A trilha sonora do fim de ano

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Crédito: treenabeena / FotoliaNão se passa um Natal sem se ouvir os versos “Bate o sino pequenino, sino de Belém / Já nasceu o Deus menino para o nosso bem”. Mas quem morava nos Estados Unidos no século 19 não esperava que “Jingle Bells” se tornasse um sucesso natalino no século 20.

Originalmente intitulada “One Horse Open Sleigh”, a canção composta por James Pierpont, no outono de 1857, tornou-se mundialmente conhecida como “Jingle Bells”. Há quem diga que o autor fez essa canção para um coro de uma escola dominical cantar no Dia de Ação de Graças (o Thanksgiving Day americano, tradicionalmente celebrado em novembro), cuja letra em inglês é bem diferente do nosso “Bate o Sino”:

Deslizando pela neve
Num trenó aberto
Vamos pelos campos
Rindo o tempo todo
Refrão
Batem os sinos, batem os sinos
Batem por todo o caminho
Oh, é divertido passear
Num trenó aberto!

Mas alguns contestam essa história alegando que a letra original seria “animada” demais para ser cantada nas igrejas cristãs daquela época. Por exemplo, em trechos que não se costuma cantar, a letra menciona um jovem casal em alta velocidade no trenó, a queda do rapaz na neve e a risada do seu rival.

Seja como for, “Jingle Bells” não foi composta para o Natal. Com o tempo, porém, a música acabou sendo associada à data, principalmente após o cantor Bing Crosby gravá-la com muito sucesso em 1943. A tendência da indústria musical de lançar músicas natalinas no fim do ano chegou ao Brasil, sendo que a versão de “Jingle Bells” em português foi gravada por João Dias, em 1951.

Aliás, o mesmo Bing Crosby já havia gravado em 1942 outra canção natalina que também não foi composta para o Natal: “White Christmas” (conhecida no Brasil como “Natal Branco”). Essa música integrava a trilha sonora do filme Holiday Inn (no Brasil, Duas Semanas de Prazer), comédia em que Bing Crosby também atuava. A música alcançaria extraordinário sucesso, ganhando prêmios como o Oscar de melhor canção, vendendo mais de 100 milhões de cópias, integrando o repertório natalino de lares americanos e, posteriormente, de muitas igrejas cristãs ao redor do mundo.

Essa apropriação de melodias seculares para fins natalinos não começou com “Jingle Bells”. Pelas mãos do reformador Martinho Lutero, uma antiga canção popular se tornou o hino luterano de Natal “From Heaven Above”. A letra original diz:

Venho de países distantes para lhes trazer muitas notícias
São tantas que não vou conseguir lhes contar todas.

Na adaptação de Lutero:
Eu venho do Céu para lhes trazer boas-novas
Trago-lhes tantas e vou lhes contar e cantar sobre elas.

Da versão secular, o reformador manteve a alusão aos arautos das notícias, mas na letra adaptada por ele, os arautos que anunciam as boas-novas são os anjos. Assim, segundo a Dra. Lilianne Doukhan, “Lutero criou nas mentes das pessoas uma reação de curiosidade e alegria semelhante à que elas experimentavam quando ouviam notícias nas ruas e nos festejos” (In Tune With God, p. 170).

Entre as três canções – “Jingle Bells”, “Natal Branco” e o hino luterano –, há semelhanças no seu processo de adaptação religiosa. A versão brasileira de “Jingle Bells” é mais cantada nos lares e nos shoppings do que em templos. Talvez isso seja uma reação cristã tradicional à sua origem mais folclórica que religiosa ou às expressões corriqueiras da letra (“hoje a noite é bela, juntos eu e ela vamos à capela…”). Por outro lado, se a letra do original em inglês é o relato de uma brincadeira na neve, a versão em português apresenta vários conceitos cristãos:

Paz na Terra pede o sino
Alegre a cantar
Abençoe, Deus menino,
Este nosso lar

No Brasil, o procedimento de incluir expressões cristãs em músicas natalinas seculares se repetiu na versão de “White Christmas”. Enquanto o texto original fala de trenós na neve (algo que teria sentido citar em português) e desejos natalinos de alegria, a versão brasileira de “Natal Branco” apresenta versos como “O Natal é sempre oração, oração de paz universal”.

Alguém pode achar que essas transposições musicais do secular para o sacro feitas no passado devem ser aceitas como um padrão para as atividades da sua igreja hoje. Contudo, é preciso entender como isso foi percebido naquela época e como seria hoje. Primeiro, segundo Gilbert Chase, havia pouca preocupação com a origem secular da música: “Qualquer música que agradasse ao gosto da época tinha probabilidade de ser adaptada a um hino” (Do Salmo ao Jazz, p. 143). Por isso, os hinários protestantes, confeccionados no século 19, estão repletos de cânticos de origem militar, nacionalista, clássica orquestral, rural folclórica, popular urbana, etc.

Se no passado havia menor acesso às informações sobre a origem de uma música, hoje facilmente se descobre de onde determinada canção veio e qual era sua função original. Certas mentalidades e procedimentos do passado se modificaram neste nosso tempo, e o que parece ter sido conveniente aos propósitos religiosos de outrora podem não ser convenientes em outro tempo, e vice-versa. Daí a importância da sabedoria na seleção de elementos musicais hoje.

Aliás, o processo de transformação do dia 25 de dezembro em data-evento da cristandade parece inspirar muitos músicos cristãos. Isso é, em vez de somente imitar procedimentos considerados mundanos, muitos têm incorporado em suas canções os inescapáveis elementos musicais seculares, porém, filtrando-os conforme o entendimento e a necessidade da missão de sua igreja.

Do mesmo modo, em vez de combater o Natal por causa de sua origem pagã, os cristãos devem continuar transformando a data em oportunidade para a reconciliação familiar. Em vez de excederem no consumo, devem ser gratos pelo presente divino do nascimento de Cristo; e, ao contrário de isolar-se do mundo, lembrá-lo do por quê Jesus nasceu.

Jesus nasceu em Belém, e com ele nasceu também
A certeza do império do bem
Jesus nasceu para garantir / um mundo melhor no porvir
Jesus nasceu pra mostrar que o mais importante é se entregar
Por isso Jesus nasceu, por isso Jesus se deu
[adaptação livre dos versos de “Porque Jesus Nasceu”, de Williams Costa Júnior]

Joêzer Mendonça, doutor em Música (UNESP), é professor da PUC-PR e autor do livro Música e Religião na Era do Pop

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.