Telespectador (com)passivo

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Entenda por que o homem não é esse ser superpoderoso, antenado e seletivo que os ideólogos e comunicólogos de hoje em dia dizem que ele é 
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A liberdade absoluta é um mito. Não somos o que queremos ou desejamos ser, e sim aquilo que esperam de nós ou fizeram conosco. Como uma massa fresca, somos modelados pelas forças e pressões presentes na época e lugar onde vivemos. E ainda que resistamos a elas, somos mesmo fruto do meio. Afinal, o que somos é resultado daquilo a que fomos condicionados. É a ocasião que faz o ladrão. Ponto. É assim que você pensa? É nisso que acredita? Essa concepção de ser humano faz sentido para você? Pergunto isso porque essa tese não é minha, mas de um polêmico pensador que deu origem ao chamado “comportamentalismo”, uma corrente filosófica empirista que ensina que somos controlados pelo meio, ou seja, pelos condicionamentos, pressões e influência que recebemos do ambiente e da sociedade, quer da mídia, quer da escola, da família, da nação ou de qualquer outra fonte.

Embora bastante exagerada, a ideia de Skinner, caricaturada intencionalmente na descrição acima, chama a atenção para algo mais ou menos óbvio: na “gaiola” (ou matrix) em que estamos – ou seja, neste mundo que é como é – a liberdade que nos resta é bem menor que aquela que gostaríamos de ter (ou que merecemos). Alguns dos que discordam do pensamento radical de Skinner dirão que, para ter e desfrutar a liberdade, é preciso não apenas reconhecer e desenvolver a subjetividade das pessoas, mas também estimular nelas a consciência de realidades que elas às vezes desconhecem. É como se o conhecimento fosse a luz capaz de tirá-las das trevas que as aprisiona e elevá-las a uma condição de superioridade, tal como descrito no Mito da Caverna, de Platão, em cujo pensamento radica parcialmente o gnosticismo ocidental. A capacidade humana de ser e a de conhecer seriam, portanto, elementos centrais para o exercício da liberdade, e também para tudo aquilo que, afinal, fazemos, sentimos, sabemos ou podemos vir a aprender ou realizar.

Agora pense num indivíduo assim dentro do contexto de uma sociedade saturada de informações e dominada pela tecnologia e pelos meios de comunicação. Pensou? Responda então: como ele usa a liberdade que (ainda) tem? De modo completamente autônomo, consciente, consentido, bem informado, independente, equilibrado? De maneira geral, diante do poder da mídia, as pessoas são normalmente ativas, propositivas e defensivas? São críticas, questionadoras, proativas, atentas? Agem de maneira madura e desprendida? Exercem de modo contundente a sua cidadania? Tudo indica que não. A liberdade de imprensa não garante todas as outras liberdades, embora possa ajudar a fomentá-las. A liberdade para ir e vir ou para ser um empreendedor (ou para qualquer outra coisa) têm essa mesma limitação e potencial. Aqui há uma série de dilemas e contradições que tornam o tema bastante complexo, filosófico até. Por isso, eu diria que a liberdade humana não é um mito irremediável, como Skinner supôs, nem tampouco é o homem esse ser superpoderoso, antenado, seletivo e imbatível tal como o concebem alguns ideólogos e comunicólogos contemporâneos. Esses são extremismos que falam por si mesmos. É por essa razão que não posso deixar de me perguntar o que esse (novo) discurso megalomaníaco e ultra-humanista pretende. A quem essa falácia lisonjeira seduz? Quem dela se beneficia, afinal?

Se não mais pudermos falar de manipulados, saem ganhando os manipuladores de plantão. Afinal, ninguém irá combater um mal que não existe. Se já não há cérebros sendo lavados, bom para quem continua no ramo, beneficiando-se do silêncio, das sombras e da isenção de impostos. Se opressores não existem mais, a única coisa que resta aos que se sentem oprimidos é o silêncio resignado ou o poço do conformismo. Se não existe excesso de ruído, então que utilidade teriam as leis e dispositivos destinados a evitar a poluição sonora? Se a violência é só percepção, não fato, então acabemos com os mecanismos de segurança, demitamos os policiais, soltemos os presos, derrubemos os muros, removamos as cercas. Se não há nenhum tipo de engenharia social possível, então durmamos tranquilamente acalentando a ideia de que decidimos com absoluta liberdade tudo aquilo que queremos, somos e fazemos. Se teorias conspiratórias só existem nos filmes, então vivamos como numa aldeia hippie, curtindo entorpecidamente cada amanhecer e cada pôr do sol, como se não houvesse amanhã. Façamos o jogo do contente. Teatralizemos. Que tal sorrir para as câmeras?

Mas antes de fazer isso, por favor, pense bem. Pare e observe por algum tempo. Escute com atenção. Olhe para o seu bolso e veja se não há, talvez, hipoteticamente, uma liberdade de tipo financeiro que limita/liberta você. Analise bem o seu bairro e descubra se não haveria outra, talvez, de tipo geográfico. Tente mudar de profissão e talvez perceba que há uma outra, de tipo social. Experimente uma nova crença, ou postura ideológica, ou discurso político ou religioso, ou esporte, ou estilo de vida ou partido de futebol… Você verá que a flexibilidade existente tanto em sua vida como na mente alheia não é tão ampla assim. E nem poderia. Pudera!

Em certo sentido, parece que Skinner estava certo. Há muitas amarras que nos prendem. Dá dó! Só acho que ele esqueceu que mesmo passarinhos engaiolados fazem muitas coisas, duas das quais me chamam muito a atenção: eles cantam e eles fogem. Em outras palavras, aprendem a lidar com as diferentes dimensões e possibilidades da vida, num gradiente que pode ser inusitado, quando não surpreendente. O que não fariam esses pobrezinhos se algum dia chegassem a ter (mais) consciência e subjetividade?

Talvez passassem menos tempo no celular ou na frente da televisão. Talvez cuidassem melhor da saúde e se tornassem especialmente chatos na escolha de seu alpiste. Talvez produzissem mais e consumissem menos (ou o contrário!). Talvez fossem mais seletivos e criteriosos quanto ao que pensam, veem, escutam, fazem. Talvez se entregassem mais a prazeres duradouros e menos aos efêmeros. Talvez se perguntassem mais vezes sobre o que realmente importa, sobre o que vale ou não vale a pena. Talvez cultivassem relacionamentos mais autênticos e sólidos. Talvez se preocupassem menos com as aparências. Talvez vivessem a vida de modo mais leve e confiante. Ou… talvez fizessem exatamente como estão fazendo agora, escolhendo o mesmo, plantando e colhendo o mesmo, agindo maquinalmente, programaticamente, inconscientemente… como se Skinner tivesse razão.

JÚLIO LEAL é pastor, doutor em Educação e editor de livros didáticos na Casa Publicadora Brasileira

Última atualização em 28 de dezembro de 2017 por Márcio Tonetti.