Desafios da educação na era digital

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Como a família, a igreja e a escola podem proteger as novas gerações na internet e fora dela

Janete Tonete Suárez

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Agosto marca o retorno às aulas e, consequentemente, a preocupação de pais, professores e estudantes que mantêm na memória um primeiro semestre marcado por ataques que levaram muitas escolas a reforçar sua segurança. Em junho, um atirador identificado como ex-aluno fez duas vítimas em uma escola de Cambé, no norte do Paraná. No mês de abril, o alvo foi uma creche de Blumenau (SC), onde quatro crianças morreram vítimas de um crime por arma branca. Menos de um mês antes, um adolescente de 13 anos havia tirado a vida de uma professora em uma escola estadual em São Paulo.

Em duas décadas, desde o primeiro ataque a escolas no Brasil, o país registra uma sucessão de casos que deixaram dezenas de vítimas fatais. A lista inclui o massacre de Janaúba (MG), com 13 mortes, seguido do massacre de Realengo, no Rio de Janeiro (12 mortes) e de Suzano, em São Paulo, no qual dois atiradores mataram 8 estudantes.

Apesar da parcialidade de estudos e pesquisas sobre os motivos e perfis dos agressores, entre as sugestões plausíveis para enfrentar a gravidade da situação está a necessidade de corresponsabilizar plataformas digitais. Também tem sido enfatizada a urgência do investimento em equipes policiais treinadas para monitorar redes sociais, analisar riscos, fazer triagens e atuar de maneira preventiva.

Outro fato importante a ser considerado é a média de idade dos agressores (16 anos), na sua totalidade do sexo masculino. Chama atenção ainda o fato de que vários deles deixaram a escola antes de se formarem, como é o caso do autor do ataque em Cambé (PR). O agressor de 21 anos havia abandonado os estudos em 2022 sem concluir o ensino médio. Casos assim revelam que aqueles que deveriam estar envolvidos no ambiente escolar, capacitando-se para fazer algo bom, estavam fora da escola planejando o mal.

DIVERSAS CAUSAS

Proteger crianças e adolescentes de manifestações de violência por preconceito, exclusão e intolerância é uma urgência e um direito fundamental. Porém, atribuir comportamentos de violência exclusivamente a jogos eletrônicos, séries, filmes e à imposição de uma cultura de erotização evidente nos entretenimentos e nas propagandas é minimizar o problema. Isso porque existe um impacto ainda maior resultante de fenômenos multicausais, determinantes e complexos para a família, a escola e uma sociedade de extrema desigualdade econômica e social.

Houve um tempo, é verdade, em que justificativas para comportamentos violentos eram atribuídas sobretudo a jogos eletrônicos e filmes. No entanto, de uns anos para cá, os estudiosos têm considerado uma pluralidade de fatores. Já no começo dos anos 2000, pesquisadores da Universidade do Nordeste, nos Estados Unidos, concluíram que alguns comportamentos violentos podem ser explicados à luz da chamada Teoria da Tensão Cumulativa, combinação de várias teorias criminológicas (para saber mais, acesse aqui). De acordo com eles, frustrações de longo prazo (denominadas tensões crônicas), vivenciadas no início da vida ou na adolescência, levam ao isolamento social e, simultaneamente, à falta de sistemas de apoio pró-sociais. O processo permite que um evento negativo, de curto prazo (tensão aguda), real ou imaginário, seja devastador. Sendo assim, desencadeia uma fase de planejamento, que é quando um evento em massa é fantasiado como uma solução para recuperar sentimentos perdidos de controle e ações. Nesse caso, medidas são tomadas a fim de garantir que as fantasias se tornem realidade. Explicação um pouco mais complexa para esse tipo de violência, não é mesmo?

Dentro dessa diversidade de fatores, não podemos desconsiderar, evidentemente, que estamos diante de um fenômeno social marcado pelo uso indiscriminado de smartphones, computadores e tablets, inclusive por crianças e adolescentes, os quais, dependendo da idade, não têm condição alguma de avaliar o teor dos conteúdos. O estudo realizado desde 2012 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco) e outros órgãos, revelou que 86% das crianças e dos adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos são usuários assíduos da internet. Desse total, 20% relatam buscar informações sobre alimentação ou sono; 16% pesquisam formas de machucar a si mesmo (automutilação); 14% entram em contato com fontes que informam sobre modos de cometer suicídio; 11% buscam relatos sobre experiências com o uso de drogas; 26% já sofreram cyberbullying; 16% acessaram imagens ou vídeos com conteúdo sexual; e outros 25% assumiram não conseguir controlar o tempo de uso da internet (para saber mais, clique aqui).


COMBATER E PROIBIR POR SI SÓ O QUE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ACESSAM E CONSOMEM TANTO EM CASA QUANTO NA ESCOLA É DAR MARGEM A MAIORES CONFLITOS, DESGASTE E INCOMPREENSÃO

Ou seja, nossas crianças e nossos adolescentes estão deixando de viver, brincar, ler e interagir com irmãos e amigos enquanto se trancam em seu quarto para se relacionar com quem não os conhece nem se importam com eles. Sendo assim, nossos meninos e meninas vão adoecendo, adquirindo vícios e se distanciando, correndo o risco de não viver uma vida em abundância conforme o plano de Deus.

TRANSTORNO MODERNO

Para se ter ideia da dimensão que o uso desenfreado de tecnologia tomou na atualidade, a nova Classificação Estatística de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) incluiu recentemente na sessão de transtornos o uso abusivo de jogos eletrônicos. O alerta da presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Luciana Rodrigues Silva, aponta para a necessidade de informar a comunidade sobre a urgência de restringir e supervisionar o acesso especialmente às plataformas de jogos eletrônicos. Esse é um passo importante para evitar o uso prolongado e, consequentemente, a dependência.

Somado ao transtorno dos jogos eletrônicos, os especialistas têm chamado atenção para uma lista de problemas relacionados à saúde na era digital. Conforme explica o “Manual de Orientação #Menos Telas #Mais Saúde” (link.cpb.com.br/d94c72)”, produzido pela SBP, casos de transtornos de fala e de sono, problemas comportamentais e autolesivos, atitudes suicidas, irritabilidade, ansiedade e depressão, miopia, transtornos posturais, entre outros problemas, têm sido frequentemente associados à dependência digital. Muita coisa, não é mesmo? A situação exige medidas a curto e médio prazos, que vão da alfabetização midiática ao monitoramento do uso de mídias sociais na infância e na adolescência.

A família e a educação cristã, por preceito e em cumprimento às legislações educacionais, devem ir além de priorizar os direitos expressos, por exemplo, no Artigo 3º do Estatuto da Criança e Adolescente, que diz: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes a? pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.” “Ir além” significa inculcar noções de responsabilidade e limites nos filhos e estudantes considerando cada faixa etária. Essa responsabilidade é dos pais, e não estamos sozinhos. Temos à disposição várias fontes de informação que podem nos ajudar a colocar em prática boas orientações voltadas para a família.

Por exemplo, a Sociedade Brasileira de Pediatria reeditou um manual com orientações a pais e responsáveis sobre a utilização correta de tecnologias, afirmando que os limites de tempo de tela sugeridos pela publicação seguem as orientações da Organização Mundial da Saúde. Para a SBP, crianças menores de 2 anos devem evitar totalmente a exposição às telas. No caso das crianças de 2 a 5 anos, o tempo de exposição não deve passar de uma hora. Crianças de 6 a 10 anos deveriam ficar restritas a não mais do que duas horas por dia, sempre sob supervisão. Já as crianças/adolescentes de 11 a 18 anos deveriam limitar o tempo gasto em frente das telas e com jogos em no máximo duas a três horas por dia. Há pais que não oferecem qualquer tipo de dispositivo aos filhos antes de uma determinada idade (12, 15 ou até 18 anos). Nesse caso, fontes de informações como a lista da SBP não ajudam muito. Seja como for, o mais importante é que os pais estabeleçam regras e estejam atentos a tudo o que for possível para melhor educar e orientar seus filhos.

AÇÕES CONJUNTAS

Recursos tecnológicos e virtuais se confundem à vida contemporânea e serão cada vez mais atualizados e sofisticados. Esse é um caminho sem volta. Diante dessa realidade, combater e proibir por si só o que crianças e adolescentes acessam e consomem tanto em casa quanto na escola é dar margem a maiores conflitos, desgaste e incompreensão. Nesse contexto, somadas às iniciativas e à mobilização de autoridades públicas e profissionais da educação, estratégias simples devem fazer parte da busca de melhores caminhos e respostas por parte dos pais, da escola e da igreja.

SE A CRIANÇA NÃO FOR ORIENTADA E INSTRUÍDA CORRETAMENTE, SATANÁS A EDUCARÁ POR MEIO DE FATORES DE SUA ESCOLHA

Fortalecer o papel da família. Conscientizar-se do papel dos pais em relação ao uso ou não de celulares pelos filhos, tempo de exposição às telas, tipo de conteúdo acessado e idade a partir da qual eles têm contato com esses dispositivos pode parecer insignificante. No entanto, precisamos entender que, se a criança não for orientada e instruída corretamente, Satanás a educará por meio de fatores de sua escolha, conforme adverte Ellen White no livro Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes (p. 107). Sendo assim, os pais “devem ser firmes e bondosos em sua disciplina e trabalhar o mais diligentemente possível a fim de terem uma família bem ordenada” (Manuscrito 14, 1905, p. 17). Eles precisam inculcar nos filhos diligência, compromisso e normas/regras estabelecidas no lar. Quando dialogam em família sobre os malefícios do uso irresponsável de tecnologias, devem levar os filhos a entender que, além de prezar pela segurança deles e estabelecer limites para preservá-los do contato com conteúdos inadequados, estão preocupados em ensinar-lhes que o tempo dedicado ao relacionamento com Deus é mais importante do que tudo. Ademais, a família deve estar sempre atenta à saúde emocional dos filhos. Ao identificar sinais de comportamentos depressivos ou ansiógenos, é preciso buscar ajuda médica e psicológica.

Fortalecer o papel da escola. Diante de manifestações e ataques violentos às escolas, suscitando um clima de medo e insegurança, o que exige por vezes a presença de psicólogos educacionais para a prevenção e enfrentamento à violência (clique aqui), gestores, professores e demais funcionários devem construir um discurso afinado ao da família e da igreja. Somado à autoridade dos docentes, que passam geralmente metade do dia com as crianças e adolescentes, a escola exerce papel significativo, capaz de levar o estudante a refletir sobre o que ele vê, pensa e faz. Ela é fonte de autoestima, promotora de consciência do mundo, um ambiente propício para fazer amizades e receber apoio emocional. Sem contar que, em alguns casos, a escola também possibilita a fuga de ambientes domésticos disfuncionais. Sendo assim, os professores podem levar os estudantes a entender claramente a verdade por si mesmos. “Não basta ao professor explicar, ou ao aluno crer; cumpre despertar o espírito de conhecimento, e o aluno ser atraído a declarar a verdade em sua própria linguagem, tornando assim evidente que lhe vê a força e faz a aplicação” (Ellen G. White, Conselhos Sobre Educação, p. 140).

Fortalecer o papel da igreja. A igreja oferece uma vasta gama de oportunidades de envolvimento nas mais diferentes programações, possibilidades e estratégias de ação que podem contribuir com efetividade para o combate ao uso inadequado e excessivo de dispositivos tecnológicos. Ao mesmo tempo, a igreja oferece condições e modelos de como fazer uso correto e eficaz dos mesmos dispositivos. Há jovens e adultos fazendo uso excepcional de recursos tecnológicos ao ministrar um estudo bíblico a distância, assistir a uma programação espiritual on-line quando não pode estar presente e, ao mesmo tempo, interagir com novos interessados que entram em contato com a igreja. Ellen White também nos lembra de que o lar é a primeira escola e a primeira igreja da criança, “sendo os pais os instrutores nos assuntos seculares e religiosos” (Educação [CPB, 2021], p. 28).

Não podemos nos esquecer de que os filhos e estudantes também têm responsabilidades quanto a melhor maneira de lidar com os desafios atuais da educação. Fortalecer seu papel significa estabelecer comportamentos responsáveis em todas as áreas da vida, considerando cada faixa etária. Isso passa pelo uso correto do tempo, pela escolha sábia dos temas que acessam, pelo não compartilhamento de conteúdos violentos em redes sociais e aplicativos e, claro, pelo afastamento da exposição à violência na televisão, nos filmes e videogames. Isso deve incluir a disposição e o interesse pela Bíblia como Palavra de Deus, tendo em seus princípios o referencial de conduta para seu crescimento moral, espiritual e intelectual. Além disso, os filhos e estudantes precisam expandir o pensamento reflexivo e o senso crítico, a fim de não ser meros refletores dos pensamentos alheios.

SAIBA +

NO TOPO DO RANKING

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Em um estudo sobre o comportamento digital de pais, pré-adolescentes e adolescentes, realizado no ano passado pela McAfee Corp, líder global em proteção on-line, o Brasil foi o país que apresentou maior taxa no quesito uso de celular (96%). O levantamento também mostrou que esse contato tem começado cada vez mais cedo. Para se ter ideia, 95% dos pré-adolescentes e adolescentes afirmaram que usam um smartphone – 19% acima da média global nessa faixa etária. Apesar de os pais brasileiros estarem entre os mais preocupados com esse assunto, nossas crianças superam as de outros países também no consumo de vídeos na internet. Para ver o estudo completo, clique aqui.

DIRETRIZES PRÁTICAS

Quanto às orientações que podem ser transmitidas aos filhos, relativas ao cuidado no uso dos recursos tecnológicos, existe muito material disponível nos livros e na internet. Mas cada família também pode estipular suas diretrizes. Seguem algumas sugestões:

  • Restrinja o uso de recursos tecnológicos a locais comuns da casa e não permita que a utilização ocorra em quartos trancados.
  • Durante as refeições, que todos estejam presentes sem seus dispositivos eletrônicos. À noite, que esses aparelhos sejam desligados pelo menos uma hora antes de dormir.
  • Dialogue sobre o risco de perda de tempo nos meios virtuais em um período da vida quando há responsabilidades em relação aos estudos e participação nas atividades domésticas, sem contar a necessidade de investir tempo também na construção de boas amizades.
  • Prefira atividades ao ar livre que envolvam a família, programando-se intencionalmente para isso.
  • Convoque uma reunião familiar com o objetivo de estabelecer regras de uso e segurança, independentemente da idade de seus filhos. Se necessário, instale aplicativos de controle de tempo e prefira sempre o diálogo diante de qualquer regra não cumprida.
  • Acompanhe a rotina dos filhos, procurando saber onde estão, com quem conversam e o que estão fazendo tanto no mundo virtual quanto no real.
  • Não libere o uso de celular por mais tempo durante o fim de semana. Esse deve ser um período de interação em família.
  • Priorize sempre as atividades lúdicas, como desenhar, ler e brincar com jogos de tabuleiros para preencher o tempo de seus filhos e aproximá-los de você.
  • Chame os amigos dos seus filhos para fazer algo em sua casa. Assim, a diversão é garantida sem a necessidade de telas para entreter.
  • Fique atento ao que a criança ou o adolescente está acessando na internet. Coloque-se à disposição de seus filhos para ajudá-los no caso de alguma dúvida.
  • Diante da permissão para o uso da tecnologia, oriente sobre a importância da privacidade, haja vista que aquilo que é compartilhado afeta diretamente a reputação da pessoa.
  • Dialogue sobre os perigos que eles podem encontrar no mundo virtual, como vídeos sobre violência, pessoas solicitando fotos e download de arquivos contendo vírus. Oriente-os sempre a conversar com você caso vejam algo de errado na internet.
  • Preencha a semana de seus filhos com atividades extracurriculares, pois toda vez que eles estiverem ociosos, vão querer se entreter com alguma tela.
  • Converse com a equipe da escola sobre medidas que podem ser tomadas na unidade de educação a fim de alertar os alunos sobre os riscos de usar aparelhos eletrônicos e navegar na internet sem nenhum tipo de limite.
  • Dê o exemplo, pois de nada adianta cobrar da criança ou do adolescente se você não tiver o mesmo cuidado e controle diante das telas.

JANETE TONETE SUÁREZ é doutora em Psicologia e professora da Universidade de Brasília (UnB)

(Matéria de capa da Revista Adventista de agosto/2023)

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Última atualização em 1 de setembro de 2023 por Márcio Tonetti.