Acabou o que era doce

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Enxurrada de lama proveniente de barragem em Mariana compromete o Rio Doce e deixa população sem abastecimento de água em municípios mineiros e capixabas. Igreja se mobiliza diante da crise hídrica 

Rio Doce na Divisa de MG com o ESP - creditos Secom-ES
Lama proveniente das barragens de Mariana também já interrompeu o sistema de abastecimento de água em dois municípios do Espírito Santo. Créditos da imagem Secom/ES

A dona de casa Elizabeth Pinheiro de Souza não imaginava que o rompimento da barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), no dia 5 de novembro, também mudaria a rotina da cidade dela, localizada a mais de 300 quilômetros do ponto onde aconteceu um dos piores desastres ambientais da história brasileira. Moradora de Governador Valadares há mais de cinco décadas, ela conta que ainda não tinha visto nada parecido. “Foi terrível o que aconteceu aqui”, relata.

Moradora relata o drama vivido pela população de Governador Valadares com a falta de água

A enxurrada de resíduos da barragem da mineradora Samarco provocou um estrago muito maior do que inicialmente se imaginava. Além de, no contexto imediato, provocar pelo menos 11 mortes, deixar 12 desaparecidos e desabrigar 600 famílias, o rio de lama vem impactando municípios até mesmo de outros estados. O efeito cascata se deve ao fato de que uma parte dos cerca de 60 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração (o equivalente a 20 mil piscinas olímpicas) vem se espalhando por centenas de quilômetros, comprometendo importantes bacias hidrográficas.

O Rio Doce, considerado o mais importante de Minas Gerais, foi uma das vítimas desse desastre ambiental. Além de causar prejuízos incalculáveis para a biodiversidade da região, a lama trouxe, evidentemente, sérios problemas para o abastecimento de água em várias cidades.

Os moradores do município de Governador Valadares, que há alguns meses já vinham enfrentando problemas com a seca, viram a situação piorar drasticamente depois que a captação de água precisou ser interrompida, deixando cerca de 280 mil pessoas com as torneiras vazias. Dona Elizabeth relata que, durante esse período, não foi possível nem mesmo lavar roupas. “Eu vi muita gente desesperada, enchendo os carrinhos com água mineral nos supermercados com medo de passar sede. Alguns chegavam ao ponto de tomar o produto uns dos outros. Mesmo quem tem dinheiro não estava achando água mineral aqui. Por isso, as pessoas estavam se estapeando. Foi o que a cidade viveu na última semana”, relata.

A chegada de alguns caminhões-pipa para abastecer os bairros mais carentes de Governador Valadares também provocou tumulto e filas quilométricas (assista ao vídeo gravado por Elizabeth Souza que mostra um desses momentos). Segundo o pastor adventista Edemilson Alves Cardoso, que faz parte do conselho gestor da crise hídrica na cidade, algumas dessas filas chegaram a ter até cinco quilômetros.

Apoio ao poder público

Diante desse cenário caótico, voluntários da Igreja Adventista vêm se mobilizando para apoiar o poder público no atendimento às necessidades básicas da população dos municípios mais atingidos. Com a chegada de carregamentos de água enviados pela própria mineradora Samarco e pela Vale – companhias responsáveis pela barragem em Mariana -, bem como por outras entidades ao redor do Brasil, integrantes dos clubes de desbravadores de Governador Valadares se uniram no último fim de semana para ajudar na distribuição de água.  “Em parceria com o Exército, responsável por manter a segurança nos trinta pontos de distribuição, eles atuaram como voluntários entregando os garrafões para os moradores”, conta o pastor Davi França, líder de Jovens e Desbravadores para a região Leste de Minas Gerais. Ao longo de três dias, mais de 10 mil pessoas foram atendidas por eles.

Líder dos Desbravadores da região Leste de Minas Gerais fala sobre mobilização para distribuir água

De acordo com o pastor Edemilson Cardoso, a igreja também se preocupou em atender aos idosos. “Muitos deles não tinham possibilidade alguma de buscar água e, por isso, fizemos um trabalho voltado para esse público mais vulnerável”, explica.

Veja a entrevista completa sobre as diversas ações que a igreja está fazendo em Governador Valadares

Resposta da ADRA

Desde que as barragens em Mariana se romperam, a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA Brasil) também vem executando várias ações em auxílio às vítimas do desastre. A primeira resposta emergencial foi dada mediante a doação de 600 kits de higiene e limpeza para as famílias desabrigadas do distrito de Bento Rodrigues (veja o infográfico no fim da reportagem). “Essa era a maior necessidade naquele momento”, observa Jefferson Kern, diretor da ADRA Brasil.

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Água arredada pela ADRA será entregue em municípios mineiros e capixabas que tiveram sistema de captação interrompido por causa da lama que atingiu o Rio Doce. Foto: reprodução ASN

“A resposta do Brasil para a situação de Mariana foi muito positiva. O maior problema agora está no caminho do Rio Doce. Por isso, já iniciamos também um plano de resposta para as demais cidades afetadas”, explica Kern. Nesta semana, a agência humanitária enviou o primeiro caminhão com água para a região. Nas próximas duas semanas, a ADRA Brasil pretende destinar cerca de 200 mil litros para os habitantes de municípios mineiros e capixabas. Jefferson Kern explica que a agência humanitária tem um padrão diferenciado de resposta em relação à distribuição de água. “O recomendado é que cada pessoa receba 3 litros por dia. É uma quantidade razoável para se beber e cozinhar. Além disso, trata-se de uma água com qualidade superior à que é entregue nos caminhões-pipa”, ressalta.

A fim de continuar ajudando a suprir essa necessidade, a ADRA Brasil está desenvolvendo uma campanha em favor da captação de recursos que serão destinados para esse fim. Além de receber doações em dinheiro, a agência conta com vários pontos nos Estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, onde os interessados em ajudar podem deixar garrafões de água (veja a lista completa aqui).

Diretor da ADRA Brasil conta como a agência humanitária está respondendo à crise  

Extensão do problema

Embora no caso de Governador Valadares a água tenha começado a voltar às torneiras desde o último domingo, o drama ainda parece estar longe de ter fim. Apesar do uso de um coagulante líquido, o polímero de acácia negra, que ajuda a acelerar a processo de decantação da lama presente na água, a qualidade do produto ainda é duvidosa. A despeito de um novo laudo emitido pela Fundação Ezequiel Dias (Funed), ligada ao governo do Estado, ter mostrado que a lama encontrada no rio, na altura do município, não é tóxica, por outro lado, análises laboratoriais do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) indicaram que a concentração de metais pesados ultrapassou o limite aceitável em três cidades cortadas pelo Rio Doce (Marliéria, Belo Oriente e Rio Casca).

“Mesmo que estejam conseguindo tratar a água do Rio Doce, ela ainda não é considerada saudável para todo e qualquer tipo de uso. Então, a necessidade de água potável continua imensa, pois não se sabe ao certo as consequências finais de toda essa lama “, enfatiza Edemilson Cardoso, membro do comitê gestor da crise hídrica em Governador Valadares.

Enquanto diversas análises tentam mostrar qual a real condição dessa importante bacia hidrográfica, a cada dia a extensão do problema cresce devido à propagação dos rejeitos, que já percorreram cerca de 700 quilômetros até a foz do Rio Doce. Quase duas semanas após o rompimento da barragem, a água com elevada turbidez já chegou em dois municípios capixabas: na última segunda-feira, em Baixo Guandu e, ontem, em Colatina, exigindo que a captação do Rio Doce também fosse suspensa nesses lugares.

Com isso, as prefeituras dessas cidades e o governo estadual, juntamente com a Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros e o Exército, necessitaram se empenhar na busca por meios alternativos para fornecer água potável aos habitantes. Em Colatina, o abastecimento vem sendo feito através de caminhões-pipa, de tanques de armazenamento e distribuição de água, da captação em lagoas da região, da perfuração de poços artesianos e da construção de adutoras. Mesmo com essas medidas emergenciais, a expectativa é de que o abastecimento alternativo atinja somente 30 por cento dos 120 mil habitantes do município.

Onda de solidariedade

Por isso, toda ajuda é bem-vinda. Felizmente, a situação tem despertado uma onda de solidariedade. Na região de Águia Branca e São Domingos do Norte, no Espírito Santo, fiéis da Igreja Adventista iniciaram uma campanha para arrecadar água mineral. A ação, realizada em parceria com a educação adventista, também vem acontecendo em outras partes do Estado. A Escola Adventista da Serra, por exemplo, tem incentivado os pais dos alunos a fazer doações, além de usar as redes sociais para ampliar o alcance da campanha. “Neste momento é importante unirmos forças para ajudar aqueles que estão sendo privados de uma necessidade básica, principalmente as famílias que têm crianças”, destaca Luciana Ritter, diretora da unidade.

Até o fim do mês, clubes de desbravadores do município de Serra também seguem promovendo uma gincana para arrecadar água. O objetivo é repassar as arrecadações para a ADRA, que ficará responsável pela distribuição.

No entanto, a igreja está procurando oferecer mais do que uma resposta imediata. Levando em conta que a recuperação do Rio Doce poderá levar décadas, líderes e membros da denominação pretendem dar contribuições que sejam úteis não só para o atual contexto, mas para o futuro. Uma delas será o investimento na abertura de novos poços artesianos. “Já estamos trabalhando a fim de obter a licença de abertura desses poços para que, caso essa crise se perpetue, ou surjam outras futuramente,  tenhamos condições de suprir não só a igreja, mas a população como um todo”, conta Edemilson Cardoso.

Veja o infográfico e saiba como ajudar

Infografico - água

MÁRCIO TONETTI é editor associado da Revista Adventista (com colaboração de Ayanne Karoline e Jenny Vieira, e infografia de Enio Scheffel)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.