Tratado que abriu as portas para a imigração nipônica no país completa 120 anos hoje. E o batismo do primeiro adventista de origem japonesa no Brasil foi realizado há 90 anos, por influência da educação confessional
Leonardo Siqueira
É praticamente impossível não notar a presença japonesa no bairro da Liberdade, em São Paulo. Um pedaço do Japão incrustado na capital paulistana, o bairro “mais oriental” do Brasil é, sem dúvida, um dos principais símbolos da imigração nipônica no país e um reduto da comunidade de fala japonesa em solo tupiniquim.
Uma das principais rotas da imigração nipônica no Brasil no início do século 20, o Estado de São Paulo concentra, hoje, dois terços do total de 1,5 milhão de nikkeis que residem no país. Eles são japoneses que vivem fora de sua terra natal ou descendentes nascidos no exterior. Além de São Paulo, os nikkeis se radicaram no Paraná, Mato Grosso do Sul e Pará.
Um navio no porto de Santos
A imigração nipônica no Brasil data de 18 de junho de 1908, com a chegada do navio a vapor Kasato Maru, em Santos (SP), que trouxe de Kobe os 781 primeiros japoneses vinculados ao acordo imigratório estabelecido entre os dois países. O documento, conhecido como Tratado da Amizade, Comércio e Navegação, que este mês completa 120 anos, foi assinado no dia 5 de novembro de 1895, em Paris, e deu início à imigração japonesa no Brasil.
A motivação para o acordo era recíproca: o Brasil pós-escravatura precisava de mão de obra para as lavouras de café, enquanto que o Japão enfrentava uma forte crise demográfica, com o fim do feudalismo e o início da mecanização da agricultura.
Os primeiros imigrantes, vindos em sua maioria de áreas rurais no Japão, cruzaram o Pacífico com quase nenhum dinheiro no bolso, mas com a perspectiva de uma vida melhor nas lavouras do Brasil.
Foi assim – com poucos recursos e sem dominar o idioma do novo país – que os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil.
A geração nascida no Japão foi, sem dúvida, a que teve mais dificuldade para se adaptar à nova realidade. Além de se submeter às estafantes jornadas de trabalho em troca de baixos salários, os primeiros japoneses tinham descontado do pagamento a passagem de vinda, além de precisarem comprar praticamente tudo o que consumiam nas terras dos fazendeiros para quem trabalhavam. Por isso, em pouco tempo, estavam endividados.
Além disso, como pretendiam voltar à sua terra natal, os estrangeiros não se preocupavam em fixar raízes no Brasil. Não por acaso, boa parte desses imigrantes nunca aprendeu a falar o português.
Com o passar do tempo, porém, a situação foi mudando e muitos japoneses conseguiram estabelecer comércios na região central da cidade de São Paulo, como no bairro da Liberdade, que hoje abriga o Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil.
Primeiros japoneses conversos ao adventismo no Brasil
Apesar de a imigração japonesa no Brasil ter começado na primeira década do século 20, a conversão dos primeiros japoneses ao adventismo no país só foi ocorrer anos mais tarde.
O primeiro adventista do sétimo dia de origem nipônica no Brasil foi Samulo Kitajima – há registro do mesmo nome em uma dissertação de mestrado de um pastor adventista de origem japonesa com a grafia Saburo Kitajima – em 1925, fruto da influência do então Colégio Adventista Brasileiro (CAB), hoje Unasp, campus São Paulo. Filho de um médico, Kitajima faleceu cinco anos após sua conversão, em 1930.
Em seguida, Tossaku Kanada, Shichiro Takatohi, Noboru Nishide, Kiyotaka Shirai, Kiyoshi Hosokawa e Seiji Onoda, todos ex-alunos do CAB, também se uniram à fé adventista ao longo das décadas de 1930 a 1950. Desses, quatro se tornaram pastores: Kanada, Takatohi, Shirai e Hosokawa. Segundo aponta o historiador Elder Hosokawa, eles foram os pioneiros da comunidade adventista japonesa no Brasil.
Os primeiros passos
Em São Paulo, o trabalho com os japoneses foi iniciado em 1957 com o pastor Kiyotaka Shirai, responsável pela produção de A Voz da Profecia em língua japonesa. A adaptação do mais antigo programa religioso do rádio no Brasil cessou em 1966.
Em fevereiro de 1965, após regressar de uma viagem ao Japão, na qual havia buscado aperfeiçoamento em evangelismo, o pastor Tossaku Kanada organizou o Grupo Japonês, que se reunia aos sábados no salão dos jovens da Igreja Central Paulistana.
Esse foi o primeiro grupo organizado de japoneses adventistas no Brasil e contava, inicialmente, com 16 membros. Na década de 1960, com a chegada dos pastores Yudi Eida e Kiwao Mori, o grupo cresceu rapidamente, chegando a 42 membros. Com 60 pessoas, já na década de 1970, o grupo foi oficialmente organizado como igreja.
Liberdade na prisão
Em meio à efervescência nacionalista da Era Vargas, nas décadas de 1930 e 1940, que resultou na desconfiança generalizada contra os grupos ligados aos países do “Eixo”, como Japão, Itália e Alemanha, o pastor adventista japonês Tossaku Kanada chegou a ser preso em São Paulo.
Segundo explica o historiador Elder Hosokawa, em 1937, Tossaku Kanada havia pregado sobre o sábado a um jovem que, tempos depois, serviria ao exército em Campo Grande (MS). Por não querer trabalhar aos sábados, o rapaz acabou sendo detido. Pressionado, ele alegou que sua postura havia sido influenciada por um pastor japonês. Imediatamente, o pastor Kanada foi localizado em São Paulo, onde trabalhava, e preso.
Tossaku Kanada foi condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional, com base num decreto de 1938, por “incitar a desobediência” às autoridades. A pena determinava de um a três anos de prisão. Defendido pelo advogado Evandro Lins e Silva, felizmente o pastor foi absolvido de todas as acusações no dia 29 de outubro de 1944.
Foi por meio desse curioso episódio que a mensagem adventista chegou a Noboru Nishide, um comerciante japonês em Piracicaba (SP), que a exemplo do pastor Kanada, também havia sido preso injustamente.
“Nishide era um comerciante japonês, que por medo de possíveis reflexos negativos da 2a Guerra Mundial no Brasil, e prevendo a escassez de gêneros alimentícios, comprou-os em grande quantidade e armazenou-os para enfrentar aqueles tempos difíceis. Ao comprar querosene, para usar no lampião, despertou suspeitas de querer incendiar alguma plantação. Aprisionado, foi colocado numa pequena cela com outros 17 prisioneiros”, detalha Hosokawa, que coordena o curso de História do Unasp, campus Engenheiro Coelho.
Preso, Nishide acabou entrando em contato com outros japoneses, entre eles o pastor Kanada. Conforme relatou o próprio ministro em entrevista à Revista Adventista de abril de 1975, havia no presídio de imigração um grupo de japoneses evangélicos que se reunia para cantar hinos e estudar a Bíblia. Kanada estudou as profecias do Apocalipse com alguns detentos, entre eles Nishide que, em 1943, decidiu abraçar a fé adventista.
Após recuperar seus direitos e voltar a atuar como um ministro da Igreja Adventista, Kanada encaminhou Noboru Nishide ao CAB, onde o recém-converso trabalhou do início da década de 1940 até 1970, chegando, inclusive, a ocupar o posto de chefe de manutenção da instituição.
Embora a conversão de Nishide e sua esposa, Toshie, não tenha ocorrido imediatamente à sua libertação da prisão, não há dúvidas de que a influência do pastor Kanada e do Colégio Adventista Brasileiro foram cruciais para que esse pioneiro aceitasse a Cristo.
Hosokawa conta que, após receber, ainda na prisão, um exemplar da Lição da Escola Sabatina – guia de estudos bíblicos diários da Igreja Adventista – Nishide voltou à Piracicaba, mas nunca conseguiu se libertar das palavras “lembra-te do dia de sábado”.
Incomodado com a mensagem do quarto mandamento, escreveu à Casa Publicadora Brasileira pedindo o endereço do pastor Kanada. Após receber uma carta do pastor Luiz Waldvogel com o endereço do ministro, Nishide decidiu visitar seu antigo companheiro de prisão. Mesmo após conversar durante muito tempo sobre o sábado, Nishide ainda não havia se decidido. No entanto, após ser encaminhado por Kanada ao pastor Siegfried Kümpel, recebeu outro estudo sobre o sábado e aceitou a mensagem bíblica.
Templos para a comunidade adventista japonesa no Brasil
Antes de 1959, os japoneses recém-conversos ao adventismo frequentaram igrejas brasileiras, apesar de a maioria ter enfrentado dificuldades para entender o português.
Shirai, após regressar de uma viagem aos Estados Unidos, onde havia estudado por quatro anos, reuniu em 1959 um grupo de japoneses em uma sala que pertencia a um grupo de adventistas de origem alemã, na Igreja Central Paulistana, localizada no bairro da Liberdade.
Até a organização do primeiro grupo adventista japonês, em 1965, a comunidade de fala japonesa se reuniu em pelo menos dois lugares, na sala da Igreja Central Paulistana e na Igreja de Pinheiros. A medida em que o pastor Kanada iniciou o trabalho com o grupo da Central Paulistana, Shirai passou a liderar o grupo de Pinheiros. O segundo grupo, no entanto, se desfez, e os membros passaram a congregar no templo central da capital paulista.
Com a chegada dos pastores Yuji Eida e Kiwao Mori, o grupo cresceu rapidamente, chegando a 42 membros, ainda na década de 1960. Em 1978, já sob a liderança do pastor Mori, o casal Ping Yiu e Massako Lam doou um terreno para a construção do templo, que foi dedicado anos mais tarde, em 19 de fevereiro de 1981, e contava com 80 membros.
No Norte do Brasil, por sua vez, o Centro Nipônico Adventista foi fundado em 1979, em Belém (PA). O início do trabalho com os japoneses na região se deu a partir da conversão de Toyoyuki Tamai, um jovem agrônomo de origem japonesa formado em Osaka, que havia chegado ao Brasil em 1934. Casado com uma brasileira adventista, Tamai enviou seus filhos para duas instituições de ensino da igreja, conforme relata o pastor Walter Streithorst no livro Minha vida na Amazônia, da CPB.
Anos mais tarde, com a chegada do pastor japonês Kojiro Matsumani, que se radicou em Belém do Pará em 1972, a comunidade adventista japonesa daquela localidade começou a ganhar forma.
Kojiro fazia frequentes viagens às colônias japonesas existentes na região, e chegou a abrigar em sua casa, a pedido de japoneses residentes no Pará, alunos de origem nipônica que buscavam educação no estado. Com a doação e a ajuda de voluntários, Kojiro construiu um dormitório que passou a funcionar em julho de 1977. Dois anos depois, todas as demais instalações, incluindo o templo, foram concluídas.
Conforme o historiador Elder Hosokawa, a família Matsunami trabalhou quase dez anos na região, fundando o Centro Nipônico Adventista, onde funcionou uma escola de língua japonesa e uma congregação de imigrantes.
Ainda segundo Hosokawa, o pastor Matsumani trabalhou com outros dois ministros nipônicos, Yosaburo Bando e Kiwao Mori que, por sua vez, atuaram entre os japoneses no Paraná e em São Paulo.
O historiador destaca que Matsunami fundou uma congregação japonesa adventista no bairro paulistano da Liberdade, trabalhando notadamente com os jovens e universitários nisseis. Segundo Hosokawa, esse núcleo deu origem à Igreja Nipo-Brasileira, organizada em 1981 e inaugurada em 13 de dezembro de 1998. Hoje conhecido como Igreja Kibo No Niwa – em português, jardim da esperança – o templo reúne cerca de 80 membros e está localizado nas redondezas da estação de metrô Saúde, no bairro Mirandópolis.
Desafios contemporâneos
Essa comunidade é um bom exemplo de como o desafio de alcançar diferentes etnias por meio de uma abordagem específica e culturalmente relevante persiste até os dias de hoje. Já no fim da década de 1970, o pastor Tossaku Kanada, pioneiro entre os japoneses adventistas no Brasil, classificava o trabalho com seu povo como um grande desafio.
“É um trabalho muito difícil, pois quase não existe material. Com a ajuda da Associação Paulista, conseguimos imprimir folhetos em japonês. Estes foram cópia dos usados no Japão. Mas tivemos que traduzir A Bíblia Fala e o Curso do Lar que temos usado. O trabalho entre eles é difícil, porque não conhecem nem as noções elementares do cristianismo, pois nasceram num país sem o conhecimento de Cristo,” disse em entrevista à Revista Adventista em 1975.
É bem verdade que a comunidade japonesa que vive no Brasil apresenta hoje um perfil diferente daquele observado no início do século 20: nos dias atuais, convivem diferentes gerações, prevalecendo os nisseis e os sanseis, os filhos e netos de japoneses, respectivamente.
“Na prática, o desafio é você conseguir, no contexto da cultura japonesa, alcançar pessoas que nasceram e viveram num ambiente diferente do nosso. O primeiro desafio é a questão cultural”, explica o pastor Valter Araújo, líder dos jovens, das comunidades étnicas e da área de missão global na Associação Paulistana da Igreja Adventista. Para ele, a estratégia deve estar centrada na cultura, na língua e no comportamento japonês.
Nesse sentido, a comunidade Kibo No Niwa, que passou por uma nova fase, com a mudança de nome e a incorporação do japonês em atividades relacionadas à igreja, busca atrair um maior número de nipônicos.
“Quando você pensa nos japoneses, uma das principais dificuldades é alcançar as diferentes faixas etárias. O caminho que a Kibo No Niwa tem buscado são as feiras de saúde, a fim de atingir os mais idosos, e os cursos de culinária e antitabagistas. Assim, pode-se atrair diferentes públicos, já que os idosos precisam dos descendentes para levá-los e buscá-los à igreja. Temos tentado adotar uma roupagem mais ‘atualizada’”, comenta.
Segundo o pastor aposentado Kiwao Mori, que atua na comunidade adventista japonesa Kibo No Niwa, a incorporação de elementos da cultura japonesa também ajuda a quebrar preconceitos.
O fato é que o trabalho com os imigrantes, apesar de lento em seus resultados, comparado à evangelização de brasileiros, pode ultrapassar barreiras e o próprio mar. Afinal, um japonês ou descendente convertido aqui pode fazer o caminho reverso dos imigrantes e levar a luz do evangelho para a terra do sol nascente.
Leonardo Siqueira é jornalista e pós-graduado em Jornalismo Científico pela Unicamp (com informações de Márcio Tonetti e Michelson Borges, e infografia de Eduardo Olszewski)
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https://www.youtube.com/watch?v=iFbGJTedleY
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.