A descoberta de manuscritos de 200 anos mostra que um jesuíta argentino já acreditava em algumas verdades bíblicas antes do movimento milerita
Aecio E. Cairus
Se atualmente mais de 21 milhões de adventistas do sétimo dia são encontrados em todas as regiões do globo, em grande medida isso é fruto do esforço evangelístico e financeiro dos pioneiros norte-americanos dessa denominação que surgiu na segunda metade do século 19.
Porém, o que os manuscritos descobertos recentemente mostram é que algumas das principais crenças proclamadas pelo movimento adventista já eram defendidas por um argentino há 200 anos. Escritos de Francisco H. Ramos Mejía (1773-1828), datados de 1818, revelam que esse sul-americano acreditava na segunda vinda de Cristo pré-milenar, no sábado bíblico e no estado inconsciente dos mortos, antes mesmo de a mensagem de Guilherme Miller conseguir milhares de adeptos nos Estados Unidos.
ANTES DOS MILERITAS
O movimento millerita, que floresceu nos Estados Unidos na década de 1840, foi precedido por um despertamento semelhante na Europa, nos anos 1820. O movimento europeu foi grandemente influenciado pelo livro The Coming of the Messiah in Glory and Majesty (A Vinda do Messias em Glória e Majestade), escrito pelo padre jesuíta Manuel Lacunza, que nasceu no Chile em 1731, mas morreu na Itália em 1801. Contrariando a maioria dos cristãos de sua época, que imaginavam a volta de Jesus para depois da conversão do mundo todo ao cristianismo e um milênio de paz, Lacunza mostrou que a Bíblia localiza a volta de Jesus antes do milênio (pré-milenalista).
Em 1825, Edward Irving traduziu o manuscrito de Lacunza para o inglês, e os entusiastas da profecia começaram a estudá-lo durante as conferências de Albury Park (1826-1831), próximo a Londres, na Inglaterra. O diálogo público sobre o assunto se espalhou para outros lugares, publicações e livros. Logo a compreensão de que a segunda vinda aconteceria antes do milênio foi aceita pelas igrejas evangélicas. No entanto, muitas igrejas tradicionais, tanto a católica como as denominações protestantes, estavam “presas” à visão resistente de suas lideranças.
Do outro lado do Atlântico, por sua vez, entre 1816 e 1818, Guilherme Miller havia chegado sozinho à conclusão de que a volta de Jesus seria pré-milenar. Assim, quando o eco do movimento europeu chegou à costa leste dos Estados Unidos, Miller estava inclinado às mesmas ideias. Embora esse pregador batista tenha sido o predecessor mais importante do adventismo do sétimo dia, ele não chegou a aceitar verdades bíblicas como o sábado e o estado inconsciente dos mortos. Essas contribuições teológicas seriam dadas por José Bates, Tiago White e George Storrs.
ENQUANTO ISSO, NA AMÉRICA DO SUL…
Contudo, na América do Sul outro homem pregou esse “pacote completo” de doutrinas hoje identificadas como adventistas do sétimo dia. Algumas décadas antes de o movimento milerita contagiar os Estados Unidos, Francisco H. Ramos Mejía, um argentino formado num seminário jesuíta, adquiriu a obra de Lacunza em 1816 ou 1817.
Mejía escreveu muitas notas nas páginas do livro, defendendo não apenas o pré-milenismo, mas também o estado inconsciente dos mortos. Em 1820, em Buenos Aires, ele foi proibido pelo governo de pregar sobre a guarda do sábado e de santificar esse dia.
Graças às informações de um jornal protestante publicado em 1913, alguns eruditos adventistas da Argentina e dos Estados Unidos desconfiavam da existência de manuscritos de Mejía. Porém, isso só foi confirmado em 2016, quando uma parte considerável desses manuscritos foi doada anonimamente. Outro manuscrito de Mejía foi destruído por descendentes dele que se sentiram ofendidos por suas ideias contrárias a vários pontos da teologia católica. Hoje esse material faz parte do acervo da biblioteca da Universidad Adventista del Plata (UAP), na Argentina. O volume recuperado tem 280 notas de Mejía, escritas num espanhol arcaico e com letras apertadas no restrito espaço das margens.
A IMPORTÂNCIA DE RAMOS MEJÍA
Não são somente os adventistas que têm interesse pela história de Ramos Mejía. Ele foi um patriota argentino, eleito membro do conselho municipal de Buenos Aires (1810-1811), que trabalhou como pecuarista, lecionou religião para os indígenas locais e foi o representante dessas comunidades tradicionais em acordos com o governo federal (infelizmente, repetidamente violados pelo próprio governo).
Sua proximidade com a população nativa encheu o governo de desconfiança. Em 1821, Ramos Mejía recebeu uma ordem para deixar o território indígena e foi confinado até sua morte na fazenda Los Tapiales, perto da atual cidade de Ramos Mejía, na região metropolitana de Buenos Aires.
Os protestantes também se interessam pelo estudo da biografia e das ideias dele, pois, apesar de ter sido educado por jesuítas, Ramos Mejía aderiu a crenças que contrariavam alguns ensinos católicos. Por exemplo, ele rejeitou a crença de que Cristo Se manifesta literalmente no pão e vinho da missa. Para ele, isso era idolatria. Mejía acreditava que a salvação é somente pela fé, e não pelo mérito humano.
Ramos Mejía também considerou uma “iniquidade milenar” a doutrina do papa como representante de Cristo e associou a função do pontífice ao poder antagônico de Apocalipse 13:3. Ele considerava de grande interesse a obra de Lacunza, fundamentou sua esperança para a vida além da sepultura somente na ressurreição e seu conceito de humanidade era muito moderno, entendendo o espírito e a vida como a mesma coisa (Jo 6:63).
Já no começo do século 19, Ramos Mejía fez um contraste entre o mandamento do sábado como algo alinhado com a vontade do Criador e a “nota dissonante” da guarda do domingo. Ele afirmou que, embora o domingo se assemelhe superficialmente ao sábado (como o sacrifício de Caim), falta a ele seu significado intrínseco. Assim, a observância do sábado como o verdadeiro dia de descanso devia ser restaurada.
É verdade que os adventistas norte-americanos restauraram várias crenças bíblicas sem a ajuda de Ramos Mejía, mas a descoberta dos escritos desse jesuíta argentino mostram que, ao longo do tempo, pessoas de diversas etnias e culturas conseguiram enxergar por si mesmas, a partir da orientação do Espírito Santo, verdades singulares das Escrituras.
A última advertência divina ao mundo deve chegar “a toda nação, tribo, língua e povo” (Ap 14:6). A recuperação desse manuscrito bicentenário pode ser um sinal da providência para nos lembrar de nossa responsabilidade de espalhar urgentemente a mensagem bíblica por todo o globo.
AECIO E. CAIRUS, PhD, aposentado, foi professor e diretor do programa de doutorado no Instituto Adventista Internacional de Estudos Avançados (AIIAS), nas Filipinas
(Publicado originalmente na edição de dezembro da Revista Adventista / Adventist World)
Última atualização em 21 de dezembro de 2018 por Márcio Tonetti.