A Trindade

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Por que não adoramos três deuses?

John Reeve

Ilustração: Jairo Ostemberg

A ideia de Deus como uma Trindade sempre foi central e ao mesmo tempo problemática para o cristianismo. No entanto, “três pessoas que são um único Deus” resume de forma efetiva a revelação bíblica sobre a natureza divina. Externamente, esse conceito fez com que as outras duas religiões monoteístas, o judaísmo e o islamismo, acusassem o cristianismo de ser politeísta. Internamente, desde que a igreja primitiva escolheu essa fórmula para expressar melhor o que a Bíblia revela sobre Deus, parece não haver nenhuma outra doutrina tão essencial para a conceitualização de quem Ele é dentro do cristianismo. Ao mesmo tempo, a doutrina da Trindade tem sido constantemente atacada por vários grupos minoritários, que a consideram uma deturpação ilógica da Divindade.

OS ADVENTISTAS E O TRINITARIANISMO

No início do século 19, nos Estados Unidos, a Conexão Cristã, uma denominação religiosa pequena que tinha José Bates e Tiago White entre seus pastores, fazia parte dos grupos minoritários antitrinitarianos. Como líderes do pequeno rebanho em crescimento, que mais tarde se tornaria a Igreja Adventista do Sétimo Dia, Bates e White contribuíram para a formação de um pensamento antitrinitariano nos primeiros anos do movimento. Contudo, com o passar do tempo, a aversão inicial à teologia trinitária foi substituída pelo reconhecimento de que, mesmo a Bíblia não mencionando o termo “Trindade”, a descrição divina apresentada nas Escrituras corrobora esse conceito. Durante a década de 1890, quando a compreensão de quem é Cristo foi aprofundada e o livro O Desejado de Todas as Nações foi escrito, a maioria dos adventistas do sétimo dia passou a entender o pensamento trinitariano, vendo Deus como Pai, Filho e Espírito Santo.

Um processo inicial saudável fez com que, a princípio, muitos líderes adventistas rejeitassem a doutrina tradicional da Trindade. Eles achavam que essa doutrina era baseada na tradição, em vez de ser fundamentada na Bíblia. Mais do que isso, alguns confundiam a fórmula trinitariana de três Pessoas que são um só Deus com o conceito modalista de Deus como uma Pessoa que Se manifesta em três formas. José Bates, por exemplo, escreveu que ele jamais conseguiria aceitar a ideia de que Deus e Jesus Cristo fossem uma só Pessoa (Autobiography of Joseph Bates [Steam Press, 1868], p. 205). Essa rejeição inicial estabeleceu uma hermenêutica saudável de não aceitar a tradição cristã como autoridade, mas, em vez disso, aceitar somente doutrinas compreendidas por meio do texto bíblico. Assim, quando a Igreja Adventista do Sétimo Dia aceitou a compreensão trinitariana de Deus, foi por acreditar que aquela era a melhor representação da Divindade apresentada nas Escrituras.

Enxergar Deus como um Trio celestial composto por três Pessoas iguais que formam a Divindade tem consequências de longo alcance sobre a maneira pela qual a pessoa se relaciona com Ele e como ela compreende as doutrinas relacionadas a Cristo, ao Espírito Santo e à salvação.

REVELAÇÃO E LÓGICA

O conceito de três serem um desafia a lógica matemática e aristotélica. Então, por que a igreja primitiva conceituou Deus como “Três em Um”?

Primeiramente, e de modo simplista, seria porque os autores do Novo Testamento mostravam Jesus claramente como Deus, no mesmo patamar que o Pai. Quase toda saudação ou louvor inclui o Pai e Jesus Cristo (Rm 1:7; 1Co 1:1-3; 2Co 1:2; Ef 1:3-6; Fp 2:5-11; Tg 1:1; 1Pe 1:2; 2Jo 3; Jd 25; Ap 1:9). Uma exploração mais profunda dos ensinamentos bíblicos mostra tanto a “unidade” quanto a “trindade” de Deus.

A unidade está clara em textos como Deuteronômio 6:4, a shemá, usada como declaração de fé do judaísmo: “Escute, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.” A Trindade, por sua vez, pode ser encontrada em passagens como o batismo de Jesus (Mt 3:16, 17), na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo são descritos individualmente como simultaneamente ativos. Ela também fica evidente na Grande Comissão (Mt 28:19), quando Jesus ordena Seus discípulos a fazer discípulos e batizá-los “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,” o que se tornou a bênção padronizada da religião cristã. Portanto, duas grandes orações na Bíblia, a shemá e a bênção, descrevem Deus como “um” e como “três”.

Apesar da lógica humana, a Bíblia insiste que “Deus é um só” e que “Deus é triúno”. Então, devemos dar prioridade à lógica humana ou à revelação bíblica?

SOLUÇÃO OU PARADOXO?

De maneira clara, a revelação deve prevalecer sobre a lógica. Qualquer outra resposta criaria uma teologia construída de baixo para cima, uma compreensão humana baseada na percepção e na analogia. Por outro lado, colocar a revelação divina antes da lógica permite uma teologia revelada de cima, de uma autorrevelação do próprio Deus, que é infinitamente maior e mais sábio do que a mente humana é capaz de compreender. É verdade que essa revelação vem por meio de agentes humanos e da linguagem humana que consiste em ver “como num espelho, de forma obscura” através de um “conhecimento incompleto” (1Co 13:12). Ainda assim, é melhor ver o verdadeiro Deus, que está muito acima da concepção humana, de modo parcial do que reivindicar uma visão completa de uma Divindade humanamente construída.

A fórmula trinitariana é resumida de modo simples: “Deus é triúno” e “Deus é um só.” Ser triúno é o mesmo que ser uma trindade. Os conceitos são diretos e bíblicos, mostrando que o termo simplesmente expressa a autorrevelação divina nas Escrituras.

A igreja primitiva não resolveu o paradoxo revelado de que “Deus é um só, mas também é triúno.” Ela apenas deu um nome a isso. Então, a Trindade não é uma solução. É a designação de uma palavra única que conserva o paradoxo intacto: Três em um, nosso Deus triúno.

DIVINDADE DO ESPÍRITO SANTO

Alguns afirmam que o Espírito Santo não faz parte da Divindade, mas que constitui um poder impessoal vindo de Deus. Essa declaração assume várias formas e ângulos; mas, em essência, afirma que a Bíblia não apresenta uma visão do Espírito Santo como Alguém que tem “personalidade”.

O assunto é tratado diretamente na Bíblia, que expõe fortes evidências de que o Espírito Santo é uma Pessoa divina. Na conclusão de sua carta aos Coríntios, Paulo proclamou uma bênção trinitariana clássica: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vocês” (2Co 13:13). Nela, o apóstolo reconheceu que o Espírito Santo é identificado principalmente pela comunhão, que é o centro das relações interpessoais. Outros versos descrevem o ministério pessoal que o Espírito Santo exerce numa relação direta com os fiéis individualmente. O que inclui convencer (Jo 16:8-11), regenerar (Jo 3:5-8), guiar (Jo 16:13), santificar (Rm 8:1-17), dar poder (At 1:8), revelar (Lc 2:26) e mover os profetas inspirados a falarem e escreverem as Escrituras (2Tm 3:16; 2Pe 1:21).

Todos esses versos denotam uma função relacional e ativa. Mesmo quando o Espírito Santo é retratado como Alguém que não afirma Sua própria vontade, como no texto “Ele não falará por Si mesmo”, há um componente ativo relacional na descrição da Sua interação com o fiel, evidente em ações como “Ele os guiará” e “dirá tudo o que ouvir e anunciará” (Jo 16:13). Os textos de 2 Timóteo 3:16 e 2 Pedro 1:21, em conjunto com outros diversos versículos que falam sobre estar cheio do Espírito Santo, indicam que Ele é responsável pela produção das Escrituras e de profecias, que têm conteúdo proposicional. Essas tarefas, assim como todas as outras citadas acima, envolvem mais do que um poder impessoal, pois requerem uma comunicação intencional do conteúdo. Todas essas interações pessoais com os fiéis destacam o que Paulo apontou no fim da carta aos Coríntios: o Espírito Santo tem uma relação/comunhão muito pessoal conosco.

Em João 14 a 17, Pai, Filho e Espírito Santo são retratados como tendo uma relação interdependente e interativa com o propósito de nos incluir em um relacionamento próximo e recíproco de amor e obediência. Se você vê e conhece o Espírito Santo, também vê e conhece o Pai (14:6, 9); o Filho revela o Pai (17:6, 25); e enquanto o Filho glorifica o Pai, o Pai também glorifica o Filho (17:4). O Pai envia o Filho (16:5) e o Espírito Santo (14:26); o Filho envia o Espírito Santo (15:26; 16:7); o Espírito Santo ensina, guia e testifica sobre o Filho (14:25; 15:26); e por intermédio do Espírito Santo que habita em nós, o Filho, que está no Pai, virá para nós (14:16-20).

As interações são mostradas como sendo recíprocas entre os três. Em João 17:6-10, isto se mostra ainda mais verdadeiro. Por meio das revelações que o Filho fez do Pai a nós – que são descritas como tendo sido dadas ao Filho pelo Pai – o Filho ganha confiança para nos revelar as palavras que o Pai Lhe deu e permitir que aceitemos essas palavras em obediência. Desse modo, o Filho é uma ponte entre o Pai e nós, promovendo um relacionamento de amor, confiança, fé e obediência. Essa ponte que o Filho faz está assegurada eternamente por intermédio do Espírito Santo que habita em nós (Jo 14:16-18). É verdade que o Filho e o Espírito Santo têm papéis de submissão no que diz respeito ao relacionamento que nos leva à salvação (Jo 14:31); contudo, há outros aspectos desses versos que sugerem uma relação de igualdade e unidade.

O evangelho de João apresenta várias declarações diretas sobre a união entre o Pai e o Filho: “Eu estou no Pai, e […] o Pai está em Mim” (Jo 14:10); “Todas as Minhas coisas são Tuas, e as Tuas coisas são minhas” (17:10); e até uma declaração direta, dizendo “nós somos um” (v. 22; ACF). Indiretamente, essa unidade se estende também ao Espírito Santo, como expressa João 16:14, 15: O Espírito “Me glorificará, porque vai receber do que é Meu e anunciará isso a vocês. Tudo o que o Pai tem é Meu. Por isso Eu disse que o Espírito vai receber do que é Meu e anunciar isso a vocês”.

A propriedade recíproca e o acesso aberto que os Três compartilham descrevem a unidade Deles. Do mesmo modo, João 14:16-23 retrata uma habitação unificada. Embora Jesus tivesse que nos deixar, Ele indica que viria até nós por intermédio da promessa do Consolador que habitaria em nós. A seguir, Cristo termina Seu discurso afirmando que tanto Ele quanto o Pai virão e farão morada em nós. Assim, a ação do Pai e do Filho ocorre por meio do Espírito que habita em nós. Essa é uma unidade forte que iguala a presença de Um dos Três com a presença de toda a Trindade.

Ao longo do tempo, debates intensos têm ocorrido discutindo se tal unidade é percebida como uma unidade num mesmo propósito ou em um só Ser. De qualquer forma, a unidade dos Três favorece a percepção de uma Trindade. Ela também sugere que o Espírito Santo tem personalidade, semelhante ao Pai e ao Filho. Isso implica que a Bíblia apresenta o Espírito Santo como uma Pessoa que Se relaciona com os fiéis, embora a maioria das passagens bíblicas que apresentam o Espírito Santo não inclua um corpo. Contudo, a personalidade não deriva de um corpo, mas de um relacionamento.

Como o Espírito Santo começou a ser entendido como uma força impessoal? A resposta está na história e na filosofia. O meio filosófico dos cristãos primitivos incluía uma concepção platônica e estoica de Deus dividida em três partes: O transcendente, ou Mônada, que Platão chamou de “Pai”; o demiurgo, ou Logos, que era o Criador imanente, ao qual Platão às vezes se referia como a Díade (dois), ou como o “Filho”; e o poder infusivo da vida e da energia que preenche todo o Universo e suas criaturas com a força da vida e com poder, ao qual Platão e Zenão de Cítio chamaram de Pneuma, que significa “respiração” ou “espírito”. Essa mesma concepção filosófica do espírito era frequentemente associada ao Espírito Santo durante a leitura das Escrituras, levando as interpretações tradicionais a enfatizar o papel subordinado do Espírito Santo. Isso se refletia na linguagem utilizada, sugerindo erroneamente que Ele é apenas uma força. Os textos que retratam os aspectos pessoais e relacionais do Espírito Santo foram inicialmente considerados com menos peso teológico. Contudo, nem a filosofia nem a tradição deveriam controlar a leitura da Bíblia.

IMPLICAÇÕES SOTERIOLÓGICAS

Portanto, direcionemos nossa atenção para as implicações do relacionamento redentor com nosso Deus, que Se constitui em três Pessoas divinas. O âmago dessas implicações reside na garantia de nossa salvação pelo próprio Deus, Criador e Mantenedor de todas as coisas. Jesus Cristo é Deus!

Em João 1, Jesus é descrito como o Logos (Palavra). Assim, a Palavra é descrita como Criador e Deus (v. 1-3), o todo-poderoso Governador do Universo. Em Tito 2:13, Paulo descreveu Cristo como “nosso grande Deus”, e em Romanos 9:5, como o “Deus bendito para sempre”.

A maioria dos adventistas está familiarizada com a descrição que Ellen White fez de Jesus como sendo “um em natureza, caráter e propósito” com Deus, o Pai (Patriarcas e Profetas [CPB, 2022], p. 9). O apóstolo João caracterizou a natureza e o caráter de Deus como sendo vida e luz (Jo 1:4, 5), enfatizando que a Palavra é a Fonte tanto da vida quanto da verdade eterna. Além disso, o evangelista afirmou que o “Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (v. 14), resumindo a história do Natal, na qual o grande e eterno Deus Se torna uma criança indefesa. Depois que Ele cresce e toma consciência de Sua missão como o Messias, exerce Seu ministério terrestre por três anos e meio, pregando sobre o reino de Deus e preparando Seus discípulos para Sua morte. Então, Ele morre como sacrifício, o Cordeiro pascal, o Servo Sofredor, por cujas feridas fomos sarados (Is 53). No entanto, Ele não permanece morto! Como Ele mesmo afirmou: “Ninguém tira a Minha vida […] Tenho autoridade para entregá-la e também para reavê-la” (Jo 10:18). Esta declaração de Ellen White ecoa o texto bíblico: “Em Cristo, há vida original, não emprestada, não derivada. […] A divindade de Cristo é a certeza da vida eterna para aquele que crê” (O Desejado de Todas as Nações [CPB, 2022], p. 423, 424).

Deus, o Filho, em Seu papel de Salvador (1) é Todo-Poderoso, (2) nos ama e (3) é Ele mesmo a ponte de salvação que nos conecta com Deus. Somente o verdadeiro Deus pode realizar essas três tarefas da nossa salvação. Se Ele não fosse totalmente divino, Sua capacidade de salvar diminuiria. Portanto, vê-Lo como algo menos que um Ser totalmente divino reduz a nossa capacidade de compreender e desfrutar da Sua obra de salvação. Conforme João 15:13 declara: “Ninguém tem amor maior do que este: de alguém dar a própria vida pelos Seus amigos.” 

Nota: Este artigo foi publicado originalmente em Perspective Digest, v. 25, n. 2, abril de 2020.

JOHN REEVE é professor de história eclesiástica no seminário teológico da Universidade Andrews, nos Estados Unidos

(Matéria de capa da Revista Adventista de abril/2024)

Última atualização em 5 de abril de 2024 por Márcio Tonetti.