Alcançando os invisíveis

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O ministério dos voluntários que trabalham dia e noite para resgatar a dignidade dos sem-teto nas grandes cidades
William Souza, ex-sem-teto que por dois anos morou numa “cracolândia” em Diadema (SP), hoje ajuda a ressocializar pessoas que estão à margem da sociedade. Crédito: Thiago Spalato

Eles dormem em camas feitas de jornal e se alimentam diariamente de incertezas. Apesar de fazerem parte do cenário da maioria das cidades, especialmente das grandes metrópoles, milhares vivem à margem da sociedade como seres socialmente invisíveis.

Segundo dados divulgados em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem mais de 100 mil moradores de rua. Cerca de 77% deles vivem em municípios com mais de 101 mil habitantes e 40% em cidades com população acima de 900 mil pessoas.

O perfil socioeconômico desse segmento da população é bastante heterogêneo, conforme têm mostrado alguns estudos. Uma pesquisa feita pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) no mesmo ano, com base em dados da capital paulista, identificou quatro subgrupos principais: idosos, famílias, pessoas sós em centros de acolhida e jovens na faixa de 18 a 35 anos.

Outro levantamento realizado em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome também mostrou que a maior parte dos moradores de rua no país é do sexo masculino, com idade entre 25 e 45 anos, e que metade deles permanece nessa condição ao longo de pelo menos dois anos.

Apesar de a pesquisa feita no território paulista apontar que o nível de escolaridade dessa população é baixo (entre 7,1% e 9,6% são analfabetos), alguns dos que hoje vivem em barracas, debaixo de pontes, em praças, logradouros ou locais abandonados completaram o ensino médio ou foram criados em famílias de classe média/alta. Aliás, é comum ouvir histórias de empresários que se tornaram alcoólatras ou usuários de drogas e foram viver nas ruas. Outros que não conheciam as drogas nem o álcool, acabaram viciados e até mesmo envolvidos no mundo da prostituição. De uma hora para outra se viram longe do lar e da família, sujos e sem esperança.

Solange Ferreira, ex-moradora de rua, resume a dura realidade que viveu em Diadema (SP): “Discriminação, preconceito, abandono, frio, fome, doenças, violência, medo, sujeira, abuso e drogas, muitas drogas”.

Nesse mundo hostil e subumano, muitos morrem precocemente por causa de doenças, agressões ou consumo de drogas. Outros são vítimas do próprio clima. Estima-se que todos os anos cerca de 130 moradores de rua morram no país em virtude das baixas temperaturas. Tendo em vista essa realidade, em julho deste ano a igreja passou a auxiliar a prefeitura de São Paulo na gestão do Programa Emergencial de Inverno, abrigo com capacidade para 460 pessoas localizado no Canindé, bairro da região central da cidade.

MINISTÉRIO EM EXPANSÃO

Nas últimas décadas, a população em situação de rua se tornou um desafio importante não somente para as políticas públicas, mas para a igreja. Corporativa e individualmente, a denominação tem procurado fortalecer suas ações em favor desse grupo.
Em Vitória e Serra, no Espírito Santo, o trabalho com pessoas em situação de rua é uma das frentes de atuação da ADRA. Em parceria com esses municípios, a agência humanitária oferece diversos tipos de serviço, como abrigos, casas lares (para pessoas com transtornos mentais), uma república (que funciona como espaço de transição e reinserção), um albergue para migrantes e um centro de atendimento especializado para a população em situação de rua.

Em parceria com prefeitura de cidades capixabas, a ADRA administra albergues para migrantes e um centro de atendimento especializado em moradores de rua. Crédito: Carlos Antolini (Prefeitura Municipal de Vitória)

Semelhantemente, dezenas de voluntários estão comprometidos com essa causa. É o caso de Ronaldo Anunciação, coordenador do projeto Resgate Urbano Adventista (RUA), que auxilia pessoas nessa situação em Diadema, na Grande São Paulo. “Alguém precisa fazer esse trabalho. Eu sou voluntário porque tenho um coração que sofre ao ver meu próximo passando frio e fome na sarjeta. Felizmente, não sou o único”, afirma.

Desde janeiro de 2017, mais de 30 pessoas se envolvem semanalmente na entrega de marmitas para mais de 80 sem-teto. Mesmo com a rotina agitada que o paulista tem, o grupo faz a entrega das refeições toda segunda-feira. Às vezes, os voluntários conseguem preparar mais de 100 refeições com alimentos doados por pessoas que se sensibilizam com o trabalho deles. Desde o início do ano, eles já conseguiram entregar mais de 2 mil marmitas.

O projeto RUA foi criado em 2016 por William Souza, ex-sem-teto. Como em muitos casos, ele foi parar nas ruas por causa do alcoolismo e das más influências. Meses depois já estava envolvido com tráfico de drogas e prostituição. “Nem todo sem-teto nasce nas ruas. De alguma forma, ele vai parar lá. Eu tinha família, mas achei que estava no fundo do poço e escolhi sair de casa para não ferir ninguém”, relembra.

Quando, finalmente, decidiu ­voltar para casa, ele percebeu que não conseguiria dar esse passo sozinho. “Alguns voluntários me encontraram na rua e conversaram comigo. Depois disso, abri meus olhos e aceitei ajuda”, relata. Sua experiência tem motivado outros a querer mudar de vida. Uma prova disso é que, em alguns meses de trabalho, Souza já ajudou a reintegrar à sociedade mais de dez pessoas.

Inspirado em iniciativas como essa, o administrador Michel Prado passou a apoiar moradores de rua em Santo André (SP). “Aceitei o chamado para esse trabalho, que não é fácil. Juntamente com minha família, tenho me dedicado a esse projeto, mas sinto que ainda precisamos fazer mais”, afirma o fundador do projeto Arautos da Noite.

A cada semana, além de roupas e cobertores, os voluntários entregam lanche, chá e suco para os sem-teto. “Eles me esperam com um sorriso no rosto. Entregamos os lanches e ficamos conversando. Por isso, nem vemos o tempo passar. Passamos horas ajudando essas pessoas”, ele conta.

Esse trabalho repercutiu na mídia e chegou aos ouvidos da microempresária Tamires de Andrade. Em junho, ela assistiu a uma reportagem apresentada no programa Fé em Ação, da TV Novo Tempo, e no mesmo dia ­procurou a página do projeto no Facebook para se candidatar como voluntária. “Mesmo sem fazer parte da Igreja Adventista me envolvi com os Arautos da Noite. Estou muito feliz porque sempre quis fazer parte de algo tão relevante assim”, garante.

O PREÇO DO VOLUNTARIADO

No entanto, coordenar ou participar de projetos sociais exige muita dedicação. “Esse é o maior desafio para esse tipo de iniciativa”, declara Leila Teixeira, integrante da iniciativa realizada em Santo André. Ela comenta que é uma decisão difícil deixar de lado os próprios interesses para cuidar do outro. “É preciso reconsiderar as prioridades”, observa.

Além do tempo, a médica Denise Ferreira e o esposo, o empresário Weber Siqueira, investiram recursos próprios. Há quase dois anos eles lideram o Projeto Remissão, em Goiânia (GO), que foi inspirado no projeto realizado pela comunidade adventista do Boqueirão, em Curitiba (PR).

No início, eles entregavam alimentos, levavam os moradores para tomar banho e apresentavam mensagens bíblicas. Mas o número de beneficiados aumentou e as necessidades ­também. Então, o casal decidiu investir em um caminhão pequeno e uma casa que atualmente funciona como sede do projeto. Algumas pessoas que se sensibilizaram com a iniciativa também ajudaram com doações. Assim, eles conseguiram se estruturar e já atenderam mais de 800 pessoas.

Atualmente, o grupo sai às ruas pelo menos duas vezes por mês e oferece banho, corte de cabelo e até pedicure e manicure. A médica acredita que isso também seja importante para recuperar a saúde e a autoestima dessas pessoas.

ATENDIMENTO MAIS AMPLO

No entanto, além de cuidar da aparência e suprir necessidades básicas dessas pessoas, é preciso se preocupar em lhes oferecer atenção, carinho e manter um relacionamento com elas.

Outro grande desafio para que os ministérios voltados para moradores de rua ampliem sua relevância é a necessidade de construir uma rede social que possibilite o atendimento em várias áreas. “Além de comida e abrigo, eles necessitam regularizar a parte de documentação, ter acesso à saúde e educação, receber assistência psicológica e espiritual e, em alguns casos, contar com o apoio para reatar vínculos familiares”, explica Rogéria Mesquita, gerente de projetos da ADRA no Espírito Santo. Isso demanda ir além do atendimento às necessidades imediatas, gerando oportunidades de trabalho, educação e mudança de vida.

JHENIFER COSTA é jornalista e trabalha na assessoria de Comunicação da sede administrativa da Igreja Adventista para
o estado de São Paulo

(Reportagem publicada originalmente da edição de setembro de 2017 da Revista Adventista)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.