O legado de Guilherme Stein Jr., o primeiro adventista batizado no Brasil
Michelson Borges

Naquela tarde de 1990, Roberto Conrad Filho, ex-integrante do quarteto Arautos do Rei, caminhava pelas ruas movimentadas do centro do Rio de Janeiro. Como de costume, ele iria visitar um grande sebo e, quem sabe, retornar para casa com alguma obra rara para se deleitar com a leitura. O que ele não sabia é que, naquele dia, encontraria um tesouro histórico.
Ao entrar na loja, foi percorrendo as estantes com os olhos até que se deparou com um volume espesso e pesado, cuja capa estava bastante desgastada e as páginas amareladas. Pegou-o com cuidado e teve a primeira surpresa ao descobrir que se tratava de uma Bíblia em alemão e hebraico. Ao abrir na primeira página, a surpresa foi ainda maior: o livro havia pertencido a Guilherme Stein Jr., o primeiro adventista batizado no Brasil!
Ali estava a assinatura do pioneiro, com sua caligrafia inconfundível. Além disso, entre as páginas, estavam cuidadosamente coladas folhas de papel seda contendo diversas anotações de Guilherme em alemão e hebraico, o que tornava aquele volume ainda mais precioso. Roberto pensou: “Acabo
de presenciar um milagre!” Sim, pois qual seria a probabilidade de uma Bíblia do século 19, pertencente a um pioneiro adventista, “perdida” em uma livraria no centro de uma metrópole, ser encontrada por um adventista que conhecia a história de seu antigo dono?
Imediatamente, Roberto comprou o livro e o levou para casa, guardando-o como um tesouro. Com o tempo, porém, passou a ter a forte impressão de que não deveria ficar com ele e que precisava doá-lo à Sociedade Criacionista Brasileira (SCB), uma vez que Guilherme é considerado o pioneiro do criacionismo no Brasil. Roberto então ligou para os líderes da SCB em Brasília, que, prontamente, viajaram até o Rio para buscar a Bíblia.
Atualmente, o exemplar se encontra no acervo do Centro Cultural da SCB, na capital federal, e evidencia a profundidade intelectual, o conhecimento de línguas e o interesse de Guilherme pela Palavra de Deus.
Contato com os adventistas
De origem alemã e luterana, a família de Guilherme Stein Jr. veio para o Brasil em 1854 e se estabeleceu na região de Indaiatuba, no interior do estado de São Paulo. Guilherme nasceu em Campinas, em 13 de novembro de 1871. Com 11 anos, completou os cinco anos de estudos primários em um colégio alemão luterano. Esse foi o máximo que conseguiu avançar na educação formal.
Em 1893, aos 22 anos, Guilherme se mudou para Piracicaba, onde passou a residir na casa dos pais de Maria Krähenbühl. Algum tempo depois, ele e Maria se casaram. Os Krähenbühl eram metodistas, e Guilherme começou a frequentar a igreja com eles. Nesse período, tornou-se um dedicado leitor da Bíblia, levantando-se todos os dias às cinco horas da manhã para estudar a Palavra de Deus antes de ir para o trabalho nas Oficinas Krähenbühl.
Já em 1870, a empresa contava com 40 funcionários e operava com máquinas a vapor às margens do rio Corumbataí. Em poucos anos, ela se destacou no cenário nacional, tornando-se uma das primeiras oficinas metalúrgicas do Estado de São Paulo (link.cpb.com.br/85f62f). Percebendo o quão capaz e dedicado Guilherme era, seu sogro, João, lhe ofereceu, por três vezes, sua parte na empresa. No entanto, a leitura de um livro mudou completamente o rumo da vida do jovem, levando-o a renunciar uma promissora carreira como empresário.
“Maria Krähenbühl contou a Guilherme que sua avó tinha um livro que lhe fora vendido por dois homens que não tomavam café (Augustus Stauffer e Albert Bachmeyer). O livro era o Der Grosse Kampf (O Grande Conflito). Foi grande o entusiasmo e o interesse de Guilherme ao ler esse livro. Desejou mais literatura e, ao encontrar no próprio livro o número de uma caixa postal no Rio de Janeiro, entrou em contato com William Henry Thurston, que lhe enviou mais literatura e, ao mesmo tempo, escreveu ao cunhado, Frank Henry Westphal, na Argentina, para que viesse conhecer o progresso missionário adventista no Brasil através da colportagem” (Ruth Vieira Streithorst, Pelos Caminhos e Valados [CPB, 1997], p. 51, 52).
O INTERESSE DO PIONEIRO PELA ORIGEM DOS IDIOMAS FOI DESPERTADO QUANDO ELE PESQUISAVA PARA PUBLICAR O LIVRO O SÁBADO
Guilherme dominava bem o inglês e chegou a manter contato com os responsáveis pelas publicações adventistas nos Estados Unidos. Em 20 de janeiro de 1895, foi publicada na The Home Missionary uma carta do jovem brasileiro, na qual ele se dirigia aos “irmãos de Battle Creek” e expressava o desejo de traduzir alguns dos livros que estavam sendo distribuídos pelos colportores, especialmente uma edição de Steps to Christ (Caminho a Cristo), que lhe fora dada pelo “querido irmão Stauffer”. De fato, pouco tempo depois, Guilherme traduziu para o português esse livro de Ellen White, que inicialmente ficou conhecido como Vereda de Cristo. Algum tempo depois, ele também traduziu o livro da mesma autora que lhe causara tanto impacto, o qual ficou com o título de O Conflito dos Séculos (atualmente, O Grande Conflito).

Quando recebeu a carta de Thurston informando que já havia conversos ao adventismo no Brasil, o pastor Westphal planejou sua viagem. Seria a primeira vez que um ministro adventista ordenado pisaria em solo nacional.
Acompanhado por Stauffer, o pastor Westphal seguiu primeiro para o interior de São Paulo, onde batizou os primeiros conversos desse estado, antes de se dirigir a Santa Catarina. Lá, em Gaspar Alto, organizou a primeira igreja adventista em solo nacional.
Guilherme foi batizado em uma manhã de abril de 1895, no rio Piracicaba, cujo nome, na língua indígena, significa “colheita de peixes”. “Interessante o simbolismo, porque esse primeiro batismo seria apenas o primeiro passo para uma grande colheita de pessoas”, que acabaria fazendo do Brasil o maior país adventista em número de membros (História de Nossa Igreja [CPB, 1959], p. 311).
“Escolhemos para o batismo um lugar em que uma pequena ponta de terra se projetava em direção às águas. Temendo que pudesse me atolar naquele local, pedi que o irmão Stauffer me segurasse pelo paletó com uma das mãos e, com a outra, se agarrasse a um galho de árvore, permitindo assim que eu também ajudasse o candidato. Dessa forma, entramos na água, e o batismo foi realizado”, narrou o pastor Westphal (Pioneering in the Neglected Continent [Southern Publishing Association, 1927], p. 29).
Com o total apoio da esposa, herdeira direta do patrimônio das Oficinas Krähenbühl, Guilherme renunciou à prosperidade material para se dedicar integralmente à obra evangelística adventista.
Obreiro talentoso
Guilherme desempenhou papel importante na obra adventista no Brasil como colportor, evangelista, professor, administrador, redator e editor.
No ano seguinte ao seu batismo, decidiu abandonar definitivamente a carreira de empresário para ajudar a espalhar literatura adventista em inglês entre os norteamericanos que viviam em Santa Bárbara d’Oeste (SP). Ele era fluente em inglês e alemão; por isso, procurou vender livros e fazer contatos inicialmente com falantes dessas duas línguas.
Contudo, o trabalho de Guilherme na colportagem durou pouco tempo, pois o pastor Huldreich Graf, primeiro pastor designado para trabalhar no Brasil, o convidou para assumir uma escola em Curitiba. Assim, ainda em 1896, Guilherme se mudou com a esposa para a capital paranaense, a fim de assumir o cargo de diretor e professor no Colégio Internacional de Curitiba, uma instituição particular orientada pela filosofia adventista de educação, inaugurada no dia 1º de julho daquele ano.
Em setembro de 1897, o casal Stein precisou se mudar novamente, desta vez para Gaspar Alto (SC), a fim de estabelecer a primeira escola paroquial adventista brasileira, fundada em 15 de outubro, na mesma localidade em que havia sido organizada a primeira igreja adventista no país.
Quando tudo estava funcionando bem em Gaspar Alto, inclusive com aulas no período da noite para os adultos, em outubro de 1899, Guilherme e Maria foram novamente chamados para outro desafio: mudar-se para o Rio de Janeiro, a fim de iniciar a publicação do primeiro periódico denominacional em língua portuguesa.
Além de se encarregar dos trabalhos editoriais, Guilherme também realizava evangelismo em língua portuguesa na cidade, ao lado do pastor Frederick Weber Spies. Por esse motivo, a Igreja Adventista mundial lhe concedeu uma licença ministerial, tornando-o o primeiro pastor adventista brasileiro licenciado.
GUILHERME RENUNCIOU À PROSPERIDADE MATERIAL PARA SE DEDICAR INTEGRALMENTE À OBRA EVANGELÍSTICA ADVENTISTA
Em julho de 1900, foi impresso o primeiro número de O Arauto da Verdade, periódico publicado ininterruptamente até 1913. Esse empreendimento editorial deu origem à Casa Publicadora Brasileira, editora que, neste ano, completa 125 anos de ministério. O pastor Luiz Waldvogel, um dos editores-chefes mais longevos da CPB, escreveu a respeito dos primórdios da obra editorial: “Quanto à redação nos idos de 1900, o professor Guilherme Stein sozinho dava conta de tudo: redação, tradução e revisão” (Memórias do Tio Luiz [CPB, 1988], p. 143).
Mentalidade científica
Depois de uma curta estada em Taquari (RS), em 1903, para ajudar na fundação de uma nova escola, Guilherme adoeceu e teve que se mudar para Elias Fausto, no interior de São Paulo, a fim de se recuperar da exaustão – era a segunda vez que o pioneiro sofria os efeitos do esgotamento físico e mental. Recuperado, ele dedicou mais 13 anos à intensa atividade na obra adventista, tendo que, finalmente, aposentar-se precocemente em 1918, mais uma vez debilitado pelo excesso de trabalho.
O casal Stein comprou uma modesta propriedade entre as estações de Elias Fausto e Cardeal e ali, em meio à natureza, o ex-editor e ex-professor pôde se dedicar à pesquisa e à escrita de livros, atividades que tanto lhe davam prazer. Em 1919, ele concluiu o livro O Sábado ou o Repouso do Sétimo Dia, um estudo profundo e detalhado em quase 300 páginas, podendo ser considerado o primeiro livro criacionista em língua portuguesa.
Eles viveram no Sítio Quilombo por quase 15 anos. Em 1932, venderam a propriedade e se mudaram para Piracicaba, a fim de cuidar da mãe de Maria, passando a morar com ela. Com a morte dos sogros e o recebimento de sua parte da herança, Guilherme e Maria retornaram à zona rural. Eles doaram parte do valor da herança para a assistência social adventista e, com o restante, compraram uma chácara em Anhumas, a cerca de 40 quilômetros de Piracicaba. Na ocasião, Guilherme tinha 68 anos.
Foi nesse período no campo que Guilherme, além de ajudar as pequenas igrejas da região, ministrar estudos bíblicos e tratamentos naturais, realizou intensas pesquisas sobre a origem comum das línguas (monogenismo linguístico) e das religiões, o que rendeu a publicação de três livros sobre o assunto.
A Torre de Babel e Seus Mistérios e A Origem Comum das Línguas e das Religiões, volumes 1 (1934) e 2 (obra póstuma), foram publicados pela Sociedade Criacionista Brasileira (SCB). Nesses livros, Guilherme sustentou que não seria “possível comprovar a tese do monogenismo linguístico de forma satisfatória” sem que se considerasse “simultaneamente a tese da origem comum das religiões” (Ruy Carlos de Camargo Vieira, Um Tronco Comum Para os Idiomas [SCB, 1998], p. 3). Sua abordagem é essencialmente criacionista, admitindo a origem do ser humano mediante ato criativo direto de Deus, de conformidade com Seus desígnios, obedecendo a um planejamento específico no qual a linguagem encontra suas raízes nas ideias religiosas reveladas ao ser humano a respeito da natureza e dos propósitos do Criador.
Segundo Ruy Vieira, um dos fundadores da SCB, o interesse de Guilherme pela origem dos idiomas foi despertado quando ele pesquisava para publicar o livro O Sábado (1919) e se deparou com o entrelaçamento das línguas com o relato bíblico do hexameron, termo teológico que se refere aos seis dias da criação descritos em Gênesis 1. A palavra vem do grego héx [seis] e h?méra [dia], significando literalmente “seis dias”. O aprofundamento dessas pesquisas deu origem à sua segunda obra sobre o monogenismo linguístico: O Tupi. Com base nas referências do livro O Sábado, é possível perceber a familiaridade do autor com os melhores léxicos de grego e hebraico da época, bem como seu domínio do latim e das línguas mesopotâmicas antigas.

As pesquisas sobre idiomas levaram Guilherme às aldeias indígenas do Brasil, especialmente as
localizadas ao longo do Araguaia. Contudo, seu interesse não se limitou a isso: ele também pesquisou as línguas de outras tribos existentes nas Américas, em particular as das antigas civilizações inca, maia e asteca. Isso pode ser comprovado pelos livros pertencentes à biblioteca remanescente de Guilherme, preservada no Centro Cultural da SCB, em Brasília.
Quatro anos após a passagem de Guilherme pelo Araguaia, o pastor norte-americano Alvin Nathan Allen (1880-1945) iniciou um trabalho missionário entre os índios, inaugurando as missões adventistas em Goiás e Mato Grosso, que ficaram sob sua supervisão de 1927 a 1933. Ruy Vieira sugere que Allen e Guilherme provavelmente mantiveram contato e discutiram sobre os índios do Araguaia (Um Tronco Comum Para os Idiomas, p. 23).
O neto de Guilherme, Fernando de Fernandes Filho, contou a Ruy Vieira que seu pai e seu avô solicitaram ao marechal Cândido Rondon autorização para visitar as aldeias indígenas do Araguaia. Rondon, grande defensor do bem-estar e dos direitos dos povos indígenas, reconhecendo a seriedade do projeto e as boas intenções da dupla, concedeu a permissão (ibid., p. 25).
Guilherme também tinha um interesse genuíno no bem-estar dos indígenas, tanto que decidiu doar parte dos recursos obtidos com a venda de O Tupi. A folha de rosto do livro trazia a seguinte informação: “Grande parte do produto desta publicação se destina a auxiliar o serviço de instrução aos índios.”
É interessante comparar a forma como Guilherme encarava os indígenas, sob um olhar criacionista, com a visão antropológica de outros em seu tempo. A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz comparou o entendimento influenciado pela Revolução Francesa a respeito do indígena com a visão darwinista, que acabou dominan- do o cenário antropológico dos séculos 19 e 20. Enquanto os humanistas, com seu posicionamento pela igualdade, defendiam a unidade da espécie humana, os darwinistas encaravam o indígena como uma raça degenerada e inferior. Ela explicou:
“No contexto intelectual do século 18, novas perspectivas se destacam. De um lado, a visão humanista, herdeira da Revolução Francesa, que naturalizava a igualdade humana; de outro, uma reflexão, ainda tímida, sobre as diferenças básicas existentes entre os homens. A partir do século 19, será a segunda postura a mais influente, estabelecendo-se correlações rígidas entre patrimônio genético, aptidões intelectuais e inclinações morais” (O Espetáculo das Raças [Companhia das Letras, 1993], p. 62).
Assim, no fim do século 18, prevalecia ainda a ideia de que os diversos grupos humanos eram “povos”, “nações”, e jamais raças diferentes em sua origem e conformação. Lilia explica que o termo “raça” foi introduzido na literatura mais especializada no início do século 19. “Delineia-se a partir de então certa reorientação intelectual, uma reação ao Iluminismo em sua visão unitária da humanidade.” Prevaleceria, portanto, a visão darwinista fragmentária dos povos (O Espetáculo das Raças, p. 62).
Na contramão desse pensamento, que acabou se tornando hegemônico durante o século 20, Guilherme Stein Jr. – um verdadeiro humanista criacionista – escreveu sobre a unidade dos seres humanos e a origem comum das línguas e religiões, algo que acabou por ser confirmado, em parte, por pesquisas na área da genética (link.cpb.com.br/5f7204).
Fim da jornada
Em 1957, durante o tempo em que esteve na casa de seu neto Fernando de Fernandes Filho, em São Paulo, Guilherme contraiu a “gripe asiática”. Fragilizado pela idade, ele não resistiu à doença. Assim, em 5 de outubro, aos 86 anos, faleceu.
Onze anos depois, com quase 99 anos, Maria Krähenbühl Stein descansou, com a certeza de que um dia despertará ao lado de seu amado, para estar para sempre na presença do Salvador a quem dedicaram toda a vida.
MICHELSON BORGES é editor da revista Vida e Saúde
(Matéria de capa da Revista Adventista de maio/2025)
Última atualização em 21 de maio de 2025 por Márcio Tonetti.