Retratos sagrados

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Especialista analisa a relação das igrejas protestantes com a cultura visual
LEONARDO SIQUEIRA
Imagem da obra A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci

No contexto religioso, uma imagem pode representar muito mais do que uma simples expressão da fé. Há alguns anos, David Morgan, diretor do Departamento de Estudos em Religião da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, tem buscado entender a relação das imagens com o sagrado.

Ele defende que a religião não está restrita a doutrinas e textos nem aos locais e formas de adoração. Para Morgan, ela também se expressa por meio da iconografia.

Nesta entrevista exclusiva à Revista Adventista, o autor de diversos livros sobre a história da cultura visual religiosa analisa o uso e o significado das formas pictóricas no cristianismo, especialmente as que retratam Jesus, e a relação das igrejas protestantes com a cultura visual.

No livro The Sacred Gaze: Religious Visual Culture in Theory and Practice (Olhar Sagrado: A Cultura Visual Religiosa na Teoria e na Prática, em tradução livre), você diz que a expressão “cultura visual” é mais um termo inventado. Por quê?

A ideia de cultura visual vem do fim do século 20, quando pesquisadores da história da arte, antropologia e estudos da mídia buscaram entender o papel que as imagens populares desempenhavam na vida cotidiana. Assim, a expressão cultura visual foi criada para expandir o escopo dos estudos visuais para algo que fosse além das famosas obras de arte, e incluísse tanto as imagens do cotidiano quanto o uso que as pessoas fazem delas. Quando comecei a pesquisar sobre arte religiosa, na década de 1990, entendi que seria útil expandir esse conceito de cultura visual para o estudo da religião, pois essa área ainda não havia sido estudada mais atentamente.

Em se tratando especificamente do cristianismo, como a imagem de Jesus foi formada?

Por volta do 5º século, as imagens exerceram um papel muito importante no movimento de expansão do cristianismo fora de Jerusalém e da Palestina, em direção aos gregos e ao então universo que falava o latim. Ao permitir que as pessoas imaginassem Jesus como elas mesmas, racional, étnica e culturalmente, as imagens contribuíram para que o cristianismo criasse raízes em novas culturas. É possível encontrar imagens de Jesus se parecendo com os gregos, italianos, coreanos, africanos, norte-americanos e latinos.

Há semelhanças no modo com que católicos e protestantes visualizam Jesus?

É possível perceber distinções em relação a alguns dos simbolismos presentes nas imagens. Mas elas são notavelmente semelhantes. Os protestantes sempre emprestaram essas imagens das tradições visuais católicas. Porém, ao se apropriarem delas, efetuaram as modificações que julgaram necessárias.

E as principais diferenças?

Desde o início do século 17, a ênfase protestante tem sido a personalidade de Cristo, pelo fato de o considerarem um personagem histórico. Um dos primeiros grandes artistas protestantes a representá-lo dessa maneira foi Rembrandt (1606-1669), um pintor holandês. Ele fez uma série de pequenos retratos de Jesus focalizados no rosto dele, sem os símbolos católicos. Isso se estende até nossos dias. Se você analisar as imagens mais populares de Jesus usadas ao longo do século 20 pelos adventistas do sétimo dia e por praticamente todos os protestantes, incluindo luteranos, metodistas e presbiterianos, irá perceber que são imagens que retratam Cristo como um ser humano real. Essas figuras não contêm os símbolos da Trindade, a cruz, nem qualquer imagem tradicional que faça referência a um imaginário litúrgico. Ilustram apenas Jesus, o Homem. Os espectadores são convidados a olhar para seu rosto como a manifestação da sua personalidade humana.

Quais fatores influenciaram uma visão mais humanizada de Jesus?

Há uma cópia do século 14 da suposta carta escrita por Publius Lentulus, cônsul romano que teria vivido na época de Jesus, que traz uma descrição física de Cristo. O documento descreve como era o rosto do Filho de Deus. Mas, se você ler a carta, verá que ela foi claramente moldada pela antiga tradição de representar Cristo. O que temos, em vez de uma imagem miraculosa dele (como no Santo Sudário, por exemplo), é um retrato, um estilo visual de representação de Jesus que emergiu no 7º e 8º séculos da era cristã. De um jeito ou de outro, todas essas representações destacam as mesmas coisas. Jesus teria uma testa longa, um rosto calmo, não sorridente, mas uma expressão muito sóbria. Seu rosto é comprido, bem simétrico, cabelo dividido ao meio, acima da testa, e se estendendo até os ombros. Essas características foram aquelas que os artistas retrataram ao longo de séculos. Atualmente, esses desenhos ainda se parecem com aquela descrição de Jesus expressa na carta mencionada anteriormente. Isso se deve à existência de arquétipos ou modelos mentais.

Como os protestantes se relacionaram com as imagens ao longo da história?

Em geral, os protestantes gostam de dizer que não produzem imagens. Mas Lutero, o reformador do século 16, não era inimigo delas. Suas primeiras contribuições ao traduzir a Bíblia para o alemão incluíram ilustrações do Antigo e do Novo Testamento, de Davi, Moisés, Abraão e Jesus. Desde o começo, os protestantes têm sido produtores de imagens. Embora evitem colocá-las nos templos, não é incomum encontrar imagens de Jesus nas igrejas metodistas e luteranas. Além disso, as igrejas protestantes não veem problema em usar imagens para ilustrar livros ou transmitir sua mensagem.

Você acredita que nossa maneira de ver Jesus influencia a leitura do texto bíblico?

Acredito que sim. As imagens são particularmente eficazes para cultivar uma conexão emocional. Nesse sentido, elas expressam afeição por Jesus. E provavelmente correspondam à forma pela qual as pessoas leem a Bíblia e entendem sua mensagem.

Argumenta-se que, historicamente, os protestantes sacralizaram o texto e demonizaram as imagens. Esse estereótipo é verdadeiro?

Acredito que, na maioria dos casos, não tenha sido assim, apesar dos episódios de iconoclastia (destruição de ícones religiosos ou outras imagens e monumentos por motivos religiosos ou políticos). Por volta de 1520, alguns luteranos na Alemanha invadiram igrejas católicas. Lutero condenou isso. Mais tarde, quando o luteranismo se tornou a religião dominante no norte do país, eles usaram suas próprias pinturas nos altares, e as imagens de Cristo voltaram às igrejas.

No cristianismo oriental, há alguma representação de Jesus que supostamente se aproxime mais da imagem real de Cristo?

Em uma basílica de Roma, há um mosaico do 5º ou 6º século que mostra Jesus com a pele bem escura. Isso é pouco usual, pois é mais comum vê-lo como um homem branco. Também é raro vê-lo representado como judeu. Historiadores da arte têm sugerido que Rembrandt tivesse usado modelos judeus para suas pinturas de Cristo. É uma hipótese interessante. Se isso, de fato, aconteceu, seria uma das primeiras vezes na história do cristianismo que alguém fez isso. Rembrandt fez suas pinturas de Cristo por volta de 1648, 1650, o que significa que mais de 1500 anos se passaram após a morte de Cristo, sem que ele fosse representado como um homem judeu.

Como a Igreja Adventista, com sua herança milerita, tem feito uso das imagens?

Acredito que houve uma mudança importante ao longo da história do adventismo. No começo do século 19, as ilustrações tinham a função de ajudar as pessoas a entender as complexidades das profecias bíblicas. Desse modo, as imagens eram recursos hermenêuticos, isto é, ferramentas para entender e interpretar as Escrituras. Embora ainda se use ilustrações com esse propósito no meio adventista, na maioria dos casos há um grande interesse na pessoa de Jesus. Percebo que, nas ilustrações adventistas, o lugar de Cristo se torna mais importante. Vejo os adventistas muito interessados em retratar Jesus como o centro de sua fé e dar ênfase no relacionamento com o Salvador. De alguma forma, seus retratos se tornaram mais próximos do cristianismo evangélico.

SAIBA +

Autoridade no assunto

Morgan recebeu o título de doutor pela Universidade de Chicago (EUA) em 1990. Como pesquisador, publicou dezenas de ensaios e artigos sobre a história da cultura visual religiosa, história da arte, teoria crítica, religião e mídia. Entre os livros mais recentes de sua autoria estão The Forge of Vision: A Visual History of Modern Christianity (University of California Press, 2015), The Embodied Eye: Religious Visual Culture and the Social Life of Feeling (University of California Press, 2012) e The Lure of Images: A History of Religion and Visual Media in America (Routledge, 2007).

(Entrevista publicada originalmente na edição de abril de 2017 da Revista Adventista)

Última atualização em 26 de abril de 2019 por Márcio Tonetti.