinâmica desse verso pode oferecer o seguinte resultado: “Digamos que essas pessoas pensassem na terra da qual elas saíram, certamente elas teriam tido oportunidade de voltar”. O texto original dá a impressão de que elas nem sequer consideraram a possibilidade de voltar atrás. Elas estavam determinadas a viver acima das coisas transitórias deste mundo. Elas queriam algo infinitamente superior.

O restante do capítulo traz repetidamente a ideia de que o futuro nos reserva algo melhor. O verso 20 diz que “Isaque abençoou a Jacó e a Esaú, acerca de coisas que ainda estavam para vir”. Por sua vez, “José, próximo do seu fim, fez menção do êxodo dos filhos de Israel, bem como deu ordens quanto aos seus próprios ossos”. Do ponto de vista histórico de José, tudo era futuro. Porém, da perspectiva do autor de Hebreus, tudo era passado (Êx 13:19). A lição que o autor quer ensinar é clara: a história demonstra que Deus cumpriu Suas promessas no passado; o mesmo deve ser verdade em relação ao futuro.

O capítulo caminha para o fim, mas ainda somos presenteados com o exemplo de Moisés. Ele preferiu lançar sua sorte com o povo de Deus a “usufruir os prazeres transitórios do pecado” (v. 25). Ele não queria as riquezas deste mundo, “porque contemplava o galardão” (v. 26). Ele “permaneceu firme como quem vê aquele que é invisível” (v. 27). No verso 32, o autor nos surpreende com a ideia de que sua lista poderia ser bem maior, mas lhe falta o tempo para isso. Mas não é necessário. A lição já está clara. A fé é o combustível que move o povo de Deus rumo à Canaã celestial.

É interessante notar que grande parte do capítulo (v. 4-35) apresenta pessoas que realizaram grandes coisas para Deus por meio de sua fé, enquanto a parte final se concentra em pessoas que sofreram intensas provas por causa de sua fé (v. 36-38). Isso demonstra que a fé não é apenas a habilidade de realizar coisas boas, mas também a capacidade de suportar coisas ruins. Jesus mesmo disse que, na jornada dessa vida, os peregrinos passariam por aflições. Mas ele também exortou: “animem-se! Eu venci o mundo” (Jo 16:33). Foi Ele que abriu o caminho de acesso para o nosso lar eterno (Hb 4:14-16). Por ora, nós podemos entrar ali apenas pela fé (Ef 2:6). Porém, em breve, iremos para a nossa morada definitiva.

O artigo da BBC mencionado no início nos informa que “a fila da Venezuela para a Colômbia vai se formando ao longo da madrugada. Quando o portão se abre, a imagem se parece com a de atletas disparando após o sinal de partida. Cada um tenta chegar ao outro lado o mais rápido possível”. Esse comentário me fez lembrar o que encontramos em Hebreus 12:1, 2: “Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé […]”. Esses dois versos são o clímax de Hebreus 11. Embora encontremos ali uma grande lista de heróis do passado, é Cristo que está em evidência! Ele veio a este mundo como Deus encarnado, e correu a carreira que todos nós devemos correr. Ele cruzou a linha de chegada, e agora deseja ansiosamente que Seus seguidores façam o mesmo (Ap 3:21). Em breve, os portões celestiais serão abertos para receber os peregrinos da Terra. Você está se preparando para chegar ao outro lado?

NILTON AGUIAR, mestre em Ciências da Religião, é professor de grego e Novo Testamento na Faculdade Adventista da Bahia e está cursando o doutorado em Novo Testamento na Universidade Andrews (EUA)

Última atualização em 26 de setembro de 2018 por Márcio Tonetti.