A privatização da fé

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Entenda por que ela foi confinada à vida particular e de que maneira pode voltar a exercer maior relevância na esfera pública
woman reading the bible in the darkness over wooden table
Créditos da imagem: Fotolia

O mundo dá sinais de fadiga nos sistemas econômicos, sociais e governamentais. A surpreendente eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, a inesperada saída da Inglaterra da União Europeia (Brexit) e a desilusão brasileira com o sistema político nacional apontam para uma frustração de proporções internacionais. Parece haver uma carência de criatividade em gerar boas respostas e modelos adequados para os problemas globais. Diante desse cenário, muitos estão se perguntando qual é o papel do cristianismo dentro dessa realidade.

Desde meados do século 18 tem sido propagado o conceito da secularização. Um dos reflexos desse fenômeno foi a privatização da fé, que que passou a ser considerada subjetiva e pessoal, perdendo seu espaço no discurso público. Paulatinamente, os cristãos também se renderam a essa noção. Talvez seja a hora de repensar o papel da fé na esfera pública.

A secularização é, em parte, reacionária. Suas raízes se encontram na busca pela libertação da opressão do poder religioso-religioso da Idade Média, que impedia o desenvolvimento humano por conta do apego à tradição. O Iluminismo e a Revolução Francesa, marcos da secularização, romperam com a narrativa política de dominação e voltaram os olhos para a capacidade humana de gerar conhecimento através do livre exercício de suas capacidades e criatividade. Assim, a religião como instituição perdeu força. Ao mesmo tempo, avanços científicos e tecnológicos derrubaram mitos tradicionalistas. Porém, a revolta intelectual do secularismo não é direcionada à fé nem à revelação bíblica per se, mas à exploração da instituição religiosa como força de poder, domínio e opressão.

Com o tempo, a ciência substituiu a teologia. Sobretudo no campo das ciências naturais, a objetividade se tornou a regra para a classificação da verdade. Com isso, se processou uma grande mudança epistemológica, isto é, na nossa maneira de adquirir conhecimento. Verdade e conhecimento passaram a ser tudo que pode ser provado pela observação objetiva, através dos métodos científicos.

Enquanto a ciência se tornou absoluta por sua suposta objetividade, a fé passou a ser relativizada por sua subjetividade. Em decorrência disso, a fé foi despida de toda relevância pública.

Porém, o projeto moderno secular fracassou em vários aspectos. No clímax de suas conquistas, duas guerras mundiais demonstraram como os avanços científicos também poderiam ser usados para opressão e busca de poder. O projeto moderno do avanço científico para benefício de todos os povos provou-se apenas uma utopia. Na segunda metade do século 20, cientistas começaram a divulgar a falácia da objetividade científica e a comprovar a subjetividade e influência humana em toda busca científica pela verdade e conhecimento.

A modernidade que respirava otimismo deu lugar à pós-modernidade pessimista. Por sua vez, a fé, outrora subjetiva e particular, voltou a ser uma possibilidade viável para oferecer, entre outras coisas, valores éticos a uma sociedade confusa.

O cenário atual nos chama a refletir se continuaremos aceitando passivamente a proposta ultrapassada de que a fé pertence ao ambiente particular e que não há espaço para seu exercício no universo público. A consequência dessa venda barata da fé é o colapso social marcado pela ausência de valores essenciais ao sucesso do ser humano em comunidade.

Porém, na sociedade contemporânea, a insistência em permanecer em guetos não vem somente por forças seculares, mas por escolha dos próprios cristãos. Em um dos meus textos anteriores já mencionei que o filósofo Luiz Felipe Pondé desafia os cristãos de bom senso, intelectualmente preparados e com valores firmados no reino de Deus, a oferecer respostas melhores à nossa sociedade em apuros.

Os cristãos têm algumas alternativas: (1) continuar num universo isolado, conversando entre si e tentando resolver questões domésticas; (2) desenvolver um novo projeto de reino cristão terreno, visto na Europa e nos Estados Unidos, com resultados condenáveis; ou (3) repensar seus conceitos a partir da revelação bíblica e cumprir o papel de ser luz do mundo e sal da terra até que Cristo venha. Vejo a terceira possibilidade como a postura ideal.

A parábola do bom samaritano deveria nos levar a evitar a “guetorização da fé”, ou seja, a vida vivida na bolha dos iguais, o que consequentemente nos isola do próximo. Por outro lado, o princípio do reino de Deus deveria desestimular tentativas de domínio cristão e imposição da verdade bíblica a qualquer pessoa.

Fé no espaço público

É somente a partir de uma retomada da fé como pertencente ao espaço público, como oferta e testemunho a toda sociedade, que os cristãos podem tornar a esperança em algo útil diante de uma contemporaneidade inquieta.

As palavras de Jesus parecem oportunas para o momento atual: “Não rogo que os tires do mundo, mas que os protejas do Maligno […] Vocês são o sal da Terra […] Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem o Pai de vocês, que está nos Céus […] Bem-aventurados os pacificadores […] Amai-vos uns aos outros.”

O momento parece maduro para revoluções, inclusive para que a fé seja liberta da prisão da vida privada. A fé na iminente volta de Jesus não pode ser usada como desculpa a fim de que nos esquivemos da responsabilidade de vestir o nu, alimentar o faminto, libertar as cadeias dos oprimidos e de oferecer nossa contribuição biblicamente orientada de como viver bem e fielmente. O temor de Deus como princípio de sabedoria tem que ser vivido à luz do dia. A fé no mundo porvir não pode ser uma permissão para desprezar o mundo presente.

Este mundo e as pessoas que nele vivem foram comprados por preço muito alto. É na cruz de Cristo que precisamos encontrar o equilíbrio e a coragem de viver nossa fé publicamente e contribuir para a construção de sistemas econômicos, sociais, governamentais e sociais justos, ainda que duvidemos de que isso seja plenamente realizável.

PAULO CÂNDIDO é doutor em Ministério e está cursando PhD em Estudos Interculturais no Seminário Teológico Fuller, em Pasadena, Califórnia (EUA)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.