Uma herança que deve ser preservada tanto quanto desenvolvida
Diogo Cavalcanti

Em tempos de guerra e insegurança, identificação é tudo. A identificação valida a entrada, assegura a informação, protege a vida e os recursos financeiros, resguarda a discrição de temas sensíveis bem como a privacidade. Diante disso, muitos recorrem a senhas poderosas e à biometria como recursos extremos para conter o ataque de invasores. Problemas com a identidade põem pessoas e organizações em risco. Por outro lado, identidades confirmadas e seguras abrem portas, dão amplo acesso e permitem uma comunicação saudável.
A certificação da informação pode se tornar um obstáculo para a pregação do evangelho ao mundo. Pessoas de todas as tribos, línguas e nações precisam confiar em nossa pregação. Por outro lado, precisamos estar certos de quem somos e de qual é a nossa missão. Igualmente, precisamos manter uma frente unida que comunique ao mundo uma identificação coesa e confiável. Se os que pregam não estão seguros de quem são, qual é sua missão e por que deveriam pregar?
Quando a identidade perde seu contorno, não se pode mais falar em mensagem e missão. Assim, cada indivíduo passa a construir sua versão de Deus e da fé, as verdades se tornam relativas e o que importa é “amar” e nunca “julgar”. Repetimos o tempo dos juízes em que “cada um fazia o que achava mais certo” (Jz 21:25). Não surpreende que, onde essa mentalidade se instala, o fervor missionário desaparece.
Doutrinas em questão
Na ótica relativista radical, as paredes da igreja deveriam ser derrubadas para dar lugar a uma grande praça de “diálogo” e “aceitação”. Diante disso, as crenças e doutrinas seriam empecilhos para a concretização desse propósito. Seriam como cercas inconvenientes, ainda mais quando não vêm das letras vermelhas da Bíblia. “O que importa é Jesus” – ouvimos – e o que está fora dos evangelhos parece palha e isopor. Logo, a teologia sistemática e as doutrinas se tornam o alvo primordial dos ataques liberais.
Embora esse discurso tenha a sua lógica e pareça bonito, ele vai muito além (ou está aquém) de uma mensagem centrada em Jesus. Ainda que pareça ético e bíblico, ele nasce e se sente em casa nos terrenos da cultura e da filosofia. Ao mesmo tempo em que afirma seu amor a Cristo, contradiz Aquele que frequentemente recorria ao “está escrito” (Mt 4:4). Isso revela que a crise de identidade atual, em realidade, constitui uma tensão epistemológica: um embate sobre onde encontrar o conhecimento válido, sobre como saber o que sabemos e qual é a autoridade final para distinguir entre o certo e o errado.
Por mais que, na lógica pós-moderna, se declare geralmente que não existe uma verdade, mas, sim, “verdades”, a religiosidade pós-moderna e liberal enxerga a sua ética como superior à da igreja a qual ela rotula como “tradicional”. O pensamento liberal julga que sua moral é superior à das denominações organizadas, incluindo o adventismo. Assim, a moral da “aceitação”, do “amor”, entre outras bandeiras, são postas acima de tudo o mais e tornam irrelevantes os ensinos bíblicos.
Por fim, essa lógica acaba por fazer erodir todos os aspectos que distinguem e caracterizam a igreja, fazendo-a pouco a pouco perder a sua identidade. Em vez de uma agência missionária, que prepara pessoas para a volta de Jesus, a igreja se torna um centro social, um clube, um grupo politizado ou místico, uma igreja comum, uma casa de shows ou qualquer outra coisa.
Obviamente, temos que amar. Amar está no centro da lei e do evangelho. Também é óbvio que devemos amar todos os pecadores e recebê-los de braços abertos – até porque todos somos pecadores (Rm 3:9, 23). Contudo, biblicamente falando, o amor de Deus é um reflexo do Seu caráter amorável e justo. Seu amor não implica que Ele vai deixar de distinguir entre o certo e o errado. Amar resume os mandamentos, não os reduz ou nega.
Quem ama guarda os mandamentos de Deus. “Se vocês Me amam, guardarão os Meus mandamentos. Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que Me ama; e aquele que Me ama será amado por Meu Pai, e Eu também o amarei e Me manifestarei a ele” (Jo 14:15, 21). Separar Jesus das doutrinas ou da lei, que é boa (Rm 7:12), é impor uma falsa dicotomia. Sem as doutrinas e a lei de Deus, o amor não se sustenta, e o que prevalece na igreja e no mundo é a anomia, a anarquia, o ceticismo e a apostasia. É um processo degenerativo que atingiu de diversas formas as igrejas protestantes históricas e que ameaça seriamente o adventismo hoje.
Identidade essencial
Se pudéssemos identificar o DNA do adventismo, que elementos encontraríamos? Talvez o primeiro aspecto seria um apego incondicional à Palavra de Deus. É claro que ele não é mais importante do que Deus, porém é o único meio para conhecer Sua vontade. A fé vem quando ouvimos o que a Palavra tem a dizer (Rm 10:17). Com Sua Palavra, Deus criou o mundo, e com sua Palavra Ele constrói a nossa fé. Sem ela, não conseguimos chegar a uma compreensão minimamente adequada sobre Deus, nossa necessidade de salvação, o sacrifício expiatório de Cristo, as profecias e tantos outros aspectos. Qualquer minimização ou relativização da autoridade da Palavra pode ser considerado um apagamento do adventismo.
Outro aspecto fundamental ao adventismo é seu apego a Cristo. O adventismo nasceu de uma incrível profecia (Dn 8:14) que aguçou e avivou uma profunda saudade de Jesus, se assim podemos dizer, que cristãos de diversas denominações tinham em meados do século 19. Evangelho no primeiro século foi o anúncio da chegada de Cristo como um bebê; evangelho no tempo do fim é o anúncio da chegada de Cristo como um rei soberano. Essas são mensagens tão sublimes que foram pronunciadas por anjos (Lc 2:11; At 1:11). Acomodar-se à vida em Babilônia e achar que este mundo é o nosso lar é um sinal de erosão da fé.
Ligado a isso está a forte conexão com Jesus no presente. Ele ministra por nós no santuário celestial. Esse é um aspecto único e fundamental na fé adventista, tal qual se reflete em diversos livros bíblicos, especialmente em Hebreus 8 a 10. Trata-se de uma fé sem intermediários além do próprio Cristo em uma obra de perdão, purificação e transformação de vidas. No santuário se encontram tanto a santa lei de Deus, que emana do Seu caráter, quanto o Salvador que satisfaz as exigências dessa lei, apagando os nossos pecados e nos transformando dia a dia à Sua imagem. Isso revela um equilíbrio perfeito entre fé e justiça, o que traz um equilíbrio teológico para a mensagem e o estilo de vida adventista.
Também é impactante a cosmovisão adventista sobre nossas origens, o propósito da existência, o grande conflito e a antropologia bíblica (nossa compreensão da natureza do ser humano). Somos seres finitos, criados por um Deus infinito. Dependemos Dele para existir a cada segundo. Nossa existência é corporal, e nosso corpo é um santuário que deve ser cuidado (1Co 6:19). Esse Deus Se manifesta na história e interfere nela. Não é o Deus da filosofia grega nem do cristianismo corrompido pela filosofia. É um Deus pessoal, que tem sentimentos e intenções, que nos criou à Sua imagem e que está diretamente envolvido em uma luta para nos salvar do pecado. Por fim, esse Deus vai intervir definitivamente na história, pondo um fim ao mal neste mundo e instaurando Seu reino na Terra.
Nessa compreensão não cabe a ideia de inferno eterno, da predestinação a ele nem o temor de fantasmas ou mesmo o pavor diante da morte, embora não sejamos poupados da dor, do sofrimento e de profunda tristeza em algum momento. Essa compreensão ampla permite enxergar o mundo com outras lentes e interpretar a realidade de maneira revolucionária. Deus, para nós, participa do espaço e do tempo. Ele criou o sábado para Se encontrar conosco a cada semana (Gn 2:1-3; Êx 20:8-11). Nós O adoramos nesse santuário no tempo e somos edificados em todos os aspectos: físico, mental e espiritual.
Entre outras características, não podemos deixar de mencionar nossa maneira profética de enxergar as coisas. Entendemos que somos um povo profético, cuja experiência está retratada nas profecias de Daniel e do Apocalipse (ver especialmente Dn 7 e 8; Ap 10, 12–22). Somos um povo com uma identidade (Ap 12:17; 14:12), mensagem e missão proféticas (Ap 14:6-12). Temos inclusive orientação profética por meio da serva do Senhor, Ellen White, que ministrou por 70 anos ajudando a igreja a se manter fiel à Palavra de Deus. Se perdermos nossa identidade profética, perderemos nosso propósito como igreja.
Identidade e identificação
Os adventistas do sétimo dia têm uma identidade rica e única. Por um lado, sua fé contém aspectos que os distinguem de outros grupos religiosos e culturais. Por outro, há elementos que os aproximam igualmente. É a fé cristã que oferece grandes oportunidades de identificação com pessoas de outras culturas e religiões.
O apego adventista à validade dos dez mandamentos e do Antigo Testamento como Palavra igualmente revelada nos permite, de modo especial, alcançar os judeus. Os muçulmanos se surpreendem positivamente ao saber que os adventistas não consomem álcool, por exemplo. Os orientais achariam interessante saber que temos uma visão integral – corpo e mente – do ser humano. Os evangélicos se assombram ao descobrir que defendemos a salvação pela graça mediante a fé. Nossa visão integrativa entre fé e ciência ajuda a falar à razão de um ateu. Nossa visão sobre liberdade religiosa abre portas. Ou seja, há pontes e oportunidades para nos identificar com diversos grupos e compartilhar com eles o evangelho (1Co 9:20-22). Assim, a identidade adventista é essencial justamente para nos aproximar das pessoas.
A identidade adventista é uma herança que deve ser preservada tanto quanto desenvolvida. Precisamos valorizar o que temos e compartilhar esse privilégio com outros. Jamais podemos perder de vista quem somos e a missão que Deus nos confiou. Nossa identidade não é uma barreira, mas sim a chave para alcançar os povos e culturas. Que Deus mantenha sempre viva essa chama!
DIOGO CAVALCANTI é gerente editorial associado na Casa Publicadora Brasileira e doutorando em Teologia do Antigo Testamento pela Universidade Adventista do Prata, na Argentina
Última atualização em 5 de julho de 2025 por Márcio Tonetti.