Testemunho corajoso

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Servindo a Deus em uma sociedade polarizada

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Há algo que fica cada vez mais claro quando converso com meus amigos e colegas. Estamos cansados de conflitos sistêmicos, guerras ideológicas e do radicalismo que temos vivenciado em nossa sociedade. Recentemente, passamos por processos eleitorais turbulentos em países como os Estados Unidos e o Brasil. As pessoas nos perguntam constantemente sobre nossa opinião, nos instigam a tomar partido ou, então, nos associam aos posicionamentos com os quais não nos identificamos. Estou exausto! O cansaço pode nos levar a ficar em silêncio sobre tudo, nos retrair e assistir de modo apático ao que está acontecendo. Como podemos cumprir nossa missão quando o cenário está tão dividido?

A mensagem que encontramos no livro de Jeremias pode nos apresentar uma perspectiva bíblica sobre essa questão tão desafiadora. Poucos profetas enfrentaram um turbilhão de conflitos tão vasto e multifacetado quanto ele, que acompanhou a queda de Jerusalém bem de perto.

TEMPOS COMPLEXOS

Em primeiro lugar, havia um conflito de hierarquias sociais, na medida em que a elite aristocrática prejudicava a massa menos favorecida da sociedade de modo econômico e legal (Jr 7). Em muitas passagens, Jeremias pronunciou oráculos proféticos que poderiam torná-lo um revolucionário na atualidade (Jr 2:34, 35; 5:4, 5a; 10; 22:13-19). Mas então, ele apresentou novos oráculos, condenando o proletariado e sua moral, igualando-os ao mesmo nível de corrupção da elite opressora (Jr 5:4, 5; Jr 40–43). Afinal, quem era Jeremias? Um revolucionário ou um crítico deles?

Além disso, havia conflitos étnicos. Até aquele momento, o grande número de refugiados que, décadas antes, havia se mudado do reino do Norte para o reino do Sul, não tinha sido adequadamente integrado à sociedade. Os “nativos”, que também tinham chegado ali como estrangeiros, viam os refugiados como uma ameaça para o mercado de trabalho. Todos os dias era possível sentir a inveja, o ciúme e a xenofobia deles.

Havia também conflitos geopolíticos entre líderes pró-Egito e pró-Babilônia. Enquanto o rei Josias era pró-babilônico, o rei Jeoaquim era pró-egípcio. Embora Joaquim, filho de Jeoaquim, tenha se rendido aos babilônios, seu tio Zedequias lutou contra eles até o fim. Por exemplo, podemos comparar esses conflitos com aqueles que ocorrem diariamente nas redes sociais entre os influenciadores que são pró-Ocidente e os que são pró-Rússia. Contudo, Jeremias sempre se posicionou de forma clara, afirmando que Babilônia venceria o conflito entre as grandes potências mundiais da época. Isso fazia dele um liberal que questionava a aliança eterna de Deus com o trono davídico?

A elite religiosa e os líderes políticos achavam que sim, e queriam que ele fosse sentenciado à pena de morte por traição e heresia. Mas Jeremias apoiava o partido pró-babilônico? Quando Nabucodonosor tomou a cidade, quis honrar o profeta e lhe dar dignidade. Por sua vez, Jeremias recusou a oferta. Ele preferiu se unir aos judeus que foram deixados para trás, mesmo tendo sofrido por causa deles, sido mal interpretado e tratado com ódio (Jr 39:11-14; 40:4-6). Ele renunciou à proposta de passar seus últimos dias numa vila real às margens do rio Eufrates – o que é bem provável, se considerarmos a boa vida que Joaquim teve depois que foi reabilitado (cf. Jr 52:31-34; 2Rs 25:27-30). Isso prova que Jeremias não fazia parte do partido pró-babilônico!

Eu poderia dar mais exemplos que comprovam que Jeremias era um profeta fiel e de posicionamento claro, que não se encaixava em nenhuma classificação político-partidária ou teoria crítico-social. Ele não levantava nenhuma das bandeiras populares, mas criticava cada uma delas ou, então, mantinha-se em silêncio, a fim de evitar problemas. Por isso, ele se tornou agente de uma forte opinião política, religiosa e da hierarquia social. Ninguém, contudo, podia considerá-lo afiliado a seu partido.

COMPROMISSO COM A PALAVRA

Jeremias conseguiu decepcionar todas as expectativas e excedê-­las. Ninguém conseguia forjar uma aliança político-religiosa com ele. Sua linguagem mostra que estava sob a influência do livro de Deuteronômio mais do que qualquer outro profeta. O que lembra muito seu amigo, o rei Josias, que é conhecido pela grande reforma religiosa que liderou no reino de Judá. O rei e o profeta advogavam a mesma teologia, pois ambos queriam que o povo experimentasse uma reforma espiritual.

Apesar das similaridades entre eles, não há menção em nenhuma passagem do livro de Jeremias de que tenha havido uma colaboração entre ele e Josias. Mesmo com todas as semelhanças, o livro não fala nada sobre o apoio político ou religioso que o profeta poderia ter dado ao rei. Por quê?

Josias combinou sua reforma religiosa com uma reforma política na nação. Seu convite para que o povo se voltasse ao Senhor ocorreu paralelamente ao chamado para que as antigas fronteiras do reino davídico fossem restauradas. Assim, vemos que sua reforma espiritual era parte da sua ambição política: restabelecer a aliança eterna de Deus com Davi por meio da oração e da espada. Por isso não vemos nada sobre a associação política de Jeremias com o rei. Ele exerceu seu ofício profético como se o rei Josias não existisse. Entretanto, era amigo do rei. Pessoalmente, valorizava Josias, embora não apoiasse a fusão de poder e fé que o rei tentava fazer. Quando o monarca morreu, o profeta chorou no túmulo de seu estimado amigo (2Cr 35:25).

Quem é estudioso do livro de Jeremias aprende a ter consciência política e entende que a teoria crítico-social, as categorias populares, os partidos políticos e a cultura das mídias sociais, em geral, levam-nos à polarização e à violência. De fato, precisamos superar as tensões antitéticas, como disse Hegel.

PERSPECTIVA PROFÉTICA

Como é possível desenvolver um espírito que nos permita essa superação? Por intermédio do ethos da profecia. Somente por meio do amor radical pelo ser humano e pela comunidade, seja ela a igreja ou a nação, é que surge a possibilidade – além de qualquer teoria ou atitude política – de ver o medo, o desejo e a situação de vida da pessoa e, ainda assim, conectar-se com ela e ser empático, acima da vontade de mostrar seu próprio posicionamento. Jeremias vivia isso na prática. O profeta não estava somente ao lado do Senhor (por ex., Jr 12:1-3) nem era apenas comprometido com a verdade (Jr 17:16). À semelhança de Moisés, Jeremias também intercedia pelo povo, mesmo depois de Deus ter declarado que já não havia esperança para Judá. O profeta fazia o papel de mediador, embora o povo fosse indisciplinado, corrupto, mesquinho e egocêntrico.

Jeremias era um profeta fiel e de posicionamento claro, que não se encaixava em nenhuma classificação político-partidária ou teoria crítico-social

Jeremias viveu em dupla lealdade e simpatia. Ele era totalmente fiel a Deus e totalmente fiel ao povo. Essa era sua essência. Ele tentou, a todo custo, fechar o abismo que existe entre o ser humano caído e o Céu.

Por isso, Jeremias foi ameaçado de morte pelos líderes políticos e religiosos que não temiam a Deus (Jr 37). Por outro lado, por três vezes o Senhor pediu que ele parasse de interceder (Jr 7:16; 11:14; 14:11).
No entanto, o profeta não parou. No livro de Lamentações, Jeremias continuou chorando e suplicando em favor do seu povo, mesmo depois de ele ter sido enviado para o exílio, como resultado do juízo divino.

ethos profético permite testemunhar em meio à polarização porque está em seu nível mais fundamental, livre de qualquer lealdade a partidos políticos, instituições religiosas ou ícones nacionais. O ministério profético é dirigido por uma compaixão quase impossível por Deus e pelo povo.

Talvez você esteja pensando: mas quando foi que Jeremias conseguiu conquistar a união da nação, a justiça social e a pacificação religiosa-ideológica? Não existe nenhum registro sobre isso na Bíblia. Ao contrário! De acordo com a tradição, ele foi apedrejado até a morte no Egito por seus próprios compatriotas. Ele podia não pertencer a nenhum partido político, mas todos os partidos com certeza o odiavam. Que perspectiva para os membros adventistas: testemunhar em meio à polarização pode ter um alto preço!

SEMENTE DE RESTAURAÇÃO

Podemos avançar um pouco para ver mais frutos do trabalho de Jeremias. Ele tinha uma visão clara: a visão da “nova aliança” (Jr 31:31). Ela era tão extraordinária que nem uma única página do Antigo Testamento ousa incluir ou refletir a expressão “nova aliança.” Somente quando Jesus veio, a visão apartidária de Jeremias se tornou objeto de reflexão e experimentação (1Co 11:25;
2Co 3:6; Hb 8:8, 13; 9:15; 12:24).

Quando Jeremias tentou testemunhar ao povo em meio à polarização para curar e restaurar a unidade de Judá, ele ensinou que a cura só poderia acontecer quando o foco não estivesse em reconstruir o trono davídico ou o templo salomônico. De fato, ele alegou que essas instituições religiosas e políticas contribuíam para dividir ainda mais e desenvolver mitos tóxicos de identidades nacionais e religiosas, como, por exemplo, em seu sermão sobre o templo (Jr 7). Consequentemente, o profeta mostrou como as tentativas de reforma religiosa coincidiam com o declínio moral (Jr 34:8-11).

Em sua visão de como testemunhar em meio à polarização, ele viu a construção de um projeto enorme e fascinante, do qual todos podem fazer parte. No livro da consolação (Jr 30–33), onde se encontra o texto sobre a “nova aliança” (Jr 31:31), ele usou o verbo “construir” mais do que qualquer outro profeta. Contudo, não é possível encontrar prédios, palácios, templos, muralhas ou ruas sendo reconstruídas por Deus. Em vez disso, sua visão mostra apenas a reconstrução de famílias, homens e mulheres (Jr 31:4; 28; 33:7). O foco está nas pessoas, não nas instituições. A principal preocupação de Deus é com biografias, não com entidades. É claro que as comunidades, as instituições e as hierarquias organizadas têm sua importância, mas no sistema de ensino em meio à polarização criado por Jeremias, elas são secundárias.

Em suma, devemos lealdade somente a Jesus e às pessoas a quem testemunhamos e levamos às nossas igrejas. Essa dupla lealdade sempre nos levará a um conflito. Talvez sintamos que nossa insistência em defender nossas igrejas e seus membros diante de Deus às vezes pode ser inconveniente ou que nosso compromisso com Ele deve nos levar a ser contundentes com nossos membros de igreja. Quando nossa paixão e empatia não forem motivadas por qualquer outra coisa que não seja as pessoas a quem devemos servir e pela lealdade ao Deus que as criou, viveremos a experiência de tensão e sacrifício de Jeremias. Contudo, é somente com fios tão finos que o tecido da restauração pode ser entrelaçado. Ao final, o ensino do profeta em meio à polarização não era uma armadilha mortal, mas a semente por meio da qual foi iniciada a cura de pais e filhos, mães e filhas, homens e mulheres.

OLIVER GLANZ é professor de Antigo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Andrews

(Artigo publicado na Revista Adventista de fevereiro de 2023)

Última atualização em 11 de abril de 2023 por Márcio Tonetti.