Os adventistas e a guerra

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O centenário do Dia do Armistício, que simbolizou o fim da Primeira Guerra Mundial, é lembrado hoje. O que podemos aprender com a posição e o testemunho dos adventistas nesse conflito que marcou a história?
Victor Hulbert
Pelo menos 19 adventistas passaram um tempo na prisão de Dartmoor, na Inglaterra

“A guerra para acabar com a guerra” foi um bordão usado para a Primeira Guerra Mundial. Infelizmente, a história conta outro conto. Apesar da morte de 17 milhões de soldados na Primeira Guerra Mundial, e dos danos causados a outros 21 milhões, o Imperial War Museum, em Londres, registra que guerras têm ocorrido todos os anos, matando desde então cerca de 187 milhões de pessoas.

Nesta semana, o mundo recorda os 100 anos do Dia do Armistício, comemoração do fim da Primeira Guerra Mundial. No entanto, refletir e olhar para frente fornece um paradoxo para os cristãos adventistas do sétimo dia.

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Como cristãos, reconhecemos que a guerra e os rumores de guerra são sinais do fim dos tempos e, seja na Primeira Guerra Mundial, na guerra na Síria ou no Iêmen, ainda lutamos contra o horror da desumanidade do homem para com o homem. Ansiamos pelo tempo em que a guerra não mais existirá, pois o Grande Conflito entre Cristo e Satanás estará terminado. Almejamos o dia em que Deus, conforme a promessa feita em Apocalipse 21, fará novas todas as coisas.

Mas até então, como reagimos? Por serem pessoas de paz, historicamente os adventistas mantiveram uma posição pacífica. Há quatro anos, no início das memórias do centenário da Primeira Guerra Mundial, o pastor Ted Wilson, líder mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, escreveu um artigo na revista Adventist World, intitulado “A Batalha: Deveriam os Adventistas Servir nas Forças Armadas?”

“Como em outras questões difíceis, os líderes pioneiros estudaram as questões usando a Bíblia como guia e concluíram que a posição mais consistente com os princípios bíblicos era a não-combatência (a objeção de consciência ao porte de armas). A principal razão para essa posição era que os adventistas que serviam às forças armadas seriam forçados a comprometer sua lealdade a Deus se obedecessem aos comandos de seus oficiais. Os dois mandamentos bíblicos mais diretamente envolvidos eram o quarto, de manter o sábado sagrado, e o sexto, de não matar”, ele escreveu.

Documento mostra apelo feito por Chappell ao tribunal de Brynmawr para vender livros em vez de lutar. Crédito: acervo da Divisão Transeuropeia

Os adventistas britânicos acrescentaram outra razão primária quando foram chamados para o serviço ativo durante a Primeira Guerra Mundial. William George Chappell, que trabalhou vendendo literatura cristã, foi chamado para um tribunal em Brynmawr, South Wales, em 25 de março de 1916. Em sua notificação de apelação, ele declarou: “Como sou adventista do sétimo dia, me oponho à guerra”. Ele disse que achava mais importante “ir pregar o Evangelho” do que estar envolvido na guerra. Sem surpresa, o tribunal discordou, afirmando que seu trabalho não era “de importância nacional” e apenas o isentava do serviço combatente.

Como você pode matar pessoas com as quais você deveria compartilhar o Evangelho? Essa foi a opinião quase unânime da Igreja Adventista no território britânico. Em algumas outras partes da Europa, a objeção de consciência não era uma opção. Para eles, a vida era mais difícil, e os adventistas, os quakers e outros grupos com tradições pacifistas muitas vezes se encontravam no exército, embora muitos buscassem papéis que não exigissem armas.

Cerca de 130 adventistas britânicos tornaram-se objetores de consciência durante a Primeira Guerra Mundial. Alguns serviram em unidades não combatentes; outros foram presos. Mas todos aproveitaram a oportunidade para testemunhar.

Elizabeth Yap escreve sobre seu avô metodista, Gilmour Dando, encarcerado na prisão de Dartmoor como objetor de consciência. “Enquanto ele estava lá, se familiarizou com outro prisioneiro que era adventista do sétimo dia. Eles não foram autorizados a falar um com o outro, mas isso aconteceu ao colocarem ambos para limpar outras celas. Como resultado, meu avô pôde deixar “anotações” nas paredes de tijolos da cela desse homem. Esse arranjo permitiu ao avô fazer perguntas sobre o sábado, que seu amigo era livre para responder da mesma maneira, na cela do meu avô. Como resultado, meu avô foi condenado pelo sábado e, ao terminar a guerra, tornou-se adventista do sétimo dia”, a neta registrou.

Alguns testemunhos de objetores de consciência na França e em outros lugares foram relatados na revista Missionary Worker. Outros compartilharam suas experiências de guarda do sábado e de respostas à oração. Porém, nem todas as orações foram respondidas como esperado. O documentário A Matter of Conscience (Uma Questão de Consciência, em tradução livre) conta a história de 14 jovens severamente punidos por sua recusa de trabalhar no sábado. Depois da guerra, integrantes desse grupo se tornaram líderes na Igreja Adventista, tanto no Reino Unido quanto no mundo todo.

A experiência dos adventistas na Primeira Guerra Mundial e seu testemunho consistente deram frutos alguns anos mais tarde, no segundo conflito mundial. Discussões com o escritório de guerra do Reino Unido deram aos adventistas isenções do serviço militar, desde que estivessem envolvidos em trabalho de importância nacional. O pastor H. W. Lowe afirmou: “Ao longo dos anos tenho refletido com frequência sobre as provações da vida que parecem tão inexplicáveis no momento. É nesses momentos que os atos de lealdade são as sementes semeadas para o outro colher”.

Tais experiências podem, sem dúvida, ser contadas em muitos lugares diferentes. Sakari Vehkavuori relata como, durante a guerra civil de 1918 na Finlândia, seu bisavô, Viktor Ståhlberg, implorou para salvar a vida dos prisioneiros que seriam mortos como vingança pela morte ilegal de seu filho e outros nove jovens da cidade. Ele quebrou um ciclo de vingança pregando o evangelho e desafiando-os: “Agora essa matança é suficiente; vocês não podem matar nenhum Vermelho (exército oposto) pela vida perdida do meu filho, nem um”.

Viktor Ståhlberg

Ståhlberg colocou em prática as palavras de Pedro: “Não retribuam mal com mal nem insulto com insulto; pelo contrário, bendigam; pois para isso vocês foram chamados, para receberem bênção por herança” (1Pe 3:9 NVI).

Depois de cem anos de guerra constante em algum lugar do mundo, talvez nossa única esperança plena seja a fornecida pela Escritura: “Quando começarem a acontecer estas coisas, levantem-se e ergam a cabeça, porque estará próxima a redenção de vocês” (Lc 21:28, NVI).

Enquanto esperamos por esse grande dia, também temos uma missão de paz, a missão de compartilhar boas novas e proporcionar esperança. Em vez de um memorial de guerra, os adventistas britânicos plantaram um Jardim da Paz, para lembrar aqueles objetores conscienciosos de 100 anos atrás. Em um nível mais profundo, o Jardim da Paz também tem o potencial de ajudar os visitantes a se concentrarem na paz que Cristo pode trazer ao nosso coração, mesmo em tempos de sofrimento e dificuldade.

Ian Sweeney, presidente da Igreja Adventista para o Reino Unido e a Irlanda, afirma que “enquanto somos cidadãos de dois reinos, quando esses reinos colidem, o reino de Deus deve ter prioridade”. O compromisso desses “heróis alternativos” de 100 anos atrás pode ser a inspiração para nós, a fim de que honremos ainda mais as palavras de Jesus: “Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo” (Jo 14:27).

VICTOR HULBERT é diretor de Comunicação da Divisão Transeuropeia

Última atualização em 11 de novembro de 2018 por Márcio Tonetti.