Além do silêncio

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A prevenção do suicídio começa no lar e na igreja

Wélida Dancini

Ilustração: Adobe Stock

A pequena igreja foi abalada por uma notícia repentina. Lucas, o menino de sorriso contagiante que sempre colaborava na Escola Sabatina e tocava violão nos momentos de adoração, havia partido. Ele cometeu suicídio aos 17 anos. O choque inicial foi seguido por um silêncio denso, repleto de perguntas sem resposta e uma dor que parecia insuportável.

Para Ana, sua mãe, o mundo desmoronou. Cada espaço da casa, cada foto e cada recordação de Lucas se tornaram um gatilho para um mar de lágrimas e um turbilhão de perguntas. “Em que ponto falhei?”, “Deveria ter notado algo?”, “Ele estava sofrendo e eu não percebi?”. A culpa a consumia, mesclada à saudade dolorosa e a uma profunda incompreensão. Como seu filho, que aparentava estar cheio de vida, chegou a esse ponto? As noites eram longas e vazias, marcadas por um luto que parecia interminável.

Na igreja, a dor também era sentida. Os membros se encaravam com tristeza, e muitos se perguntavam: “Nós o amávamos, por que ele não nos procurou?”, “Será que não fomos acolhedores o bastante?” Os líderes se sentiam frustrados ao tentarem curar uma ferida que parecia não cicatrizar. O sermão do sábado seguinte tratou do amor de Deus e da importância de cuidar uns dos outros, porém a voz do pastor estava embargada e muitos tinham os olhos marejados. A comunidade, que antes era tão unida, agora se via diante da fragilidade da vida e da complexidade do sofrimento humano.

Por muito tempo, o suicídio foi um assunto cercado por silêncio e estigma. Entretanto, essa é uma realidade dolorosa que afeta pessoas, famílias e comunidades e, como igreja, não podemos permanecer calados diante do sofrimento. Tratar o tema com compaixão, compreensão e esperança é um apelo urgente para todos, especialmente considerando os princípios de amor e cuidado que guiam a fé adventista.

A dor que faz uma pessoa pensar em suicídio é complexa e tem várias facetas. Geralmente, é causada por uma combinação de fatores, como transtornos mentais (depressão, ansiedade), solidão, pressões da vida, traumas e falta de esperança. É importante compreender que o suicídio não é um ato de covardia, mas o triste resultado de um sofrimento intolerável. Nossa fé nos orienta a enxergar cada pessoa como uma criação divina de valor inestimável, além de nos incentivar a oferecer apoio e compreensão àqueles que enfrentam dificuldades.

Sofrimento mental na perspectiva cristã

A complexidade da experiência humana envolve as interações intrínsecas entre corpo, mente e espírito. No contexto da fé cristã, a interpretação do sofrimento mental muitas vezes enfrenta mal-entendidos e estigmas profundamente arraigados, que incorretamente vinculam condições como depressão e ansiedade à “falta de fé” ou a um “pecado”.

A neurociência, por meio de diversas pesquisas científicas, demonstra que o sofrimento mental não é uma deficiência moral, mas uma expressão de mudanças nas redes neurais e nos neurotransmissores cerebrais. Dessa forma, condições como a depressão maior e transtornos de ansiedade estão associadas a disfunções nos sistemas límbicos e corticais, responsáveis pela regulação do humor, cognição e respostas emocionais. Evidências cada vez mais robustas sugerem que desequilíbrios em neurotransmissores como serotonina, dopamina e noradrenalina, além de fatores genéticos, epigenéticos e neuroinflamatórios, contribuem significativamente para a etiologia de quadros depressivos. Embora complexas, essas condições de saúde são tão legítimas quanto doenças cardíacas ou diabetes e necessitam de uma abordagem clínica apropriada. A fisiologia do cérebro pode, assim como qualquer outro órgão, estar sujeita a disfunções que causam sofrimento.

Sob uma ótica psiquiátrica, é possível afirmar que a saúde mental é parte fundamental da saúde como um todo. Transtornos mentais são diagnósticos estabelecidos com base em critérios clínicos e sintomas específicos, aceitos por entidades de saúde em todo o mundo. A premissa de que a fé isoladamente pode “curar” uma doença mental ignora a multifatoriedade etiológica desses quadros. Apesar de a espiritualidade ser uma ferramenta eficaz de resiliência e enfrentamento, funcionando como amortecedora do estresse e geradora de sentido, ela não substitui a intervenção médica em casos de desregulação neurobiológica. O tratamento psiquiátrico, que pode incluir farmacoterapia e psicoterapia, visa restaurar o equilíbrio neuroquímico e funcional, permitindo que a pessoa alcance saúde integral.

É necessário levar em conta que o sofrimento psicológico é um componente intrínseco da experiência humana. A fé pode proporcionar esperança e sentido, porém não garante proteção contra a dor emocional ou as dificuldades da vida. Ao longo da história, personagens bíblicos como o profeta Elias, que em um momento de intenso desespero desejou morrer (1Rs 19:4), ou Jesus no Getsêmani, que gritou em agonia antes de Sua crucificação (Mt 26:38), mostram que todos, inclusive os religiosos, podem passar por angústias devastadoras. Esses relatos bíblicos atuam como um lembrete compassivo de que o sofrimento emocional não é algo exclusivo de quem está “longe de Deus”, mas uma experiência que vai além da condição espiritual.

Sinais de alerta

Ilustração: Adobe Stock

Pessoas com ideação suicida geralmente vivenciam uma avalanche de pensamentos que as conduz a uma condição de desespero e impotência. Elas podem ter a sensação de serem um peso para os outros, de que não há perspectiva de melhora em sua situação e de que a dor que sentem é insuportável e duradoura. É normal que esses pensamentos envolvam a ideia de que estão “encurraladas” em uma situação sem solução, ou que a vida perdeu todo o sentido. Frequentemente, essas pessoas se percebem como um problema a ser eliminado e podem considerar que o suicídio é a única maneira de encontrar alívio para seu sofrimento e para a angústia que acreditam estar causando a seus entes queridos.

GERALMENTE, A IDEAÇÃO SUICIDA NÃO APARECE SEM DEIXAR VESTÍGIOS. OBSERVAR ESSAS MUDANÇAS PODE SER CRUCIAL NO PROCESSO DE RESGATE

Geralmente, a ideação suicida não aparece sem deixar vestígios. Pessoas que estão em profundo sofrimento emitem sinais, tanto verbais quanto comportamentais, que representam autênticos pedidos de ajuda. Para familiares e amigos próximos, observar essas mudanças pode ser crucial no processo de resgate.

É fundamental ter em mente que a presença de apenas um sinal não indica necessariamente ideação suicida. No entanto, a combinação de diversos sinais ou a intensidade de um em específico deve acender um alerta vermelho. A chave é a observação cuidadosa, combinada com empatia.

Expressões diretas ou indiretas acerca da morte. É preciso levar a sério afirmações diretas como “Quero morrer”, “Vou me matar”, “Queria que tudo acabasse”, “Não aguento mais essa dor”; ou indiretas do tipo “Sou um peso para vocês”, “Queria dormir e não acordar mais”, “Vocês ficariam melhor sem mim”, e “Minha vida não tem propósito”.

Isolamento e retraimento social. A pessoa se distancia de amigos, parentes e atividades que costumava apreciar, como hobbies, trabalho ou estudos. Prefere a solidão, evita interações e pode passar longos períodos trancada no quarto ou afastada, mesmo em ambientes familiares.

Alterações significativas no comportamento e humor. Ela pode apresentar: (a) tristeza persistente, um estado de espírito constantemente deprimido, apatia generalizada e perda de prazer em atividades que antes eram prazerosas; (b) irritabilidade aumentada, como surtos de raiva, frustração ou agressividade fora do comum; (c) variações rápidas e extremas de humor; e (d) aparentar estar extremamente agitada, inquieta ou, por outro lado, com movimentos, fala e pensamentos desacelerados.

Negligência em relação à aparência e higiene pessoal. Descuido notável e contínuo com a higiene pessoal, vestimenta ou aparência que não era habitual pode ser sinal de uma intensa falta de energia, desespero e desvalorização pessoal.

Perda de interesse e desespero em relação ao futuro. A pessoa deixa de se interessar por atividades que antes eram significativas, projetos futuros, sonhos e planos. Ela apresenta uma perspectiva negativa em relação ao futuro, sem conseguir encontrar soluções para suas dificuldades ou propósito para continuar.

Organização de despedidas ou questões não resolvidas. O indivíduo começa a entregar objetos de valor ou itens pessoais sem uma razão aparente, redigir cartas de despedida, e-mails ou mensagens para entes queridos, quitar dívidas, elaborar testamento ou organizar documentos como se estivesse se preparando para uma longa viagem.

Busca por recursos letais. Ele pesquisa formas de suicídio on-line, acumula medicamentos ou obtém itens que possam ser utilizados para autolesão. Essa é uma das bandeiras vermelhas mais críticas e requer ação imediata!

Mudanças nos padrões de sono e dieta. Sintomas como insônia grave e duradoura ou, em contrapartida, hipersonia, devem ser monitorados. Alterações drásticas no apetite, acompanhadas de perda ou ganho significativo de peso em um curto período, também.

Comportamentos de risco elevado. Participação em ações perigosas, irresponsáveis ou autodestrutivas, como dirigir em alta velocidade, consumo excessivo de álcool ou drogas, brigas. Essa busca pelo perigo pode ser uma maneira de manifestar a dor ou de se colocar em situações potencialmente mortais sem ter que tomar uma decisão definitiva.

Aparência de calma repentina após uma fase de crise. Após um período de intensa agitação ou tristeza, a pessoa parece subitamente calma. Essa melhora aparente é arriscada, pois pode sinalizar que ela decidiu cometer suicídio e se sente aliviada por ter um “plano”. Trata-se de um momento de alto risco e requer atenção redobrada.

A igreja, enquanto corpo de Cristo, desempenha um papel fundamental na prevenção do suicídio. Devemos criar um espaço de acolhimento, no qual a vulnerabilidade seja aceita e o suporte seja incondicional. Isso abrange a promoção da saúde mental, a desmistificação do sofrimento psicológico e o incentivo à procura de ajuda profissional, como psicólogos e psiquiatras. Ademais, a fé pode ser uma ferramenta poderosa de resiliência, proporcionando sentido, esperança e a convicção de que não estamos sozinhos em nossas batalhas. A garantia de um Deus que Se importa, nos ama incondicionalmente e tem planos de paz para nós traz alívio para a alma ferida.

DEVEMOS CRIAR UM ESPAÇO DE ACOLHIMENTO, NO QUAL A VULNERABILIDADE SEJA ACEITA E O SUPORTE SEJA INCONDICIONAL

Pesquisas indicam que nove em cada dez suicídios poderiam ter sido prevenidos com conscientização, medidas de prevenção e orientação sobre como reconhecer e ajudar indivíduos com pensamentos suicidas. O mito de que “falar sobre suicídio incentivaria mais pessoas a cometer o ato” causa um grande dano, resultando na perda desnecessária de muitas vidas.

Primeiros Socorros Psicológicos

A igreja pode servir como um local para prevenção e suporte emocional. Nesse sentido, os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP) são ferramentas fundamentais para a prevenção do suicídio. O PSP, que não é uma terapia formal, é um gesto humanizado de escuta ativa e acolhimento, em total concordância com os princípios bíblicos de amar o próximo. Durante crises emocionais, um ouvido receptivo e um coração livre de julgamentos podem ser o farol que conduz alguém do desespero à esperança.

Os pilares dos PSP podem ser praticados no cotidiano da igreja da seguinte maneira:

1. Observe atentamente. Incentive os membros da igreja a ficar atentos a alterações no comportamento de seus irmãos. Isso inclui atitudes de isolamento, alterações de humor, expressões de desesperança, negligência pessoal, e menções indiretas à morte. Promova a cultura de “observar, se importar e cuidar uns dos outros” tanto no aspecto espiritual quanto no emocional.

2. Ouça de modo empático e sem julgamento. Quando alguém se abre, ouça com atenção e empatia. Isso implica: (a) disponibilidade: dedique seu tempo e sua atenção de forma integral; (b) validação de sentimentos: use frases como “Compreendo que se sinta assim” ou “Sua dor parece real”. Não minimize a dor nem ofereça soluções prontas; (c) evitar julgamentos do tipo “Você precisa ter mais fé”, “Isso é falta de oração” ou “Você é forte demais para isso”; (d) permitir que a pessoa fale livremente, mesmo que ela chore ou seja repetitiva. Forme grupos de “ouvintes solidários” na igreja, membros prontos para oferecer escuta ativa e capacitados para não julgar, apenas acolher e validar. Isso pode ser realizado por meio de oficinas ou palestras.

3. Conecte a pessoa ao apoio e encaminhamento adequado. Após a pessoa se sentir ouvida e compreendida, o passo seguinte é vinculá-la a recursos de apoio: (a) esclareça que especialistas em saúde mental estão preparados para oferecer suporte em situações de crise; (b) auxilie a pessoa na pesquisa, agendamento de uma consulta ou até mesmo a acompanhe em um primeiro momento, caso seja adequado e ela aceite; e (c) mantenha sempre o número do Centro de Valorização da Vida (188) ou de outros serviços de emergência em saúde mental acessível. Elabore um mapa com os recursos de saúde mental disponíveis na sua região para a comunidade. Isso pode incluir uma relação de profissionais, clínicas, hospitais e serviços gratuitos ou acessíveis na área. A igreja pode até pensar em fazer parcerias para tornar o acesso mais fácil a esses recursos.

Quando uma pessoa está à beira do desespero e com pensamentos suicidas, a igreja e a família surgem como faróis de esperança, convocadas a se revestirem do amor e da compaixão de Cristo. O apóstolo Paulo afirmou: “Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 6:2). Esse mandamento divino vai além de uma simples sugestão; trata-se de um convite para que a comunidade de fé e os vínculos familiares se transformem em um refúgio seguro. Isso significa que, em vez de julgar ou nos afastarmos, devemos nos aproximar, oferecendo apoio e um coração disposto a ouvir as angústias de quem sofre, entendendo que, muitas vezes, a dor é um fardo muito pesado para ser carregado sozinho.

Como comunidade de fé, devemos estender a mão àqueles que sofrem em silêncio. Que nossa compaixão seja um reflexo do amor de Cristo, que nossa escuta seja atenta e nossa esperança seja uma luz que dissipa as trevas. Ao falarmos abertamente sobre o suicídio, quebrando o tabu e oferecendo suporte, estamos cumprindo nosso papel de zelar pela vida e testemunhar o poder restaurador do amor divino. 

WÉLIDA Dancini é psicóloga

(Matéria de capa da Revista Adventista de setembro/2025)

Última atualização em 8 de setembro de 2025 por Márcio Tonetti.