As fake news e o Apocalipse

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Por que as notícias falsas não podem ser aceitas pelos cristãos

Ekkehardt Mueller
Crédito: Adobe Stock

Vivemos na era das fake news, um tipo de jornalismo, propaganda ideológica e talvez até mesmo uma abordagem à vida que lança mão de informações incorretas de maneira deliberada. Mensagens falsas são escritas e postadas com a intenção de criar a própria “verdade”, esconder motivações e atos pessoais e, numa esfera mais ampla, enganar organizações e/ou indivíduos, obter vantagens financeiras ou políticas e prejudicar outros.

As notícias falsas costumam ser espalhadas com alegações sensacionalistas, exageradas ou inverídicas a fim de atrair a atenção. Não se limita às mídias sociais, mas também são encontradas na política, em pesquisas de mercado, na ciência, no mundo religioso e em vários outros lugares.

Ao passo que enganos e informações intencionalmente equivocadas sempre acompanharam a humanidade (desde a serpente no paraíso), parece que a situação alcançou um nível inesperado e assustador, uma vez que se tornou quase impossível discernir a verdade das mentiras e falsidades.

TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

Relacionadas às fake news, as teorias da conspiração consistem em explicações de eventos e situações do passado, presente e futuro que sugerem que algumas pessoas e certos grupos poderosos nos bastidores correm atrás de objetivos ameaçadores e danosos relacionados à vida ou ao estilo de vida de indivíduos ou de populações inteiras. Elas podem ser engatilhadas por uma desconfiança profunda de explicações oficiais e motivadas por teorias religiosas ou agendas políticas.

Por definição, as teorias da conspiração são incapazes de provar suas alegações, isto é, suas evidências são insuficientes. Em contrapartida, não podem ser facilmente invalidadas ou refutadas. Assim, tornam-se uma questão de fé. Os adeptos de teorias da conspiração costumam viver dentro de um mundo próprio. Suas teorias se tornam reais para eles, mesmo que sejam questionáveis, erradas e nocivas.

Alguns também acreditam que essas teorias devam ser compartilhadas e enfaticamente defendidas. Em geral, tais pessoas não podem mais ser alcançadas com argumentos racionais. Em vez disso, cada argumento contrário a determinada teoria da conspiração costuma ser incorporado à mesma a fim de fortalecê-la e confirmá-la.

Scott A. Reid afirma na Enciclopédia Britânica on-line: “As teorias da conspiração aumentam durante períodos em que predominam ansiedade generalizada, incertezas e dificuldades, como guerras, depressões econômicas e após desastres naturais como tsunamis, terremotos e pandemias. […] Isso sugere que o pensamento conspiratório seja impulsionado pelo forte desejo humano de encontrar sentido em forças sociais que possuem relevância própria, são importantes e ameaçadoras. […] O conteúdo das teorias da conspiração tem forte carga emocional e sua suposta descoberta pode ser gratificante” (bit.ly/3gLGuTA). “Teorias da conspiração limitadas no passado a públicos específicos assumiram lugar-comum na mídia massificada, emergindo como fenômeno cultural do fim do século 20 e início do 21”, registra a Wikipédia.

Entre os exemplos de teorias da conspiração estão os seguintes: (1) o governo dos Estados Unidos supostamente tenha criado o vírus da Aids para “matar homossexuais e negros norte-americanos” (bit.ly/3gLGuTA); (2) existem “alegações de que a morte de Elvis Presley foi forjada e de que Adolf Hitler sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e fugiu para o continente americano, a Antártida ou a Lua”; (3) “o aeroporto internacional de Denver fica em cima de uma cidade subterrânea que serve de sede da nova ordem mundial”; (4) “partes significativas do Novo Testamento são falsas ou foram omitidas” (bit.ly/3iNe1yE); (5) a Associação Geral está infiltrada por jesuítas; (6) Bill Gates seria “o criador da Covid-19”, “pois lucrará com a vacina conta o vírus” e faz parte de uma trama para “vigiar a população global” (nyti.ms/322CE4p).

Quais são alguns dos problemas das teorias da conspiração?

Em primeiro lugar, elas podem ser verdadeiras ou falsas. Por definição, não sabemos. Se não temos como saber que possam ser fundamentadas por evidências claras além de qualquer possibilidade de dúvida, é irresponsável e moralmente errado disseminá-las.

Em segundo lugar, elas podem causar danos graves àqueles que são atacados, sobretudo se os alvos forem pessoas inocentes.

Em terceiro lugar, as teorias da conspiração podem destruir a confiança, que é o principal componente da sociedade. Por exemplo, não há como saber se jesuítas se infiltraram na igreja. Mas, se pensarmos neles constantemente, passaremos a suspeitar de todos os obreiros. E, se o fizermos, outros também assumirão a mesma postura e a organização se tornará inoperável. Mas não devemos nos esquecer de que Deus prometeu cuidar de Sua igreja.

Em quarto lugar, as teorias da conspiração criam uma realidade alternativa. Quanto mais ouvimos e falamos sobre elas, mais elas assumem vida própria e mais tendenciosos nos tornamos, convencidos de sua verdade, mesmo que estejam erradas. Essas teorias não permitem que analisemos todas as evidências com imparcialidade.

Por fim, os evangelhos não retratam Jesus buscando e compartilhando teorias da conspiração. Por exemplo, quando Ele confrontou o estilo de vida e a teologia dos fariseus, não foi uma teoria da conspiração. Suas acusações eram verificáveis. Ele falou profeticamente porque conhecia os acontecimentos futuros. As profecias bíblicas não são obra de adivinhação, que podem ser verdadeiras ou falsas, mas, sim, a revelação divina da realidade.

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Várias teorias da conspiração surgiram no contexto da Covid-19 e circularam até nos meios adventistas. Assim, a pandemia levantou mais uma vez a questão da verdade versus mentira. Mas a questão é mais profunda que ocasionais teorias da conspiração; trata-se de um ataque básico e sistemático à verdade.

VERDADE E MENTIRA

Alexander Schwalbe reconhece que há “mentiras e enganos por toda a parte”. E observa: “No processo de secularização, Deus perdeu a centralidade. […] A fragmentação da realidade e a dissolução de nossa experiência anterior de mundo parecem ser sucedidas por uma destruição da verdade. Após Deus ser esquecido, […] a verdade também pode ser esquecida” (“Die Gotteskrise und die Lust zu lügen”, Christ in der Gegenwart 68, 2016).

“Mentir é o pecado do anticristo (1Jo 2:22) e todos os mentirosos habituais perderão a salvação eterna (Ap 21:27)”, ressalta A. Flavellem (“Lie, Lying”, New Bible Dictionary [InterVarsity, 1996], p. 687). Infelizmente, os cristãos são afetados por esse problema. Queiramos ou não, a cultura exerce influência sobre nós e, até certo ponto, nos molda. Na esfera pública, as mentiras costumam ser aceitáveis e não são punidas, a menos que se trate de perjúrio. As “mentiras brancas” são consideradas toleráveis ou talvez até mesmo necessárias. Por exemplo, no mundo mediterrâneo, o engano “é uma estratégia para estabelecer e proteger a honra, bem como para lançar vergonha sobre os inimigos” (John J. Pilch e Bruce J. Malina [eds.], Handbook of Biblical Social Values3ª ed. [Cascade, 2016], p. 38).

Mesmo que professemos aceitar os Dez Mandamentos, consideramos alguns mais importantes que outros. Mentira, fake news e teorias da conspiração são consideradas transgressões triviais, ao passo que o assassinato é visto como um crime grave. Em geral, as consequências do adultério são mais dramáticas que os efeitos de uma mentira. Entretanto, é possível levar pessoas ao suicídio com uma mentira ou incitar uma perseguição depois de fazer alegações falsas. Uma ofensa contra o mandamento que fala do engano é tão grave quanto a desobediência a qualquer outro mandamento.

G. H. Clark argumenta: “É preciso ter em mente que as verdades morais e espirituais são tão verdadeiras quanto as verdades matemáticas, científicas e históricas. Todas são igualmente ‘intelectuais’: uma verdade não intelectual é impensável. Não é verdade que o conceito comum de verdade como fato ou o que é real ‘não tem mais relevância moral ou espiritual’. É só nos lembrarmos de que foi Deus quem nos deixou os Dez Mandamentos” (“Truth”, Evangelical Dictionary of Theology [Baker, 1984], p. 1114).

Não podemos reivindicar a verdade e proclamar a verdade se nós mesmos não buscamos ser verdadeiros

A MENTIRA NO LIVRO DE APOCALIPSE

No livro de Apocalipse, há nove textos sobre o tema da mentira. Há falsos profetas mentirosos (pseudes, Ap 2:2). Alguns indivíduos afirmam ser judeus, mas não são. Estão mentindo (pseudomai, Ap 3:9). O falso profeta (pseudoprophetes, Ap 16:13; 19:20; 20:10) espalha mentiras e falsidades. Três textos descrevem as consequências terríveis para os mentirosos (Ap 21:8; Ap 21:27; Ap 22:15). Felizmente, existe um grupo dos seguidores verdadeiros de Jesus, os 144 mil: “Não se achou mentira [pseudos] na sua boca” (Ap 14:5). Essas passagens nos fornecem as seguintes informações:

• Se existe mentira, então também deve haver verdade. Sem verdade, não há mentira. Enquanto a verdade hoje é questionada e as pessoas não conseguem mais diferenciar entre a verdade e a mentira, o caos se descortina bem diante de nossos olhos. Em termos conceituais, a mentira e o engano estão intimamente ligados. Jezabel, alegando ser profetisa, seduz (planao) os servos de Deus (Ap 2:20). Satanás engana (planao) o mundo inteiro (Ap 12:9), isto é, todos os povos e todas as nações que o seguem (planao, Ap 20:3, 8, 10). A besta que emerge da terra “seduz [planao] os que habitam sobre a Terra” (Ap 13:14). Por ser um falso profeta (pseudoprophetes), desempenha sinais milagrosos, enganando (planao) aqueles que recebem a marca da besta e os que adoram sua imagem (Ap 19:20). Babilônia engana (planao) todas as nações por meio de sua feitiçaria (Ap 18:23). Logo, engano e mentiras são temas importantes em Apocalipse.

Em contrapartida, o livro usa a palavra “fiel” ou “verdadeiro” (alethinos). Deus (Ap 6:10) e Jesus (Ap 3:7, 14; 19:11) são verdadeiros; portanto, os caminhos de Deus (Ap 15:3), Seus juízos (Ap 16:7; 19:2) e Suas palavras (Ap 19:9; 21:5; 22:16) também são. Mentira é mentira e verdade é verdade. A verdade é absolutamente verdadeira, coerente e consistente. Ela não pode ser misturada a mentiras. Caso contrário, deixa de ser verdade. Verdade e mentira são opostas e mutuamente excludentes. A verdade corresponde ao caráter de Deus; a mentira reflete o caráter de Satanás. Assim, a verdade deve ser personificada nos seguidores de Jesus. Meias verdades e mentiras brancas não têm lugar entre os cristãos. Ignorar a verdade significa se prostrar diante da mentira.

• É extremamente perigoso mentir. O Apocalipse faz declarações bem francas sobre a mentira. Aborda os mentirosos e aqueles que amam e praticam a mentira. Uma vez que o reino de Deus é verdade, os mentirosos, os enganadores e aqueles que conscientemente se permitem ser enganados não têm lugar nesse reino. Mentir é tão grave que exclui o acesso à Nova Jerusalém e a Deus, conduzindo à segunda morte, que é eterna.

• Mentiras e enganos ameaçam a comunidade cristã e os cristãos individualmente. A mentira destrói completamente a fé ou altera o conteúdo da fé, de modo que deixa de representar corretamente o caráter, a vontade e o plano de Deus para a humanidade. Portanto, o mentiroso se rebela contra Deus e rompe o relacionamento com Ele. Mas a mentira também tem potencial para destruir os relacionamentos humanos.

D. W. Gill destaca algumas consequências da mentira: “Mentir é errado, em primeiro lugar, porque nos aliena de Deus, que é a própria verdade. Segundo, a mentira destrói a comunidade e os relacionamentos interpessoais […]. A confiança essencial para a construção da comunidade é minada. O terceiro problema da mentira é que ela destrói o mentiroso em si. A contradição entre o conhecimento da verdade e a participação do indivíduo na mentira é uma rendição desumanizante da plenitude e integridade pessoais. Além disso, uma mentira leva inexoravelmente a outras para acobertar a primeira. A teia da falsidade gera uma espécie de cativeiro, que é a situação oposta do conhecimento e da prática da verdade que liberta” (“Lie, Lying”, Evangelical Dictionary of Theology [Baker, 1984], p. 639).

• Há mentira não só como ato individual, mas também como sistema. Existem mentiras individuais e há também a falsidade coletiva. Isso pode ser identificado no falso profeta, controlado por poderes demoníacos, e nos falsos apóstolos. A Babilônia apocalíptica engana a humanidade para alcançar seus objetivos. Isso é feito para desencaminhar o cristianismo e os seguidores fiéis de Jesus.

• Somos responsáveis pela mentira. É claro que circunstâncias difíceis podem levar as pessoas a tentar escapar delas por meio do uso de mentiras – por exemplo, quando parece não haver uma boa alternativa e a honestidade pode ser considerada um risco à vida. Contudo, somos responsáveis pela nossa maneira de lidar com tais situações. Carl Zuckmayer (1898-1977), escritor e dramaturgo alemão, cujo pai era de origem judaica, mas se converteu ao cristianismo, teve problemas com o regime nazista. Quando tentou fugir para a Suíça, foi interrogado por um oficial nazista na fronteira. Em vez de mentir em relação a seus problemas, admitiu que não era membro do partido, que suas obras haviam sido proibidas na Alemanha e que não concordava com a visão de mundo do Nacional-Socialismo. No entanto, em vez de prendê-lo, o oficial ficou tão pasmo com a honestidade de Zuckmayer que o ajudou a atravessar a fronteira até a Suíça e chegar ali em segurança (“Ehrlichkeit”, em Lesebuch fur den Religionsunterricht für 14-16 Jahrige [Calwer Verlag Stuttgart, 1969], p. 167-170). Porém, não renunciamos à mentira apenas por esperar que as coisas deem certo. Isso nem sempre acontece. Nós a rejeitamos porque é certo falar a verdade e errado mentir, a despeito das circunstâncias.

• Somos responsáveis não só quando mentimos, mas também quando aceitamos a mentira. Apocalipse 22:15 fala sobre o amor à mentira. De maneira semelhante, Paulo declarou: “É por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fim de serem julgados todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2Ts 2:11, 12). É claro que a pessoa pode apreciar o escândalo. Mas isso é tão repreensível quanto mentir. Os seguidores de Jesus são comprometidos com a verdade.

• Felizmente, existem pessoas que se distanciaram completamente da mentira. O contexto deixa claro que elas adoram a Deus e guardam Seus mandamentos. Estão claramente do lado de Deus, confiando em Seu poder e amor para tomar as decisões certas em meio às situações mais difíceis. Comprometeram-se com a verdade e a proclamam (Ap 14:6 a 12). Portanto, automaticamente expõem o engano.

DESDOBRAMENTOS

O compromisso com a verdade e a oposição à mentira, à falsidade e ao engano levam aos seguintes desdobramentos:

1. Rejeitamos o plágio em todas as suas formas. Mesmo que seja comum em círculos eruditos ou nem tão eruditos assim, não reivindicamos o trabalho de outras pessoas como se fosse nosso. Não trapaceamos.

2. Não condescendemos com teorias da conspiração e não as proclamamos publicamente. Elas não podem ser comprovadas. A necessidade de se retratar ou a comprovação de que estavam erradas podem causar prejuízos à causa de Deus. Também precisamos ser tão objetivos quanto possível e avaliar a questão com base em perspectivas diferentes. As mensagens claras devem ser proclamadas em relação aos pontos em que as Escrituras são inequívocas.

3. Evitamos usar dois pesos e duas medidas. É problemático tentar promover o que é bom de maneira antiética porque achamos que o bom deve ser propagado a qualquer custo. Em nome da verdade, a moralidade muitas vezes é facilmente abandonada. Os fins não justificam os meios.

4. Nós nos comprometemos de forma clara e individual com Jesus. Não O negamos com nossa conduta, complacência ou covardia. Pagamos os impostos ao governo. Apoiamos a justiça. Mas, acima de tudo, somos leais a Deus e à verdade.

5. O cristianismo é especialmente afetado por mentiras e teorias da conspiração promovidas em mídias sociais e outros ambientes. As fake news não são engraçadas, nem uma forma de entretenimento, mas, sim, absolutamente destrutivas. Afinal, se tudo é questionado e a verdade não consegue mais ser identificada, como as bases do cristianismo podem ser exaltadas? A mentira não só desintegra nossa cultura e coexistência, como também destrói o cristianismo e a vida de cada pessoa.

Para concluir, sim, existem mentiras e falsidades, conforme o Apocalipse admite. Há até mesmo o perigo de adquirir o hábito de mentir, de aprender a amar tanto a mentira quanto a falsidade e de ser excluído da cidade de Deus. Mas existem também cristãos verdadeiros, que se distanciaram da mentira. Estão comprometidos com a verdade em todas as suas formas, sobretudo com a Verdade personificada, Jesus. Não podemos reivindicar a verdade e proclamar a verdade se nós mesmos não buscamos ser verdadeiros.

No fim, o que é verdadeiro ainda conta. J. Hamel parece estar correto ao dizer: “A questão não é se opor a pontos de vista possivelmente errados. É muito mais: por meio de nós, Deus quer trazer à tona Sua verdade e libertar as pessoas do poder da mentira” (“Von Wahrheit und Lüge”, em Christliche Ethik [Vandenhoeck and Ruprecht, 1966], p. 57). A verdade liberta.

Este artigo foi extraído e adaptado da newsletter do Instituto de Pesquisa Biblica, Reflections (abril-junho de 2020), e traduzido por Cecília Eller.

EKKEHARDT MUELLER é diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica na sede mundial da Igreja Adventista, em Silver Spring (EUA)

(Matéria de capa da edição de agosto de 2020 da Revista Adventista)

Última atualização em 12 de agosto de 2020 por Márcio Tonetti.