Crer para compreender

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Se aproximar da Bíblia sem crer no Seu autor resulta apenas em insights puramente literários
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No Novo Testamento, a palavra hermenêutica, em suas variadas formas, pode ser encontrada em diversas passagens. Em seu livro Protestant Biblical Interpretation: A Textbook of Hermeneutics, Bernard L. Ramm cita alguns exemplos: Mateus 1:23; Marcos 5:41; 15:22, 34; João 1:8, 38; 9:7; Atos 4:36; 9:36; 13:8; 1Coríntios 12:10; 14:28; Hebreus 7:2.

De acordo com Henry Virkler, esse vocábulo teve origem na mitologia grega com o deus Hermes, “que servia de mensageiro dos deuses, transmitindo e interpretando suas comunicações aos seus afortunados ou, com frequência, desafortunados destinatários” (Hermenêutica Avançada: Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, 2007, p. 9).

Entretanto, de acordo com Virkler, numa perspectiva técnica, hermenêutica pode ser definida como “ciência e arte de interpretação bíblica”; ciência porque tem normas que possibilitam um sistema ordenado, e “arte porque a comunicação é flexível, e, portanto, uma aplicação mecânica e rígida das regras às vezes distorcerá o verdadeiro sentido de uma comunicação”. Dito de modo simples, hermenêutica é a “disciplina que lida com os princípios de interpretação” (Introdução À Hermenêutica Bíblica: Como Ouvir a Palavra de Deus Apesar dos Ruídos de Nossa Época, p.15).

Da perspectiva semântica, segundo encontramos no New Bible Dictionary (1996, p. 467), o termo grego hermeneuo (“interpretar”) refere-se, basicamente, a dois aspectos: (a) ao “estudo e exposição dos princípios em que um texto – para os presentes efeitos, o texto bíblico – deve ser entendido”; ou (b) à “interpretação do texto de maneira tal que sua mensagem chegue apropriadamente para o leitor ou ouvinte”.

Como se percebe, a hermenêutica lida com exegese e interpretação. Exegese é o processo de examinar o texto para determinar o que os primeiros leitores poderiam ter compreendido de seu significado. Por sua vez, interpretação é a tarefa de explanar ou evidenciar as implicações da compreensão para os leitores e ouvintes contemporâneos. Nesse sentido, nas palavras de Randolph Tate, a hermenêutica é “bipolar” (Biblical Interpretation: An Integrated Approach, 1991, p.15).

Dois erros apontados por Jesus

No livro The Shape of Practical Theology: Empowering Ministry with Theological Praxis (2001, p. 54), Ray Sherman Anderson argumenta que Jesus Cristo não pode ser considerado “apenas o ‘Autor’ das Escrituras por meio do poder do Espírito, mas Ele mesmo é um ‘leitor’ e intérprete das Escrituras”.

Visto dessa forma, Ele é um “hermeneuta”, um intérprete da Bíblia. Em sua tarefa de “hermeneuta”, Jesus surpreendeu por Sua simplicidade, objetividade e clareza. Um exemplo disso está numa frase conhecida dos evangelhos: “Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt 22:29; Mc 12:24).

No entender de Earle Ellis, nesse texto Jesus Cristo destacou dois aspectos fundamentais: “Em primeiro lugar, uma vez que esses treinados estudiosos das Escrituras memorizavam a Bíblia pelos livros, Jesus não estava atribuindo seu erro teológico a uma ignorância das palavras das Escrituras, mas à falta de compreensão do seu significado. Ou seja, o caráter de Escritura da ‘Palavra de Deus’, a sua verdade divina, não são para ser encontrados somente citando a Bíblia, mas discernindo seu verdadeiro significado. Em segundo lugar, a ignorância das Escrituras por parte dos saduceus estava juntamente conectada com seu ceticismo sobre o poder de Deus para levantar aqueles que retornaram ao pó por ocasião da morte. Não diferente de alguns cristãos liberais de hoje, eles aparentemente permitiram que dogmas filosóficos (epicuristas) bloqueassem suas mentes para os ensinamentos dos profetas” (Criswell Theological Review, 1989, p. 344).

Jesus Cristo parece ter atribuído a ignorância das Escrituras ao fato de os saduceus terem sido céticos em relação ao poder de Deus. No caso específico, estava sendo observado que os saduceus não acreditavam na ressurreição. Aqui estamos provavelmente diante de um princípio fundamental para uma hermenêutica da perspectiva de Cristo: para compreender as Escrituras é necessário crer no poder de Deus.

Dito de outro modo, Cristo não entendia a Bíblia meramente em seu significado abstrato, mas “em sua verdadeira significação e aplicação” (Ibid.). Um exemplo disso é seu debate sobre o divórcio, em Mateus 19:3-9. Ele mencionou Deuteronômio (24:1, 3), arguindo que Gênesis 1:21 e 2:24 são os textos que regem o princípio envolvido. Ao fazer isso, Cristo seguiu uma boa prática rabínica, não negando o caráter da Palavra de Deus mas argumentando contra o uso tradicional de Deuteronômio 24 como a passagem reguladora para o relacionamento conjugal.

De fato, o texto de Mateus 19:3-9 deixa evidente a abordagem de Cristo, de não direcionar sua conversa para um viés teórico, pois a pergunta dos fariseus era de cunho meramente informacional, exigindo um sim ou um não, e, no máximo, uma justificativa.

Contudo, Cristo se deteve numa longa consideração de cunho prático. Tal fato demonstra que, em Cristo, a experiência estava sempre acompanhada das Escrituras, e vice-versa. Alguns textos expressam essa ideia: “Isso que vocês ouviram está se cumprindo diante de vós” (Lucas 4:21; Jo 18:9).

Visão integrada

Atualmente, alguns têm separado epistemologicamente dois aspectos indissociáveis: compreender o que está escrito e crer no poder dAquele a quem se refere o texto. Pior ainda: atribui-se certo “endeusamento” à compreensão, classificando-a de “científica”, enquanto se diminui a crença, renegando-a a algo puramente pessoal e religioso, como se no âmbito religioso não houvesse necessidade de compreensão.

Penso ser papel do cristianismo reunir o que nunca deveria ter sido separado: prezar pela compreensão dos fenômenos da vida, fundamentados na crença no Doador da vida. Mais ainda: condicionar a compreensão correta da Palavra à crença no Autor dela. Isso implica pensar que a abordagem correta da Escritura pressupõe um estudante/pesquisador respeitoso e temente a Deus.

Quem se aproxima da Bíblia sem crer no Seu autor terá como resultado apenas alguns insights puramente literários. Mas quem se aproxima dela crendo no Autor, encontrará em suas páginas, além de belos insights, a luz que aponta o caminho rumo à vida eterna.

ADOLFO SUÁREZ, pós-doutor em Teologia, é reitor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia (SALT)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.