Do suco para o sangue

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A história da enfermeira adventista que ajudou o Hospital das Clínicas de São Paulo a se tornar uma referência e a igreja a abrir seu primeiro curso de Enfermagem no Brasil

Enfermeira aposentada que vive no interior paulista já plantou igrejas e até hoje não perde uma oportunidade de testemunhar. Crédito: arquivo pessoal
Enfermeira aposentada que vive no interior paulista já plantou igrejas e até hoje não perde uma oportunidade de testemunhar. Crédito: arquivo pessoal

Nas cadeiras da varanda de sua casa, Olinda Anniehs passa tardes observando a natureza e conversando com vizinhos e visitantes. Compartilha suas inúmeras experiências de fé, relembradas com muita clareza. Nunca deixou de realizar ações missionárias. Aos 93 anos, o amor em servir ao próximo continua pulsando forte em suas veias.

Ela foi criada em uma fazenda na região metropolitana de Curitiba. Desde cedo, Olinda passou a ajudar o pai na fabricação de suco de uva e geleia. A venda dos produtos, confeccionados de forma tipicamente artesanal, consistia numa das fontes de renda da família. Embora em pequena escala, a produção chamava a atenção pela qualidade. Uma prova disso foi que, depois de conhecer o empreendimento, o pastor Domingos Peixoto da Silva, que na época era o diretor do Colégio Adventista Brasileiro (CAB), hoje Unasp, campus São Paulo, decidiu convidar o pai de Olinda para orientar a fabricação de suco de uva e geleia na instituição. A parceria realizada em 1935 possibilitou a expansão da produção do colégio e formou o embrião da Superbom, empresa adventista de alimentos.

Mudança

Porém, o sonho de entrar na faculdade levou dona Olinda a migrar do campo para a cidade e do suco para o sangue. Embora seu sonho fosse se formar em Nutrição Dietética na Universidade de Loma Linda (EUA), onde sua irmã, Edite, já estudava, acabou estudando Enfermagem no Brasil. Iniciou o curso na Escola Anna Nery da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Na época, essa era a única faculdade de enfermagem no país.

Curiosidade e ousadia sempre foram características marcantes de sua personalidade. Quando ainda era uma estagiária no Hospital Geral da Assistência do Departamento Nacional de Saúde Pública, atual Hospital Escola São Francisco de Assis (RJ), ela e uma colega decidiram aproveitar o horário do almoço para descobrir o que havia no último andar do edifício. Ao abrir um dos armários da sala abandonada, encontraram várias caixas com instrumentos cirúrgicos. Essa “descoberta” motivou a abertura do primeiro centro cirúrgico do hospital. Inclusive, Olinda foi a instrumentadora da primeira cirurgia realizada ali.

Testemunho e pioneirismo

Depois da graduação, Olinda trabalhou na Clínica de Repouso White, precursora do Hospital Adventista Silvestre (RJ). Algum tempo mais tarde, um professor dela abriu uma clínica particular e ela resolveu ajudá-lo a estruturar o serviço de enfermagem. Na sequência, mudou-se para São Paulo.

Ao participar de uma entrevista de emprego para a vaga de enfermeira do Hospital das Clínicas, ela expôs o fato de ser adventista do sétimo dia e não trabalhar aos sábados. Quando mencionou isso, ficou surpresa com a resposta da enfermeira que conduzia o processo seletivo: “Ela disse que havia cerca de 40 profissionais adventistas nessa mesma situação e que, se fosse possível, contrataria mais 400 com esse perfil. Louvei a Deus pelo testemunho dado e pela oportunidade de poder realizar um trabalho que não conflitasse com a guarda do sábado”, relembra a especialista em clínica cirúrgica.

Na época, segundo ela, as instalações do Hospital das Clínicas eram precárias. Tudo estava concentrado em um prédio. Os quartos e os corredores viviam lotados. Devido à falta de espaço, ela conta que, quando era necessário transportar um paciente, as macas tinham que ser levantadas por homens fortes para passar nos corredores cheios de pessoas com todo o tipo de enfermidade. As necessidades eram tantas que Olinda precisava atender pacientes de todas as alas do hospital.

Como anteriormente já havia ajudado a estruturar hospitais e clínicas em outros lugares, Olinda foi uma peça importante para mudar a realidade do Hospital das Clínicas. Além de buscar meios que possibilitassem melhorias na infraestrutura dos quartos, ela contribuiu para que fossem introduzidas diversas especialidades médicas. Somado a isso, o hospital passou a oferecer um tratamento mais humanizado. “Isso contribuiu para que a instituição se tornasse uma referência”, afirma Olinda, que trabalhou no Hospital das Clínicas durante 30 anos, dos quais 13 como diretora da instituição.

Em 1969, com o surgimento da Faculdade Adventista de Enfermagem (FAE), o primeiro curso superior adventista reconhecido no Brasil, Olinda também deu uma grande contribuição para a abertura da graduação, juntamente com Maria Kudzielicz. Trabalhou na faculdade durante seis anos e foi professora titular. Segundo ela, trabalhar nesse contexto foi diferente. “Minha motivação era tornar felizes pacientes que chegavam tristes, cuidando não só da recuperação da saúde física deles, mas lhes oferecendo a cura espiritual”, realça. E foi ao praticar a enfermagem numa instituição que cultivava uma visão integral da saúde e em um contexto de falta de materiais e más condições de saúde que ela realmente se apaixonou pela profissão.

Ministério

Após se aposentar, Olinda e mais três pessoas iniciaram um projeto evangelístico na cidade de Artur Nogueira (SP), onde mora atualmente. Na época, a região ainda não tinha presença adventista. Por meio desse trabalho missionário, ofereciam o curso “como deixar de fumar em cinco dias”, distribuíam folhetos e ministravam estudos bíblicos. O pequeno grupo que inicialmente se reunia em um galpão emprestado se transformou no que hoje é a Igreja do Parque dos Trabalhadores.

Depois de plantar outra congregação no Jardim Itamarati, partiram para Santo Antônio de Posse (SP). Lá, conseguiram um prédio de dois andares, no qual o primeiro pavimento servia de salão para os adultos e o de cima, para as crianças. Posteriormente, na parte superior, funcionou a Escola Adventista que hoje está em outro prédio maior devido o crescimento no número de alunos. Usando estratégias semelhantes, trabalharam em mais cinco cidades da região.

Atualmente, dona Olinda ainda realiza ações missionárias. Cada vez que vai ao supermercado, leva livros, CDs, DVDs e estudos bíblicos na bolsa. Ela aborda as pessoas perguntando se têm uma Bíblia em casa e se a leem. Então, entrega os materiais e reforça: “Tudo que estiver escrito nesse livreto você pode encontrar e comprovar na Bíblia”. Além disso, contribui com o IDE-GO, um projeto que sustenta missionários nativos. Olinda é uma inspiração profissional a familiares e colegas de trabalho. Integridade e força de vontade fizeram dela uma excelente enfermeira e legítima missionária.

ANA PAULA BARBOSA é aluna do 1.º ano de Jornalismo do Unasp e participa do projeto Casa UniJor

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.