Do laboratório para o braço

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A vacina contra a Covid-19 surgiu em tempo recorde, o que mostra o avanço da ciência. Conheça um pouco dessa conquista

Dorival Duarte

Foto: Adobe Stock

Há pouco mais de um ano, desde o primeiro caso ocorrido a partir de um mercado de peixes e animais silvestres na cidade de Wuhan, na província de Hubei, China, uma nova doença denominada Covid-19, produzida pelo coronavírus SARS-CoV2, disseminou-se com velocidade e alcance insuspeitados no início. Dos primeiros casos, reportados em 31 de dezembro de 2019 pelas autoridades de saúde da metrópole chinesa, ao tempo em que este artigo foi escrito, já são 100 milhões de casos, com mais de 2 milhões de mortes.

Desde os primórdios da epidemia na China até que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarasse oficialmente em 11 de março de 2020 que o mundo estava diante de uma nova pandemia, não pairava dúvidas no meio científico de que o controle da doença em grande medida passaria pela descoberta de uma vacina. Por isso, já nas primeiras semanas de 2020, segundo noticiou o jornal The New York Times em 11 de janeiro de 2021, o doutor Ugur Sahin, do laboratório alemão BioNTech, começou a trabalhar no desenvolvimento de uma vacina, antevendo que a epidemia explodiria logo em outros países. Associando-se à gigantesca farmacêutica norte-americana Pfizer, a pesquisa do laboratório alemão avançou. A vacina da Pfizer/BioNTech foi a primeira a ser disponibilizada, no início de dezembro.

BREVE HISTÓRICO DA VACINAÇÃO

O início das tentativas de utilizar parte de um micro-organismo para que o ser humano pudesse resistir a determinado tipo de doença perde-se na esteira do tempo. De acordo com pesquisadores como Stanley A. Plotkin, um dos organizadores do livro Vaccines (Elsevier, 2017), a vacinação deve seu começo a uma doença que já foi vencida, a varíola. Há indícios de que, no século 11, na China, pequenas crostas dos pacientes com varíola foram inoculadas nas narinas de pessoas susceptíveis, talvez fundamentando-se no fato de que exposição à varíola permitia a aquisição de uma forma mais branda da doença. A “variolação” alcançou certo sucesso, segundo a historiadora Elizabeth Fenn, no livro Pox Americana: The Great Smallpox Epidemic of 1775-82 (Hill and Wang, 2002), como evidenciado pela imunidade das tropas britânicas diante de surtos da varíola e pela decisão do governo norte-americano de inocular seu próprio exército, no contexto dos conflitos pela independência dos Estados Unidos, no século 18.

As reações adversas e até fatais limitaram a variolação. Segundo F. Fenner e os demais autores do livro Smallpox and its Eradication (OMS, 1988), foi somente no fim dos anos 1700 que o médico inglês Edward Jenner começou a investigar por que os ordenhadores das vacas cujos úberes apresentavam lesões da varíola bovina (uma forma mais branda da doença) não se infectavam pela varíola humana nem apresentavam formas mais leves da enfermidade ao se infectarem. A história registra que, no dia 14 de maio de 1796, Jenner coletou material de uma lesão pustular nas mãos de uma ordenhadora de nome Sarah ­Nelmes, que havia adquirido a varíola bovina por seu contato com o gado, e o inoculou na pele de um menino de oito anos chamado James Phillips, que teve um pouco de febre e algumas lesões cutâneas, mas obteve uma rápida recuperação.

Posteriormente, Jenner tomou material das úlceras cutâneas de outro paciente com varíola e o inoculou em James Phillips, que não desenvolveu a varíola. Dessa forma, estava descoberta a imunização. Então, em 1881, Louis Pasteur, desenvolvedor das vacinas de segunda geração para combate da cólera aviária e do carbúnculo, em homenagem a Jenner, sugeriu que as substâncias a serem ­inoculadas fossem chamadas de vacinas, por causa das primeiras experiências com as vacas.

Hoje, na forma isolada ou conjugada, existem 41 vacinas que contribuem para o controle de 27 doenças infectocontagiosas, como as representadas pela difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, pneumonia, meningite, diarreia por rotavírus, rubéola e tétano. O ponto é que a vacinação contribuiu para uma projeção incalculável de vidas salvas e a erradicação da varíola ao redor do mundo.

Como um “efeito secundário” de duas dessas vacinas (contra a Hepatite B e o HPV, o vírus do papiloma humano), por exemplo, é possível reduzir a incidência de câncer de fígado e colo do útero, que são tumores relacionados a esses dois vírus. Anteriormente confinada de forma preventiva às doenças infectocontagiosas, as vacinas estão sendo estudadas de forma terapêutica, com o objetivo de tratar doenças neoplásicas, o que resultou em 2020 na aprovação pelo FDA (Food and Drug Administration), órgão dos Estados Unidos equivalente à Anvisa no Brasil, da primeira vacina para tratamento de câncer (no caso, o câncer de próstata avançado).

MOVIMENTOS ANTIVACINAS

Devido à sua importância epidemiológica, as vacinações são consideradas obrigatórias em muitos países, e sua evasão penalizada. À luz da ciência, é fundamental entender suas indicações assim como potenciais efeitos secundários. A desinformação sobre o assunto pode verificar-se no ocorrido no Rio de Janeiro em 1904, quando o governo lançou uma forte campanha de vacinação contra a varíola, na qual os agentes sanitários entravam na casa das pessoas e as vacinavam à força, o que gerou uma forte reação popular, conhecida como a “revolta das vacinas”. Com pouca informação, as pessoas temiam ser contaminadas por causa da própria vacina. Ainda hoje, com toda informação disponível, os especialistas da ONU incluem o movimento antivacina entre as dez maiores ­ameaças à saúde humana.

Entre as razões apresentadas contra a imunização estão o uso de fetos humanos para a produção de linhas celulares utilizadas na preparação de algumas vacinas, o temor de infecção induzida pela vacina e o surgimento de doenças como o autismo, Alzheimer, mal de Parkinson e esclerose lateral amiotrófica. Efetivamente, algumas vacinas são produzidas a partir de células chamadas fibroblastos de embriões fetais. Essas células vieram de tecido obtido de dois fetos legal e eletivamente abortados no início dos anos 1960. As mesmas células continuaram a crescer em laboratório e ainda hoje são utilizadas na produção de vacinas. De acordo com a seção de perguntas e respostas mais frequentes sobre relatórios do Congresso dos Estados Unidos, disponível no site do parlamento norte-americano, nenhuma célula adicional de fetos foi colhida desde então, mas o assunto é controverso por causa da fonte inicial.

Verdadeiramente, uma antiga vacina para poliomielite, que utilizava vírus vivo atenuado, chegou a ser associada a casos subsequentes da doença em crianças vacinadas, mas essa situação foi superada com um novo imunizante oral de vírus inativado. Conforme Witold Piotr Kollataj e mais quatro pesquisadores, num artigo sobre segurança epidemiológica publicado em 2020 na Annals of Agricultural and Environmental Medicine (v. 27, p. 544-552), vacinas são constituídas de antígenos, que estimulam a resposta imune (micro-organimos vivos ou atenuados ou fragmentos de micro-organismos); adjuvantes, que modulam a resposta imune e/ou mantêm o antígeno no sítio de injeção (usualmente compostos de alumínio, sais ou emulsões óleo-água); excipientes e estabilizantes, que protegem o material antigênico contra extremos de temperatura e previnem sua aderência aos frascos da embalagem (açúcares como sacarose e lactose, aminoácidos e proteínas como albumina ou gelatina); preservantes (somente aplicados para as vacinas não contendo microorganismos vivos ou atenuados, como timerosal e formaldeído); e traços de outras substâncias após o processo de produção.

De acordo com Luke Taylor, Amy Swerdfeger e Guy Eslick, numa meta-análise publicada em 2014 na revista Vaccine, não há nenhuma referência consistente de que alguma dessas substâncias tenha relação com o autismo, Alzheimer, Parkinson ou outras doenças degenerativas. Mesmo a síndrome de morte súbita infantil, presumivelmente atribuída às vacinas, teve tal associação rechaçada pela Academia Americana de Pediatria e pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, numa declaração conjunta divulgada em agosto de 2014.

PERSPECTIVA ADVENTISTA

Quanto à vacinação para o SARS-CoV2, diante de interrogações frequentes que possam vir à mente das pessoas menos familiarizadas com as ciências médicas, a Igreja Adventista do Sétimo Dia, fundamentada na Bíblia e nos escritos inspirados de Ellen White, que foram a base para o estabelecimento de um sistema de saúde de alcance global, emitiu seu parecer sobre as vacinas e a atual pandemia.

De maneira sábia e ponderada, o Ministério de Saúde da sede mundial da Igreja Adventista, o Instituto de Pesquisa Bíblica e as Escolas de Farmácia e de Saúde Pública da Universidade de Loma Linda (EUA), representadas pelo doutor Michael Hogue, que também é membro do Comitê Consultivo para Práticas de Imunização dos Estados Unidos, bem sintetizaram o posicionamento da igreja, num texto sobre perguntas e respostas a respeito das vacinas, publicado em 18 de dezembro no portal mundial da igreja.

Além disso, a própria denominação emitiu uma declaração oficial sobre o tema: “A Igreja Adventista do Sétimo Dia dá grande ênfase à saúde e ao bem-estar. A ênfase adventista na saúde é baseada na revelação bíblica, nos escritos inspirados de Ellen G. White (cofundadora da igreja) e na literatura científica revisada por pares. Como tal, incentivamos a imunização/vacinação responsável, e não temos nenhuma razão religiosa ou com base na fé para não encorajar nossos aderentes a participar responsavelmente em programas de imunização preventiva e protetora.” Portanto, segundo esse documento (disponível aqui), a igreja valoriza a saúde da população e defende o programa de vacinação, mas não se posiciona como a consciência de cada membro. A escolha de ser ou não ser imunizado é pessoal.

Por fim, vale ressaltar que Deus é o autor da ciência e que Ellen White estava em harmonia com o verdadeiro conhecimento científico de seu tempo. Mesmo não havendo dado declarações diretas sobre vacina, temos o testemunho de quem conviveu próximo a ela. O pastor Dores Eugene Robinson, que foi um dos secretários da pioneira, se casou com a primeira neta dela e escreveu o livro Revolução na Saúde: Origem e Desenvolvimento da Obra Médico-Missionária Adventista (CPB, 2018), em resposta a uma pergunta sobre vacinação e soro, em 12 de junho de 1931, respondeu que, “quando houve uma epidemia de varíola na vizinhança, ela mesma foi vacinada e instou a seus ajudantes mais próximos a ser vacinados. Ao dar esse passo, a irmã White reconheceu o fato de que foi provado que a vacina dá imunidade à varíola ou alivia muito os efeitos de quem adoeceu” (disponível aqui).

Além disso, Ellen White era bem avançada nas ideias científicas. Em 1901, época em que os grupos sanguíneos ainda não haviam sido descobertos e havia um risco de 50% de incompatibilidade, ela sugeriu em uma carta que o doutor Daniel Hartman Kress considerasse a possibilidade de fazer uma transfusão de sangue para salvar a própria vida (Medicina e Salvação, p. 286 e 287). Ao que parece, ela estava disposta a lançar mão de um método experimental, que havia sido usado com certo sucesso. “A sugestão dela mostra disposição para considerar novos métodos de terapia que oferecem esperança de salvar vidas”, comentou o doutor Albert Hirst num artigo sobre a atitude de Ellen White em relação ao progresso médico, na Adventist Review de 14 de julho de 1983, p. 9.

Curiosamente, a pioneira da igreja condenou os remédios “venenosos” de sua época, como ópio, arsênico e ­mercúrio, mas não os medicamentos e avanços médicos. “Os que buscam a cura pela oração não devem negligenciar o emprego de remédios ao seu alcance. Não é uma negação da fé usar os remédios que Deus proveu para aliviar a dor e ajudar a natureza em sua obra de restauração. Não é nenhuma negação da fé cooperar com Deus, e colocar-se nas condições mais favoráveis para o restabelecimento. […] Devemos usar todo recurso para restauração da saúde, aproveitando-nos de todas as vantagens possíveis, agindo em harmonia com as leis naturais”, escreveu a profetisa adventista no livro A Ciência do Bom Viver, p. 231 e 232.

Como procurei mostrar neste artigo, as vacinas têm o poder de salvar vidas, e não há nenhuma razão médica nem religiosa para não encorajar a sociedade a participar de programas de imunização preventiva e protetora.

Para finalizar, cito a jornalista Erin Burnett, âncora da CNN, que em 2015, num discurso na TV, disse: “Pessoas que não vacinam provavelmente não imaginam seus filhos não mais podendo andar por causa da pólio.” No tempo presente, como testemunha direta do sofrimento e da morte produzidos pelo que se pensava ser uma doença respiratória, mas revelou-se uma condição sistêmica, eu a parafrasearia dizendo: “Pessoas que não se vacinam não imaginam seus filhos, pais ou avós em uma UTI em ventilação mecânica e em hemodiálise, com um futuro imediato totalmente incerto.”

DORIVAL DUARTE é médico infectologista, mestre em Ciências pela Unifesp e diretor do Hospital Adventista de São Paulo

(Publicado originalmente como matéria de capa da edição de fevereiro de 2021 da Revista Adventista)

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Última atualização em 8 de fevereiro de 2021 por Márcio Tonetti.