Legado negligenciado

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Os 500 anos da Reforma Radical

Davi Boechat e Isaac Malheiros

Imagem generativa: Renan Martin

As comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante ocorreram em 2017. Músicas que falam sobre a salvação pela fé e a Bíblia como única base para a doutrina, além de eventos e uma grande quantidade de livros e artigos, garantiram que a data não fosse esquecida. Até camisetas com imagens de Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), dois dos principais nomes da Reforma, foram vendidas. Com toda essa agitação, um aspecto significativo da história foi negligenciado: a chamada Reforma Radical.

Dois grupos importantes surgiram na Reforma. O primeiro foi a conhecida Reforma Magisterial, que recebeu o apoio de governantes e autoridades. O segundo grupo foi a Reforma Radical, composta por cristãos que desejavam aprofundar ainda mais o retorno às raízes do evangelho. Rejeitavam o catolicismo, o protestantismo predominante e as relações entre Igreja e Estado (Alister McGrath, O Pensamento da Reforma [Cultura Cristã, 2014], p. 308). Por essa atitude, eles foram perseguidos tanto por católicos quanto pelos reformadores magisteriais.

Compromisso radical

Os reformadores radicais são frequentemente chamados de “anabatistas”, um termo pejorativo atribuído por seus adversários que significa “aquele que rebatiza”. No entanto, esse termo acabou sendo aceito sem o estigma negativo. Em 2025, celebram-se 500 anos do evento que deu início ao movimento anabatista: o batismo coletivo conduzido por Jorge Blaurock, em janeiro de 1525, na Suíça (Roger Olson, História da Teologia Cristã [Vida, 2011], p. 427). Por meio desse ato, eles negaram a legitimidade do batismo infantil e a autoridade das igrejas estatais, dando início à fase radical da Reforma Protestante.

Para os reformadores radicais, Lutero e Calvino ainda mantinham vínculos com aspectos do cristianismo medieval, como o constantinismo e a teologia agostiniana (Olson, História da Teologia Cristã, p. 426). Além disso, eles criticavam o monergismo rígido e a predestinação, que diminuíam a responsabilidade humana, e sustentavam que a verdadeira igreja deveria ser composta apenas por cristãos conscientes, distantes do mundo e de poderes coercitivos.

Menno Simons (1496–1561) e Balthasar Hubmaier (1485–1528) foram os pensadores mais notáveis do ramo radical. Antes de se juntarem ao movimento, ambos possuíam formação teológica e experiência como líderes. Em 1536, Simons, um ex-sacerdote, converteu-se ao anabatismo e, arriscando a vida, dedicou-se à criação de uma rede de igrejas clandestinas. Geralmente, pregava à noite nas casas e não costumava ficar muito tempo no mesmo lugar. As igrejas menonitas recebem o nome dele.

Por sua vez, Hubmaier sustentava que a vida cristã genuína se inicia com uma escolha pessoal em resposta à graça, e que o batismo deve ser uma declaração pública de fé. Ele se opunha ao batismo infantil, argumentando que recém-nascidos não são capazes de ter fé genuína. Além disso, defendia a separação entre Igreja e Estado e a liberdade religiosa, condenando de forma enfática a coerção do pensamento e a perseguição.

Os radicais anabatistas, em busca de levar a Reforma ao extremo, elevaram o princípio sola Scriptura. Também promoviam a ética cristã no trabalho, um modo de vida simples e adotavam posturas igualitárias de gênero, além de preceitos abolicionistas. Negavam todas as formas de violência, incluindo a pena de morte, o serviço militar, o uso de armas e a noção de “guerra justa”. Nesse sentido, a Confissão de Schleitheim (1527), um dos documentos anabatistas mais importantes, expressou claramente o princípio da não violência.

A força da Igreja e o braço do Estado

Imagem generativa: Renan Martin

Os anabatistas foram os primeiros a afirmar que nenhum governo pode obrigar as pessoas a seguir uma determinada religião. Por defenderem essa crença com firmeza, pagaram um alto preço. Os anabatistas se opuseram à ideia de uma “sociedade cristã” unificada sob uma igreja estatal, proposta por reformadores magisteriais como Martin Bucer. Eles rejeitavam juramentos e serviço militar, acreditando que a verdadeira igreja era composta por fiéis distintos da falsa igreja que realizava o batismo de crianças.

Na Alemanha luterana, os “soberanos de Augsburgo nunca estavam dispostos a tolerar o que eles consideravam como doutrinas sediciosas dos anabatistas e em grande número estes foram presos, inclusive muitas mulheres, que eram ativas como missionárias e mestras” (Dale Irvin e Scott Sunquist, História do Movimento Cristão Mundial [Paulus, 2015], p. 129). As perseguições envolveram a perda da custódia dos filhos, pois a recusa em batizá-los era vista como uma forma de maus-tratos. As crianças eram “entregues para famílias de grupos eclesiásticos oficialmente reconhecidos” (Olson, História da Teologia Cristã, p. 428). Na Suíça, Alemanha e Áustria, os anabatistas foram perseguidos, aprisionados, torturados, exilados e mortos. A principal região da Europa Central que aceitou seus ensinamentos foi a Morávia, situada a leste da Boêmia.

Testemunho dos mártires

Os anabatistas passaram a sofrer martírio com frequência. Em O Espelho dos Mártires, obra extensa e ilustrada escrita no século 17, Thieleman J. Van Braght (1625–1664) descreveu as perseguições e os martírios dos reformadores radicais. Por se oporem ao batismo infantil obrigatório, muitos foram executados por afogamento, ato que os algozes denominavam de “terceiro batismo”. Assim, em 1527, faleceu o primeiro mártir anabatista, Felix Manz (1498–1527), um ex-discípulo de Zuínglio. Após recusar-se a renunciar à sua fé, Manz foi lançado no rio Limmat, em Zurique, Suíça, com as mãos amarradas atrás dos joelhos. As últimas palavras que proferiu foram: “Senhor, em Tuas mãos entrego o meu espírito”.

A ÊNFASE ANABATISTA NA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA ECOA NÃO APENAS A DEFESA ADVENTISTA DA LIBERDADE RELIGIOSA, MAS TAMBÉM SUA ESCATOLOGIA

A fogueira e a forca também eram métodos de execução empregados pelos perseguidores. Durante o suplício, os mártires anabatistas aproveitavam a oportunidade para professar sua fé perante as pessoas que se reuniam para assistir. Os algozes ficavam tão incomodados com essa prática que começaram a implementar táticas para evitar que as execuções se transformassem em um púlpito. Entre essas medidas, destacam-se a alteração dos horários das execuções sem aviso prévio, a realização dos atos durante a madrugada e o uso de tambores para silenciar a voz dos mártires.

Reforma Radical e adventismo

A Reforma Radical, embora negligenciada, ainda ressoa. Seus herdeiros diretos – menonitas, amishes, huteritas e schwenckfelders – mantêm seu legado, porém sua influência ultrapassa esses grupos.
O protestantismo brasileiro tem raízes que se conectam de forma significativa com essa corrente (link.cpb.com.br/28f2e7).

Menonitas e adventistas têm dialogado. Entre 2011 e 2012, dirigentes da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia e da Conferência Mundial Menonita se reuniram e identificaram importantes semelhanças, incluindo o anseio compartilhado de restaurar a autenticidade da igreja do Novo Testamento, uma perspectiva parecida sobre a história do cristianismo e a dedicação ao discipulado e ao testemunho cristão. Em 2014, esses diálogos culminaram no documento intitulado Living the Christian Life in Today’s World [Vivendo a vida cristã no mundo de hoje], que foi ratificado pelas duas denominações (link.cpb.com.br/dfaccf).

Ambas as comunidades compartilham diversas crenças e práticas, como o batismo somente de quem professa a fé de forma consciente, a Ceia do Senhor como símbolo, a separação entre Igreja e Estado, o sacerdócio de todos os crentes e a ênfase na santificação e na obediência aos mandamentos (Rodrigo Galiza, “A Reforma Radical”, em A Reforma Protestante [CPB, 2017], p. 57).

Assim como no adventismo, o culto anabatista era simples e participativo, priorizando o envolvimento de toda a comunidade, sem formalidades ou hierarquias rígidas. O lava-pés, que representa humildade e serviço cristão, era comumente parte da Ceia do Senhor.

Existem também relatos de que alguns anabatistas retomaram a observância do sábado, embora seja difícil avaliar a extensão dessa prática (link.cpb.com.br/c187fc).

Liberdade para todos

A ênfase anabatista na liberdade de consciência ecoa não apenas a defesa adventista da liberdade religiosa, mas também sua escatologia, que critica veementemente a imposição de crenças religiosas pelo Estado. Embora tenha sido fortemente perseguida, a ideia anabatista de separação entre Igreja e Estado acabou se tornando um padrão para a maioria das igrejas evangélicas atuais.

Os anabatistas desempenharam um papel importante na história do cristianismo e dos direitos humanos ao confrontar sistemas políticos e religiosos. Hoje, para nós, é inegociável defender a liberdade de consciência e crença, a busca por uma ética cristã autêntica e a adesão ao princípio sola Scriptura. O legado anabatista nos inspira a perseverar na construção de uma igreja fiel, livre e dedicada aos princípios do evangelho, custe o que custar. 

DAVI BOECHAT é jornalista; ISAAC MALHEIROS é professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia do Unasp

(Artigo publicado na Revista Adventista de setembro/2025)

Última atualização em 29 de outubro de 2025 por Márcio Tonetti.