O código da profecia

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Entender os períodos de tempo mencionados no livro de Daniel ajuda a ver a mão de Deus na história

o-codigo-da-profecia-Sinais-RA-junho-2015-creditos-fotoliaEm anos recentes, alguns teólogos adventistas começaram a aplicar ao futuro os períodos de tempo em Daniel 12. Rejeitando a interpretação adventista tradicional que considera os três tempos e metade de um tempo (v. 7), os 1290 dias (v. 11) e os 1335 dias (v. 12) períodos proféticos já cumpridos, eles alegam que esses períodos devem ser entendidos como dias literais ainda no futuro. Para outros estudiosos, esses períodos de tempo seriam um mero recurso literário para indicar uma aparente “demora” do tempo do fim. Outros ainda acham que essas profecias podem ser interpretadas a partir de uma abordagem múltipla. Quem tem razão?

Ao longo da história, os adventistas fizeram diferentes tentativas de explicar o significado dos 1290 e dos 1335 dias de Daniel 12. De acordo com Gerhard Pfandl, que atuou durante vários anos no Instituto de Pesquisa Bíblica, a interpretação desses versos constitui um dos dez maiores desafios proféticos que os teólogos adventistas enfrentam hoje. O consenso geral que há em relação aos 1260 dias e às 2300 tardes e manhãs não existe no caso dos 1290 e dos 1335 dias.

As interpretações adventistas de Daniel 12:11 e 12 podem ser agrupadas em três categorias: (1) abordagem simbólica e historicista, que é a mais aceita pelos teólogos adventistas; (2) interpretação literal, que coloca os eventos totalmente no passado ou no futuro; e (3) visão idealista, a qual propõe que esses períodos possam ser ligados a vários eventos.

INTERPRETAÇÃO HISTORICISTA

A interpretação historicista tradicional vem de longe. Desde o tempo da Reforma, um grupo significativo de intérpretes tem estudado os períodos proféticos de Daniel a partir dessa metodologia. No fim do século 18, Thomas Newton (em seu livro Dissertations on the Prophecies) e John Bacon (em Conjectures in Prophecies) dedicaram bastante espaço à análise exegética das profecias de Daniel 12.

Um novo interesse pelas profecias de Daniel atingiu seu clímax na primeira metade do século 19 com o movimento milerita. William Miller (mais conhecido no Brasil como Guilherme Miller) e um grupo de pregadores itinerantes apresentaram a abordagem pré-milenialista mais convincente das profecias de tempo de Daniel. Para eles, Jesus voltaria antes do milênio, e não depois dele. Miller desenvolveu uma série de princípios para interpretar a Bíblia e suas profecias. A 12ª regra dele dizia que o intérprete de Daniel e do Apocalipse deve descobrir “o verdadeiro evento histórico para o cumprimento de uma profecia”. O intérprete precisa comparar os detalhes proféticos com os registros históricos para determinar o evento que cumpre de maneira literal cada palavra da profecia.

Seguindo seu método, Miller conectou o início dos 1290 e dos 1335 anos com a remoção da “abominação desoladora”, a qual ele identificou com Roma pagã. O pregador acreditava que o poder civil de Roma desfrutaria um total de 666 anos de supremacia (de 158 a.C. a 508 d.C.). A partir desse tempo (508 d.C.), os 1290 e os 1335 anos terminariam, respectivamente, em 1798 e 1843. Ele calculou o ponto inicial desses períodos conectando Apocalipse 13:18 com Daniel 11:31. O poder do papado, substituindo o poder da Roma pagã, duraria 1290 anos (de 508 a 1798). Em 1798, o poder do papado seria tirado, deixando 45 anos para o anúncio do evangelho e o preparo para a segunda vinda de Jesus. Miller assumiu que o número da besta se refere aos anos em que o quarto reino teria domínio sobre os judeus e os cristãos.

O diagrama profético desenvolvido por Charles Fitch e Apollos Hale sintetizou, unificou e melhorou as posições mileritas sobre os tempos proféticos. Segundo o historiador Edwin LeRoy Froom, esse diagrama representou um “claro avanço” sobre os diagramas anteriores. Talvez sua omissão mais significativa tenha sido a conexão feita por Miller entre Apocalipse 13 e Daniel 11, identificando o “diário” com o paganismo. Contudo, esse diagrama manteve dois pontos essenciais: (1) o ano 508 como ponto de partida dos 1290 e dos 1335 anos; e (2) a harmonia desses períodos com os outros períodos proféticos do livro de Daniel.

A interpretação de Miller teve grande impacto no pensamento dos pioneiros adventistas, que mantiveram as mesmas datas para o início e o fim dos 1290 e dos 1335 anos. James (ou Tiago) White, Ellen White, Joseph Bates, Hiram Edson e outros continuaram defendendo a precisão do diagrama profético de 1843. Em novembro de 1850, Ellen White escreveu na revista Present Truth: “Vi que o diagrama de 1843 foi dirigido pela mão do Senhor e que não deve ser alterado.”
Um artigo publicado por Hiram Edson na Review and Herald em 1856 mostra que os adventistas ainda adotavam os cálculos de Miller para os 1290 e os 1335 anos e continuavam a ligar os tempos proféticos de Daniel 12 com as demais profecias de tempo do livro de Daniel. Por exemplo, Uriah Smith afirmou na Review and Herald em 1867 que “a primeira visão, com seu longo período de 2300 anos, estaria continuamente na mente de Daniel, e os outros períodos mencionados (1260, 1290 e 1335 dias) seriam apenas subdivisões do primeiro”.

A maioria dos modernos intérpretes adventistas, com base na abordagem exegética, continua apoiando a posição tradicional dos pioneiros. William Shea, um grande estudioso das profecias, abraça todas as pressuposições do historicismo adventista. No livro Daniel: A Reader’s Guide, ele enfatizou que as profecias de Daniel “começam no tempo histórico do próprio profeta e se estendem ao futuro, após os dias do profeta”.

Shea fez uma cuidadosa análise dos 1290 e dos 1335 dias e concluiu que essa parte é “um epílogo ou apêndice para as profecias de 11:2–12:4”. Segundo ele, a estrutura de Daniel indica que os períodos sempre seguem o relato da visão. Portanto, os componentes de tempo nunca são parte das visões, mas das explicações. Além disso, os tempos proféticos “estão ligados pelos eventos que eles descrevem” e “nunca datam novos eventos”.

Em seu livro Daniel: The Seer of Babylon, Gerhard Pfandl igualmente usou argumentos exegéticos para explicar os 1290 e os 1335 dias a partir de bases históricas. Ele apoiou sua análise por meio de três pontos. Primeiro, há um notável paralelismo entre Daniel 12:11 e 11:31, indicando que ambos os textos representam os mesmos eventos históricos. Em segundo lugar, o conceito de “diário” (tamid) liga intimamente as passagens proféticas de Daniel 8:11, 11:31 e 12:11. Portanto, o significado da passagem prévia ajuda a esclarecer o significado das outras. Por fim, embora o anjo não tenha especificado para Daniel o ponto inicial dos 1335 dias, o contexto sugere que ele seja o mesmo dos 1290 dias.

Um ano depois da publicação de seu livro, Pfandl ampliou e enriqueceu seus argumentos num panfleto intitulado Time Prophecies in Daniel 11, dizendo que as profecias de Daniel são apresentadas “de acordo com o princípio da repetição e ampliação”, em que cada visão “é sempre seguida por explicações”. Assim, Daniel 12:5-13 seria um “epílogo” ou ampliação da visão precedente de Daniel 11, e não “uma nova visão com um novo tópico”. Além disso, ele defendeu que as palavras hebraicas pala (“coisas incríveis”, “maravilhas”) e tamid (“diário”, “contínuo”) também ligam essas seções finais com os eventos de Daniel 11 como referência às horríveis blasfêmias pronunciadas pelo rei do norte. Pfandl concluiu que os 1290 e os 1335 dias começam com a conversão de Clóvis em 508 e terminam, pela ordem, em 1798 e 1843/1844.

INTERPRETAÇÃO LITERAL

A interpretação tradicional adventista, que defende que as profecias de Daniel 12 devem ser interpretadas usando- se o princípio de um dia por um ano (conforme Lv 25:8; Nm 14:34; Ez 4:6, 7) e o método historicista, permaneceu por décadas sem ser desafiada. Contudo, uma série de estudos recentes feitos por teólogos e leigos mudou o panorama. Por um lado, alguns sugerem que esses períodos proféticos cubram um período literal no passado, apenas alguns anos após a morte de Daniel. Essa escola, que teve pouco impacto no pensamento adventista, é conhecida como preterista. Por outro lado, há um grupo mais recente que começou a enfatizar uma nova abordagem futurista para os 1290 e os 1335 dias. Mas essa metodologia não deve ser confundida com a escola futurista protestante.

Todo Adventista deveria estudar o livro de Daniel para entender a história pela perspectiva de Deus, mas é preciso saber interpretar os códigos utilizados pelo profeta

Alberto Timm e Gerhard Pfandl consideram a interpretação futurista a mais desafiadora para a escatologia adventista. Ao que parece, Robert Hauser foi um dos primeiros a apresentar a ideia de um cumprimento futuro dessas profecias. Seu pensamento encontrou eco em alguns membros e até pastores e teólogos. Por exemplo, o Dr. Siegfried Schwantes, teólogo brasileiro, e Kenneth Cox, conhecido evangelista, defenderam um cumprimento literal desses “dias” de Daniel antes da segunda vinda de Jesus. Samuel Nuñez, um erudito na área do Antigo Testamento, também advoga essa interpretação.

Para Nuñez, os 1260, 1290 e 1335 dias são literais e se cumprirão no futuro, tendo início com uma lei dominical nacional ou universal. Segundo ele, há várias razões para se pensar assim. Uma delas seria a estrutura quiástica de Daniel 12, a qual indica que os versos 1 a 6 e 8 a 13 têm que ver com os eventos do tempo do fim. Além disso, diz Nuñez, sempre que o Antigo Testamento usa as palavras yom ou yamim (“dia”, “dias”) com um número ordinal ou cardinal, a medida descrita é literal. Isso seria evidente pelo fato de que, ao apresentar os períodos simbólicos de Daniel 7 (iddan), Daniel 8 (ereb boqer), Daniel 9 (sabuim) e Daniel 12:7 (mo’ed [“tempo”]), o profeta nunca usou o termo yom (“dia”).

Para Nuñez, Daniel empregou a mesma estratégia literária em todas as visões: descreve a visão e então menciona o período profético (7:2-14, 25; 8:3-12, 14, 26; 11:2–12:4, 7, 11, 12). Os únicos períodos que devem ser entendidos literalmente seriam os apresentados em Daniel 12:11 e 12. Porém, enquanto nas três primeiras visões do livro (capítulos 2, 7, 8) a estrutura literária tende a ser simbólica, nos últimos capítulos (11, 12) ela tende a ser literal. A expressão “homem vestido de linho” (11:6) indicaria que a visão de Daniel 12 deve ser entendida como apontando para o tempo do fim.

Essa abordagem ganhou certo apoio no meio adventista, mas foi pequeno em comparação com a visão historicista tradicional.

INTERPRETAÇÃO IDEALISTA

A interpretação idealista, com sua perspectiva multifocal, também representa o pensamento da minoria. Não tiveram muita aceitação os cumprimentos múltiplos defendidos por Desmond Ford (o chamado “princípio apotelesmático”) e a abordagem literária de Zdravko Stefanovic. Ford propôs uma interpretação para tentar harmonizar todos os principais sistemas de estudos proféticos (historicista, preterista e futurista). Por sua vez, Zdravko defendeu uma abordagem idealista ou espiritual que minimiza a aplicação histórica das profecias apocalípticas.

Desmond Ford analisou Daniel 12 a partir de um método histórico-crítico-gramatical-contextual. No prefácio do Commentary of Daniel escrito por Ford, o erudito F. F. Bruce observou que o teólogo adventista redigiu sua dissertação de doutorado “com base na exegese primária do texto bíblico”, enquanto no comentário ele explorou o “senso plenário” das visões de Daniel. Ford esboçou brevemente sua posição a respeito dos 1290 e dos 1335 dias, dizendo que essas datas poderiam ser entendidas pelo princípio do dia-ano ou dia-dia. Assim, esses períodos teriam dois cumprimentos completos. Para ele, a profecia se cumpriu com Antíoco Epifânio e suas ações repulsivas no templo de Jerusalém. Um cumprimento secundário teria ocorrido ao longo da história da igreja medieval, com “a supremacia do anticristo entre 538 e 1798”. Mas Ford não limitou os possíveis cumprimentos dessas profecias a esses dois eventos, pois haveria outro provável cumprimento nos últimos dias.

Há poucos anos, Zdravko Stefanovic, professor de estudos em Antigo Testamento, escreveu um comentário sobre Daniel intitulado Daniel: Wisdom to the Wise, que recebeu elogios por apresentar novas perspectivas e, ao mesmo tempo, preservar a compreensão histórica adventista.

O autor dividiu seu comentário em três partes principais. Primeiro, ele explorou os aspectos linguísticos, literários e históricos do texto original. Na segunda seção, ele fez uma exposição, apresentando o que o autor quis dizer. A última parte é um sumário do ensino do livro, explicando o significado do texto para hoje. Stefanovic se distanciou das aplicações históricas das profecias de Daniel e, portanto, do seu significado simbólico.

Para ele, os 1260, os 1290 e os 1335 dias aparecem em progressão numérica, o que levaria o leitor do livro a saber que uma aparente “demora” quanto à expectativa do fim é possível do ponto de vista humano. Portanto, Deus não teria revelado a Daniel uma sequência histórica de suas ações, mas apenas informado que suas batalhas contra as forças espirituais antagônicas durariam mais do que Daniel e os crentes poderiam prever. Porém, nesse caso, Daniel seria um livro sem nenhuma ênfase profética e escatológica.

Depois de analisar essas perspectivas, podemos concluir que a abordagem simbólica de Daniel 12:11 e 12 ainda é a interpretação mais plausível. Ela respeita a estrutura literária, contextual e temática do livro de Daniel. Conforme enfatizou Jean Zukowski em sua tese defendida na Universidade Andrews em 2009, os anos de 508 e 538 se destacam como datas-chave em que “os modelos de relacionamento entre igreja e estado e entre governantes e clérigos mudaram”.

A interpretação adventista tradicional das profecias de Daniel continua válida e faz parte da nossa identidade escatológica. Contudo, aproveitando o conceito de “verdade presente” tão caro ao adventismo, ela pode ser refinada e se beneficiar da mentalidade pós-moderna para apresentar novos aspectos e apoiar uma contínua expectativa da segunda vinda de Jesus. [Créditos da imagem: Fotolia]

ABNER F. HERNANDEZ está cursando o doutorado em história da igreja na Universidade Andrews

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.