Desafios da tradução bíblica

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Teólogo e linguista da Sociedade Bíblica do Brasil explica quais são alguns dos critérios usados na tradução das Escrituras e os cuidados necessários para manter a ideia expressa no texto original
Márcio Tonetti

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Segundo o relatório mais recente divulgado pelas Sociedades Bíblicas Unidas (SBU), as Escrituras já foram traduzidas para pelo menos 2.551 línguas diferentes. Desse total, 1.257 contam com o Novo Testamento, 803 com partes do livro sagrado e 491 com Bíblias completas.

Conforme mostra o último Relatório Mundial de Tradução de Escrituras, em 2013 a entidade contribuiu para a finalização da tradução do texto bíblico em 18 línguas, tornando a Palavra de Deus acessível para um grupo de aproximadamente 15 milhões de pessoas. Entre os idiomas que passaram a ter a Bíblia completa estão o Toba, falado na Argentina por 25.000 pessoas, o Krio, com aproximadamente 495.000 falantes, em Serra Leoa, e o Mandinga, com 1.346.000, na Gâmbia. As novas traduções também incluíram a língua Mongol, falada por 6.500.000 chineses, que recebeu o Novo Testamento, e a Altai, falada na Rússia, por 75.000 pessoas, com o livro de Gênesis.

Embora ainda existam mais de 4 mil línguas que não possuem sequer um trecho da Bíblia traduzido, o número de novas traduções cresce a cada ano e vem sendo impulsionado pelas novas tecnologias, que aceleraram tanto a velocidade da tradução quanto o acesso às Escrituras.

Paulo Teixeira - creditos da imagem William de MoraesNa data em que se comemora o Dia Internacional do Tradutor, a Revista Adventista mostra quais são alguns dos desafios que envolvem a tradução da Bíblia. Nesta entrevista, Paulo Teixeira, secretário editorial da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), explica alguns dos critérios adotados pelos tradutores das Escrituras para tornar o texto bíblico mais acessível para determinadas culturas, sem que haja comprometimento da ideia original.

Até que ponto o texto bíblico pode ser adaptado para facilitar a sua compreensão? Ou seja, quais os limites da contextualização? É possível citar exemplos?

O fato de Cristo humanar-se (Jo 1:14) demonstra o quanto Deus se interessa por comunicar sua mensagem salvífica. A encarnação de Cristo nos inspira a trabalharmos para que o evangelho se “encarne” nas culturas. Isso, é verdade, pressupõe a tradução da Palavra para uma língua diferente daquelas em que foi originalmente registrada. A tradução é a ponte entre as línguas-fontes (hebraico, aramaico e grego) e a língua receptora. Os tradutores buscam transportar o sentido original de maneira que os falantes da língua receptora compreendam o que foi registrado por Moisés, Daniel, João ou Paulo.

Boa parte do texto bíblico admite uma tradução mais literal, palavra por palavra. Mas também há expressões idiomáticas cujo sentido necessita ser interpretado e transportado para a outra língua, além de termos desconhecidos que carecem de alguma adaptação. A saudação “good morning”, do inglês, ao pé da letra se traduz por “boa manhã”; mas em bom português dizemos “bom dia”. Como se vê, o contexto linguístico é importante, mas não é o único.

O contexto antropológico-cultural também precisa ser observado. Numa cultura centro-africana, quando alguém “bate no peito” quer afirmar sua força, sua capacidade, sua integridade, sua honra. Para os nativos dessa cultura, traduzir Lucas 18:13 literalmente transmitiria exatamente o contrário do que a parábola, narrada pelo Mestre, queria ensinar. Naquela cultura, uma pessoa se demonstra triste e arrependida de seus atos “batendo na cabeça”. Daí se traduzir Lucas 9:13, naquele contexto cultural específico, dizendo que o publicano ou coletor de impostos “batia na cabeça”. Nesse caso, a contextualização, além de necessária, permitiu a compreensão da parábola descrita em Lucas 18:9-14 e a assimilação do verso 14, o ensino central que Jesus quer nos deixar com essa ilustração. Quando a contextualização distorce a mensagem e a intenção original do texto, ela deve ser evitada.

Consultores de tradução e tradutores bíblicos convivem com desafios assim em seu dia a dia. A quem se interessar em conhecer mais exemplos nessa área, ficam duas dicas de títulos publicados pela SBB: Manual do Seminário de Ciências Bíblicas e Tradução Bíblica: um curso introdutório aos princípios básicos de tradução.

O que é feito quando certos termos ou ideias expressas no texto original não têm equivalentes no idioma para o qual as Escrituras estão sendo traduzidas?

Há algumas possibilidades. A primeira que vem à mente do leigo é “emprestar” o texto de outra cultura. Embora possível, o fato de ter que explicar o texto dificulta a apreensão imediata do sentido de uma história e pode soar como algo estranho a uma cultura, algo que não lhe pertence. Daí o esforço que os tradutores fazem de buscar a maneira mais natural de expressar um conceito bíblico no contexto da cultura local. Em uma língua africana, por exemplo, na ausência do termo “neve”, Apocalipse 1:14 refere-se aos cabelos de Jesus glorificado sendo “brancos como a plumagem da garça”. Isso comunica o ponto central da comparação, que é a brancura da neve.

Um caso bem mais complexo do que esse é o de uma etnia de Papua Nova Guiné que, de tão beligerante e vingativa, não possuía qualquer termo para designar “perdão” em sua cultura. A primeira tentativa para traduzir esse conceito central do cristianismo foi inventar uma palavra para perdão, mas a falta de adesão da comunidade ao conceito logo motivou os missionários-tradutores a buscar obstinadamente algo que comunicasse perdão de modo direto e compreensível aos indivíduos daquela cultura. No convívio com aquele povo, os missionários observaram que a ideia de vingança era tão forte ao ponto de eles pendurarem a mandíbula de um parente assassinado na entrada principal de suas cabanas, reforçando o desejo de que o mal feito contra aquele parente deveria ser vingado. Foi daí que veio a expressão para designar o perdão: “Deus não pendura mandíbulas”, isto é, “Deus perdoa”. O capítulo 7 do livro Tradução Bíblica, publicado pela SBB, arrola dezenas de exemplos semelhantes, discorrendo sobre “Como traduzir ideias desconhecidas”.

O que, por outro lado, não pode ser mudado? Quais seriam as implicações, por exemplo, de substituir expressões como “cordeiro de Deus” por outra mais próxima daquela cultura? Esse tipo de mudança comprometeria a autoridade das Escrituras?

Em culturas como a dos inuítes (também conhecidos por esquimós), não se conhece cordeiro nem ovelha. No caso deles, após serem explicadas as características do cordeiro, a importância que o mesmo tinha na vida cotidiana dos israelitas e a conexão que as Escrituras fazem desse animal com o sacrifício de Cristo, o próprio povo sugeriu, num primeiro momento, adotar a expressão “um animal manso chamado cordeiro”. Uma alternativa seria “um animal manso parecido com o cachorro ártico”, mas a despeito da importância do cão ártico na vida dos inuítes, a própria comunidade preferiu adotar o conceito “cordeiro” para sua língua, compreendendo que a equivalência com o cachorro empobreceria a mensagem que as Escrituras querem transmitir ao mencionar o “Cordeiro de Deus” (Jo 1:29). Para facilitar a assimilação, juntamente com o termo adotado, foi adicionada a expressão “um animal manso chamado cordeiro”. Essa percepção e decisão dos inuítes demonstra a seriedade com que um povo pode receber a Palavra de Deus.

Levando em conta que o evangelho é supracultural, até que ponto a tradução da Bíblia deve se adequar às especificidades culturais?

O Evangelho pode adequar-se até ao ponto em que a mensagem central da Palavra não seja prejudicada. Elementos culturais que desacreditam a obra do Deus Criador; que ignoram a existência do pecado e minoram a gravidade de seus efeitos; que desconhecem a Cristo e seu sacrifício vicário pela humanidade, através do qual todo aquele que crê é perdoado e recebido na família de Deus; que menosprezam a ação do Espírito Santo como doador da fé e inspirador da vida de santidade; todos e quaisquer elementos que distorçam a mensagem bíblica, especialmente a condensada nos três primeiros e três últimos capítulos das Escrituras Sagradas, tendo João 3:16 como centro, são estranhos ao evangelho e, portanto, devem estar ausentes numa tradução e numa pregação bíblica.

Para saber +

Veja o número de traduções da Bíblia disponíveis em cada continente, conforme o último levantamento feito pelas Sociedades Bíblicas Unidas.

tabela - numero de traduções da Bíblia por continente

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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.