Corações feridos

8 minutos de leitura

O que fazer para curar as mágoas causadas pela igreja

Nicole Parker

Imagem: Kenny Eliason

Quando atendi ao telefone, ouvi minha amiga, aos prantos, dizer: “Não consigo entrar por aquela porta!” Entre soluços e com o coração partido, ela continuou: “Eu me esforcei tanto! Me arrumei e até consegui chegar ao estacionamento da igreja. Mas simplesmente não consigo entrar!” Seu choro se intensificou: “Eles nem se sentam perto de mim.” Procurei confortá-la, lembrando que Jesus a amava e que, com Sua ajuda, ela iria superar as decepções. Depois, preocupada, vesti-me para ir ao culto.

O que a palavra “igreja” desperta em sua imaginação? Muitos sentem o coração se aquecer só de pensar nos sermões, juntapanelas, programas musicais, e nas amizades que alimentam a alma, um refúgio na crise. Outros sentem um nó na garganta e as lágrimas arderem. São dominados por lembranças terríveis de maus-tratos, hipocrisia, julgamento e rejeição, que se manifestam em ondas dolorosas. Para esses, a “igreja” está associada à deturpação do amor de Deus.

Igreja? Não!

Desigrejado é um termo que tem ganhado destaque na mídia. Ele descreve a crescente quantidade de cristãos que rejeitam a religião organizada ou até mesmo perdem completamente a fé. Embora alguns cheguem a esse ponto por ceticismo ou indiferença, muitos atribuem sua escolha diretamente à traição e aos danos causados pela igreja.

Como esposa de pastor e defensora da luta contra o abuso, já vi muitas situações lamentáveis no contexto eclesiástico. Mas, depois de testemunhar um acobertamento de abuso, finalmente me vi fisicamente incapaz de ir à igreja. Meu coração batia descontroladamente sempre que me sentava no templo. O estresse acabou me forçando a procurar a ajuda de um gastroenterologista. Reconhecendo que eu precisava de motivos mais profundos para frequentar a igreja, comecei a estudar e a escrever em um diário.

O que começou como uma tentativa desesperada de me agarrar à igreja com todas as minhas forças, transformou-se em meses de uma busca gloriosa pelo coração de Deus. Consegui ampliar a visão do que o Senhor está fazendo em Sua igreja imperfeita. Descobri muitos motivos pelos quais Jesus nos chama a permanecer, mesmo quando é difícil. Este artigo resume as descobertas que me ajudaram a superar o passado, a me comprometer novamente e a voltar ao templo, com a certeza da presença reconfortante de Deus ali, comigo.

Motivos para permanecer

1. Deus chamou Seu povo para falar do Seu amor ao mundo inteiro, e não conseguimos fazer isso sozinhos. Amar a Deus sem amar os outros não cumpre a lei divina (Mc 12:30, 31). Ele nos chama a sair da zona de conforto, trabalhando humildemente com as diferenças sempre que possível. Mas, se eu apenas convidar amigos para se juntarem a mim em uma adoração pacífica na sala de estar da minha casa (Hb 10:25), o que acontecerá? Meu “movimento” ainda será extremamente limitado pelo tempo, espaço e por minhas próprias fraquezas. Somos “o corpo de Cristo e, individualmente, membros desse corpo” (1Co 12:27; cf. 12:12-31; 13:1-13). Em contraste com uma cultura cada vez mais individualista, Deus deu à igreja do tempo do fim um chamado coletivo para mostrar como é o amor em ação – em todo o mundo. Para difundir efetivamente essa profunda mensagem do evangelho, os fiéis devem trabalhar em cooperação. Isso leva automaticamente ao próximo ponto.

2. A igreja precisa ser organizada para levar o evangelho ao mundo todo. Acredito sinceramente que a Igreja Adventista do Sétimo Dia possui a melhor visão teológica do amor divino. Desenvolvida ao longo de gerações, por meio de um extenso estudo da Bíblia realizado por teólogos profundamente comprometidos com o Senhor, essa mensagem é expressa nas 28 Crenças Fundamentais.

A estrutura da igreja é uma ferramenta ordenada por Deus para agilizar o compartilhamento dessa visão abrangente de Seu caráter amoroso com um mundo que sofre e está em busca de ajuda. No entanto, cada um de nós recebeu apenas alguns dons espirituais para cumprir essa missão. Os membros da igreja devem se encaixar como peças complementares de um quebra-cabeça. Nem todo mundo é preparado para cantar, cozinhar, pregar ou organizar acampamentos de Desbravadores e a Escola Cristã de Férias. E o que dizer de outras frentes de trabalho? Onde estaríamos sem escolas, instituições médicas e um sistema de distribuição de dízimos que ajuda a evitar a corrupção predominante nas abordagens organizacionais de outras denominações?

No início, os pioneiros da Igreja Adventista estavam determinados a não se organizar, pois acreditavam que a estrutura levaria inevitavelmente ao abuso de poder. Contudo, com o tempo, perceberam que, para levar o evangelho ao mundo, a organização era necessária. Deus deseja tecer o Seu corpo de crentes em uma tapeçaria perfeita, uma equipe mundial para um serviço exponencialmente eficaz. Escritores, pregadores e artistas devem se unir a outras pessoas dotadas de talentos tecnológicos, financeiros, educacionais e linguísticos para cumprir nossa missão de compartilhar o amor de Jesus com todos.

Os pioneiros estavam certos sobre os desafios da organização. Deus advertiu Israel contra ter um rei porque qualquer estrutura que implique hierarquia tenta os pecadores a combinar poder e orgulho. Todo pecado brota da semente de Satanás: “Serei semelhante ao Altíssimo” (Is 14:14). Desde a primeira tentação “vocês serão como Deus” (Gn 3:5, NVI), os pecadores elaboraram estratégias para coroar a si mesmos no trono. Os judeus não reconheceram Jesus como o Messias por causa de seu desejo de supremacia. Na Idade Média, o pensamento hierárquico levou o cristianismo à estrutura de liderança papal. Não é de se surpreender que Satanás tenha como alvo os líderes espirituais com tentações intensas para que representem mal a Deus pela forma como usam o poder.

DE GÊNESIS A APOCALIPSE, AS ESCRITURAS REPETEM UMA PROMESSA GARANTIDA: A GLÓRIA DE DEUS SERÁ REVELADA EM SUA IGREJA

Talvez nossa melhor defesa contra o pecado seja observar continuamente o impressionante contraste entre a maneira como Satanás e Jesus usam o poder. “Satanás tem representado a Deus como egoísta e opressor, como exigindo tudo e não concedendo nada” (Ellen White, O Desejado de Todas as Nações [CPB, 2021], p. 35). No entanto, a “hierarquia” do Universo é inversa à nossa. Nosso Rei lava os pés. Ao usar uma coroa de espinhos, o Rei onipotente do Universo refutou para sempre a mentira de Satanás. “Ele Se esvaziou, assumindo a forma de servo […] Se humilhou, tornando-Se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2:7, 8). Diariamente, Ele nos suplica: “Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar” (Fl 2:5). O orgulho e o egoísmo se derretem diante da glória ardente que emana do Calvário.

Outro antídoto potente para o veneno da fome de poder hierárquico é lembrar que a igreja não é meramente uma organização terrena. Jesus, de forma intencional, iniciou a Grande Comissão com a declaração: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e na Terra” (Mt 28:18). Esse lembrete, dirigido aos novos líderes da incipiente igreja cristã, também representa um farol de esperança para o remanescente dos últimos dias. Jesus é o único líder de Sua igreja!

Como nenhum líder é perfeito, as imperfeições da liderança – e, em alguns casos, até mesmo a corrupção total – prejudicarão o trabalho evangelístico da igreja. Os erros mancharam a biografia de Noé, Abraão, Davi, Pedro e de todos os outros líderes espirituais desde a criação, com exceção de Jesus. No entanto, apesar das dificuldades inevitáveis, a organização pode se tornar uma ferramenta valiosa, mais uma ajuda do que um obstáculo.

Nossa estrutura mundial potencializa nossa capacidade de alcançar o alvo dado por Deus de levar o evangelho ao mundo. No entanto, em última análise, precisamos de mais do que esforços simplificados. Somente por meio do poder do Espírito Santo podemos cumprir a Grande Comissão de Mateus 28. E como podemos receber esse derramamento do Espírito?

3. Os discípulos só receberam o poder do Espírito Santo (At 2) depois que abandonaram a ideia de “quem é o maior” e, em vez disso, buscaram entrar em “um só acordo” (At 1). Somente a cruz pode confrontar adequadamente as tendências carnais da autoexaltação. Talvez uma crise cataclísmica seja o único caminho para a unidade intencional demonstrada pela chuva temporã. Mas, mesmo fora de uma crise, precisamos da comunhão com outros crentes imperfeitos como nós.

O caráter de Deus é expresso em uma lei relacional. Somos chamados a ser a imagem de Deus, não como indivíduos que se esforçam sozinhos para alcançar a perfeição, mas como um mosaico multifacetado de comunidade missionária, unidos pelo amor abnegado. “Quando o caráter de Cristo se reproduzir perfeitamente em Seu povo, então virá para o reivindicar como Seu” (Ellen G. White, Parábolas de Jesus [CPB, 2022], p. 34). Longe de ser uma visão de perfeccionismo individualista, o contexto dessa declaração se refere ao fruto do Espírito que se manifesta no corpo de Cristo, à medida que abandonamos a autoexaltação para servirmos uns aos outros, mesmo que seja com sacrifício.

A conexão humilde com um corpo diversificado de cristãos também ajuda a corrigir os deslizes do extremismo ou do erro teológico. Ela fornece estrutura para a adoração semanal, utiliza uma variedade de talentos e oferece oportunidades frequentes para desenvolver o fruto do Espírito. Mesmo que algumas pessoas conseguissem manter um equilíbrio teológico e relacional perfeito sozinhas, o fato de se recusarem a ter comunhão com outros cristãos não seria um modelo saudável a ser seguido por seus filhos e outros que são levados a Cristo. Os membros precisam de comunidade. Precisa de mais um motivo para não desistir? Vamos conferir a profecia.

4. “Serão religiosas apenas na aparência, mas rejeitarão o poder” (2Tm 3:5, NVT). Essa afirmação de Paulo descreve os professos seguidores de Cristo no tempo do fim. Desde o início, Deus chamou pessoas falhas para se unirem e proclamarem ao mundo sobre Ele. O trigo e o joio crescem juntos até a colheita, e “a colheita é o fim do tempo da graça” (ibid., p. 36). O Apocalipse não descreve nenhuma saída mágica para a mornidão de Laodiceia, a última igreja. Enfrentar o mal em uma igreja morna certamente será uma necessidade no fim dos tempos, pois “o amor se esfriará de quase todos” (Mt 24:12).

Diane Langberg afirmou: “Somos os dissidentes de Deus. […] Nunca devemos concordar em ‘proteger’ o nome de Deus encobrindo a impiedade. Em Efésios 5:11, Paulo nos adverte a não participar das obras das trevas, mas, em vez disso, a expô-las. Entenda que você, sozinho, não pode mudar todo um sistema; você não foi chamado para isso. No entanto, devemos falar a verdade sobre nossos sistemas. […] As pessoas são sagradas, criadas à imagem de Deus. Os sistemas não são. Eles só valem pelas pessoas que os integram e pelas pessoas a quem servem. E as pessoas devem ser tratadas […] da mesma forma que Jesus Cristo as tratou” (Redeeming Power [Brazos Press, 2020], p. 86, 87). Os profetas foram apedrejados por um motivo – a repreensão necessária nunca é bem recebida. Por que deveríamos esperar que resistir ao mal se tornasse mais fácil no tempo do fim?

O exemplo de Jesus não foi o de um pacificador superficial, mas de um verdadeiro pacificador. Ele se indignou com os líderes espirituais, chegando a usar um chicote e virar mesas. A glória de Deus se levanta contra o mal profundo na igreja. No entanto, a repreensão é mais eficaz de dentro para fora. Jesus continuou a ter comunhão com os fiéis judeus enquanto se levantava contra o mal.

Os pacificadores devem estar atentos: a autoexaltação é uma armadilha que funciona para os dois lados. A humildade é nossa única defesa contra a hipocrisia. A verdade deve ser dita em amor, tendo a salvação como meta. Ao repreender, devemos demonstrar gentileza, sabendo que, no julgamento, podemos ser responsabilizados por um ato bem-intencionado que machucou alguém.

Decisão importante

“Esta é a igreja de Deus. Não vou sair daqui”, concluiu, felizmente, minha amiga mencionada no início deste artigo. De Gênesis a Apocalipse, as Escrituras repetem uma promessa garantida: a glória de Deus será revelada em Sua igreja. Ellen White escreveu: “Embora existam males na igreja, e tenham de existir até ao fim do mundo, a igreja destes últimos dias há de ser a luz do mundo poluído e desmoralizado pelo pecado. A igreja, débil e defeituosa, precisando ser repreendida, advertida e aconselhada, é o único objeto na Terra ao qual Cristo confere Sua suprema consideração” (Conselhos Para a Igreja [CPB, 2010], p. 244). Ela ainda explicou que “a igreja é o instrumento escolhido por Deus para a salvação dos seres humanos. Foi organizada para servir, e sua missão é levar o evangelho ao mundo […]; por meio dela, a demonstração final e plena do amor de Deus será manifesta no devido tempo, até mesmo aos ‘principados e potestades nos lugares celestiais’” (Ef 3:10; Atos dos Apóstolos [CPB, 2021], p. 7).

A verdadeira igreja de Deus não é apenas uma organização. É um movimento de pessoas que espalham o amor de Deus – juntas. Jesus é o Cabeça; o mundo é nosso campo missionário. Seu povo deve se unir para cumprir a oração de Jesus: “A fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que Tu Me enviaste” (Jo 17:23). 

NICOLE PARKER é professora de Religião na Universidade Adventista do Sul, em Collegedalle (EUA)

(Texto publicado na Revista Adventista / Adventist World de maio/2025)

Última atualização em 2 de junho de 2025 por Márcio Tonetti.