Diálogo com o passado

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Livro revisita a vida do profeta Eliseu e explora uma tendência na literatura para adolescentes e jovens

Milagres-do-manto-estanteDesde suas manifestações mais primitivas, a literatura é uma representação do desejo do ser humano de recontar ou problematizar a realidade ao seu redor. Muitas vezes, perde-se o verdadeiro conceito de literatura ficcional, que é basicamente uma forma de narrativa que descreve eventos (factuais ou não) valendo-se de elementos simbólicos para compor a história.

Interagir com seres sobrenaturais, fictícios e personagens do passado não é algo novo, mas atualmente jovens e adultos têm manifestado interesse por esse tipo de temática, mesmo no meio religioso. Com isso, a literatura foi se desconstruindo, adquirindo novos formatos ao longo do tempo, à medida que surgiam novas gerações de leitores. Há muito tempo, saímos dos contos de fada, das fábulas e dos gêneros épicos e clássicos, e estamos rodeados de subgêneros de ficção realista, a exemplo do popular sick lit (tipo de literatura cujos protagonistas da história sofrem de alguma doença, geralmente terminal) e histórias fantásticas com seres imaginários humanizados ou desmistificados, como anjos, vampiros e outros.

Bradley Booth, autor do livro O Boi que Guardava o Sábado (CPB, 2013), é conhecido por seu dedicado trabalho com adolescentes e jovens em diversas partes do mundo. Resgatando o estilo clássico de ficção, no livro Milagres do Manto, que acaba de ser lançado pela Casa Publicadora Brasileira, Booth insere sua narrativa em um contexto histórico real e, em linguagem simples e acessível, conta a impressionante história de um rapaz chamado Natã que encontra o profeta bíblico Eliseu. Sendo um menino muito perspicaz, órfão de pai e muito apegado à mãe, sai de casa com seu irmão para ajudar o tio na cidade de Jericó. Em suas novas atividades, mantém contato com várias pessoas daquela comunidade e passa a gostar desse convívio. O auge da narrativa acontece quando o menino encontra o profeta, pois havia certo mistério no desaparecimento do profeta Elias e na chegada de Eliseu, e muita especulação surgia para explicar os fatos.

O núcleo do enredo se desenvolve nos encontros do protagonista com o famoso profeta, quando ouve suas histórias e o acompanha em sua trajetória. O autor compõe a narrativa fazendo diversas alusões bíblicas relacionadas à vida de Eliseu, desde seu chamado para se tornar profeta. Os personagens, ainda que planos (ou seja, suas características não mudam ao longo da história), são muito ricos, pois estabelecem diálogos diretos com muitas informações importantes para o contexto e que dão maior realidade à história. É nesses diálogos que o leitor conhece mais do protagonista Natã, do profeta Eliseu e até mesmo do profeta Elias, que, embora não seja propriamente um personagem, é o assunto das conversas do rapaz com Eliseu desde o primeiro encontro.

Uma vez que os relatos bíblicos são usados como pano de fundo, essa intertextualidade faz com que o leitor da Bíblia se situe nesses relatos e estabeleça conexões entre um texto bíblico e outro, pois o foco narrativo original muda e isso lhe dá mais possibilidades de interpretação. Essa ideia de tirar a passividade do leitor o habilita a interpretar com mais propriedade histórias ficcionais, indo além de uma simples leitura superficial. Sabendo que a ficção é bastante simbólica, precisamos aprender a ler o que está além do texto, implícito e talvez não muito evidente, para que tenhamos todas as informações necessárias para compreender o enredo.

Um exemplo disso é o elemento do manto na história. Natã questionou por que Eliseu estava sempre com aquele manto e queria saber se ele tinha algum poder. A princípio, essa não parece ser uma informação relevante, mas, no decorrer da história, percebemos que havia uma intenção em mencioná-lo e que havia um significado mais profundo.

Dividido em 38 capítulos, Milagres do Manto é uma leitura leve e envolvente. O texto é rico em ensinamentos e traz sólidos conhecimentos das Escrituras Sagradas na dinâmica da história. Seus episódios são bem delineados e suas reviravoltas são surpreendentes. Muitas questões são sutilmente levantadas, ainda que em um contexto mais juvenil, mas respondidas com naturalidade e respaldo bíblico.

Muitos poderão se identificar com essa história, pois um dos pontos de convergência está justamente na maior ênfase do autor: a defesa de suas convicções. A presença do profeta Eliseu fortalecia o jovem Natã em sua conduta, e o preparava para enfrentar seus desafios pessoais. A obra de Booth nos incentiva a reagir à acomodação e à passividade, convocando os leitores a deixar a atitude contemplativa quanto aos fatos do passado e dialogar com eles, afim de que possam entender a história em que estão inseridos e ativar seu senso crítico diante das situações exemplificadas nessa narrativa, tendo como fundamento a Bíblia.

TRECHO
“O ar estava um pouco frio naquela noite, e Natã envolveu-se em sua leve capa a fim de manter-se aquecido. O profeta também usava o próprio manto enquanto descansava assentado contra a parede, com os olhos fechados.

Mais uma vez, Natã teve uma ótima oportunidade para observar o manto do profeta. Parecia um pedaço de pano comum, mas Natã sabia que o manto era especial. Só podia ser. Esse manto não havia dividido as águas do rio Jordão? O profeta não o estava usando quando tornara doces as águas da fonte de Jericó?”

LUCAS DIEMER é graduado em Letras e trabalha como editor de livros na Casa Publicadora Brasileira

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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.