Investir no futuro

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A história do pastor italiano que encontrou sua vocação em organizar e executar projetos de geração de renda na América Latina
Foto: Arquivo pessoal

À margem do Mar Adriático, com seus 330 mil habitantes, está a cidade italiana de Bari. Segundo centro econômico mais importante do sul da Itália, tradicional reduto portuário e acadêmico, Bari é uma sobrevivente da II Guerra Mundial. Em 2 de dezembro de 1943, 105 bombardeiros alemães atacaram o porto da cidade com gás mostarda, uma arma capaz de provocar asfixia e levar à morte. O ataque foi tão intenso que o porto só voltou a funcionar dois meses depois, em fevereiro de 1944.

Foi em Bari e nesse contexto de tensões que nasceu Giuseppe Carbone, também em 1944. Apesar de ter vivenciado a infância no difícil contexto do pós-guerra, Carbone tem boas lembranças desse período. “Brincava bastante com os amigos, comia bastante peixe, tinha uma vida feliz”, sintetiza. Hoje, com 73 anos, o italiano visita centenas de pessoas beneficiadas pelos projetos da fundação que dirige e da qual foi voluntário por 32 anos: a Advent-Stiftung. Em outubro ele esteve em Salvador (BA) para acompanhar de perto uma iniciativa de qualificação profissional e geração de renda financiada pela ONG que representa.

Italiano com naturalidade suíça, Carbone passa a maior parte de seu tempo viajando pela América do Sul e Central, fechando parcerias para projetos e visitando famílias assistidas. Ele participou diretamente de iniciativas que beneficiaram cerca de 5 mil pessoas. E, ao testemunhar cada história de transformação, o diretor da Advent-Stiftung vibra com o nível de autonomia que pessoas outrora marginalizadas ganham com o fomento ao empreendedorismo.

Carbone afirma que essa vocação para a prática do bem sempre o acompanhou, mas que esse ímpeto foi intensificado na década de 1960. Foi nessa época que ele conheceu Rita, sua primeira esposa, a jovem que lhe apresentou a mensagem adventista. Nascido em uma tradicional família católica, após sua conversão ao adventismo, ele decidiu estudar Teologia no seminário da igreja em ­Collonges-sous-Salève, no sudeste da França.

Em outubro de 1970, Carbone iniciou seu ministério pastoral em Milão, uma das regiões metropolitanas mais populosas da Itália. Ali ele ficou alguns anos até aceitar ser missionário em Cabo Verde, arquipélago de fala portuguesa na costa oeste da África. Iniciava-se ali uma experiência que seria determinante para seu futuro e sua dedicação ao terceiro setor.

“Quando cheguei a Cabo Verde não chovia fazia alguns anos. A eletricidade era um artigo de luxo. Não havia farmácias, muito menos um hospital. Havia muitas crianças sofrendo com meningite. Uma vez por semana, vinha até a ilha um oficial militar que era médico, para atender um número bem restrito de doentes”, lembra Carbone. A percepção do sofrimento humano haveria de acompanhar seu ministério.

PRIMEIROS PASSOS

Em 1975, ainda na Ilha de Fogo, Carbone teve acesso a uma carta oferecendo uma doação considerável de um filantropo alemão para construir uma igreja naquela localidade. O projeto previa um templo, casa pastoral, salão para os jovens e até uma escola. Aquilo trouxe muita alegria para o pastor Carbone. Depois de tudo construído, ele tirou fotos, preparou um relatório e enviou o registro por correspondência para Hans Freuler, o nome por trás daquela doação.

Freuler e Carbone desenvolveram uma amizade que serviu de base para o surgimento da entidade. O filantropo alemão fundaria três anos depois, em 1978, a instituição Advent-Stiftung (Fundação Advento, em alemão). Em determinado momento, Freuler confidenciou a Carbone que gostaria de investir mais dinheiro em projetos humanitários. “Tenho recursos e gostaria de usá-los para melhorar a vida das pessoas”, afirmou. Carbone aceitou ajudar na organização e execução dos projetos. Ele ressalta que sua participação nos projetos da Advent-Stiftung foi voluntária no período em que esteve na ativa no ministério pastoral. Costumava dedicar duas semanas de suas férias em projetos no Brasil e as outras duas supervisionando iniciativas na América Central.

Uma oportunidade para expansão dos planos da entidade surgiu quando Carbone foi chamado para a igreja no Brasil, especificamente no Ceará e Piauí. “Naquele tempo, em 1982, esses dois estados brasileiros estavam passando por uma tremenda seca. Não somente havia falta de produção agrícola, mas ­escassez de trabalho no campo.” Já com a entidade legalizada e oficialmente reconhecida, Carbone procurou Hans Freuler, pedindo ajuda para comprar e distribuir comida no Nordeste. A assistência foi ampliada, depois, para a compra de equipamentos. Em 1986, a fundação começou a doar também exemplares da Bíblia, prática que continua exercendo ainda hoje.

O trabalho assistencial que Giuseppe Carbone desenvolveu no Brasil rendeu-lhe um convite para atuar como diretor associado da ADRA (Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais) em nível sul-americano. Sua preparação incluiu passar uma temporada na sede mundial da entidade, na região de ­Washington (EUA), para entender melhor a dinâmica da ADRA.

A aproximação de Carbone com a realidade sul-americana o fez enxergar melhor as desigualdades históricas do nosso subcontinente. Também ampliou seu nível de relacionamento com governos e empresas. Foi no exercício dessa função que o pastor adventista percebeu que um dos maiores entraves para que as pessoas mudassem de vida era a falta de acesso ao trabalho e uma fonte de renda. Sem trabalho, essas pessoas caíam na dependência social e depressão, perdendo assim a autoconfiança e a própria identidade. “Conheci pessoas que sustentavam as próprias famílias com alimentos que recolhiam no chão das feiras ou das lixeiras que sistematicamente revistavam. Eu me perguntava como poderia ajudar estas pessoas”, descreve.

Dessas observações, surgiu a ideia de desenvolver o projeto “Viva Melhor”, que consistia na doação de um equipamento de trabalho para quem demonstrasse disposição para gerenciar seu próprio negócio. As pessoas recebiam equipamentos que viabilizassem a comercialização de produtos e serviços, como carrinhos para venda de lanches e kits de costura. Além de oferecer a vara, a entidade ensinava os interessados a pescar: a doação do equipamento era acompanhada de um treinamento para desenvolver o trabalho.

De volta à Europa em 1991, Carbone apresentou para Freuler um relatório do projeto “Viva Melhor”. O alemão se interessou pelo projeto e estava disposto a investir nele, mas infelizmente faleceu nesse intervalo. Entretanto, a fundação resolveu apoiar a iniciativa. Foi por isso que já em 1992 equipamentos para geração de renda começaram a ser distribuídos em algumas capitais do Nordeste e Sudeste do Brasil, e também em países da América Central.

Doação de equipamentos e realização de cursos profissionalizantes já ajudaram centenas de famílias. Foto: Arquivo pessoal

“Quantas experiências fantásticas testemunhei! Pessoas que receberam um forno, e depois de dois ou três anos, abriram padarias. Outros que ganharam equipamentos para consertar carros como ambulantes e depois de alguns anos estavam inaugurando uma oficina mecânica e empregando funcionários. Uma mãe que recebeu uma grelha e com o trabalho pagou os estudos do filho, que hoje é o presidente de uma Associação da igreja”, emociona-se ­Carbone, ao enumerar as histórias que conheceu.

ESCOLAS PROFISSIONALIZANTES

Por volta de 2005, os projetos da fundação receberam o reforço de uma ideia vinda de um casal de missionários de Vitória (ES), que Carbone abraçou de imediato. O objetivo era oferecer também um curso profissionalizante para o beneficiado. Em parceria com a igreja e entidades como o Senai e o Senac, foi possível conseguir professores e até mesmo emitir certificados de formação, além de continuar oferecendo os equipamentos.

O primeiro curso profissionalizante, de corte e costura, foi realizado em 2007, na capital capixaba. “Quem pertencia a uma família carente e terminava o curso, ao receber a certificação, levava para casa a máquina de costura que tinha usado para aprender a profissão”, lembra Carbone. “Hoje organizamos cursos de corte e costura, de estética e cosméticos, de carpintaria, de solda, de eletricista, de pintura, de padaria e gastronomia, além de manutenção de ar-condicionado.

Os cursos são oferecidos conforme as necessidades locais”, completa. Uma das experiências mais interessante ocorre em Recife (PE), onde a fundação coordena escolas profissionalizantes nas prisões estaduais há mais de cinco anos.

Com uma vitalidade surpreendente para seus 73 anos, o pastor Giuseppe Carbone não dá sinais de que as ações da fundação Advent-Stiftung vão parar. Durante o período em que colaborou com a fundação, ele teve perdas pessoais (Rita, sua esposa, faleceu, e posteriormente ele se casou com Rosylene Gorski); mas também aprimorou seus conhecimentos acadêmicos (concluiu doutorado em Antropologia numa universidade portuguesa e em Sociologia numa instituição na Itália).

Após sua aposentadoria como pastor adventista, ele assumiu funções executivas na entidade e passou a acompanhar pessoalmente os projetos e a visitar as famílias beneficiadas. “A Advent-Stiftung tem uma filosofia muito clara de trabalho. Não realizamos projetos, documentamos com fotos e depois dizemos adeus às pessoas. O objetivo é acompanhar as famílias para nos certificar de que elas estejam vivendo melhor”, destaca.

A inspiração para tanto empenho? Segundo ele, é a resolução de seguir o exemplo de Jesus. Na leitura que faz de Cristo nos evangelhos, Carbone encontra motivação para ajudar o próximo, mesmo que esse alguém pense diferente dele e jamais se interesse por sua fé. Ele lembra que a fundação não aceita qualquer forma de proselitismo. “Por meio das minhas ações coerentes é que poderei despertar o eventual interesse do beneficiado pela mensagem bíblica de salvação”, reflete.

Assim como Bari, sua cidade natal, sobreviveu à guerra, e foi reconstruída com trabalho, Carbone acredita que novas histórias podem ser escritas se pessoas desfavorecidas tiverem a oportunidade de construir o próprio futuro a partir do esforço individual.

HERON SANTANA é jornalista e diretor do departamento de Comunicação da Igreja Adventista para a Bahia e Sergipe

(Texto publicado na seção perfil da edição de novembro de 2017)

Última atualização em 20 de dezembro de 2018 por Márcio Tonetti.