Bendita esperança

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Os 180 anos do desapontamento que levou ao surgimento do movimento profético adventista

Alberto R. Timm

Imagem: Gospel Perspective

O ministério terrestre de Cristo estava chegando ao fim. Após indicar a proximidade de Seu sacrifício, os discípulos foram tomados por profunda tristeza, mas Jesus os consolou, dizendo: “Que o coração de vocês não fique angustiado; vocês creem em Deus, creiam também em Mim. Na casa de Meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, Eu já lhes teria dito. Pois vou preparar um lugar para vocês. E, quando Eu for e preparar um lugar, voltarei e os receberei para Mim mesmo, para que, onde Eu estou, vocês estejam também” (Jo 14:1-3).

Por ocasião da ascensão de Cristo ao Céu, dois anjos confirmaram essa promessa aos discípulos: “Homens da Galileia, por que vocês estão olhando para as alturas? Esse Jesus que foi levado do meio de vocês para o Céu virá do modo como vocês O viram subir” (At 1:11).

Essas palavras têm preenchido de esperança e significado a vida de muitos cristãos ao longo do tempo. Afinal, enquanto a coroa da justiça está reservada a todos os servos fiéis, não há feliz recompensa para os servos maus que pensam: “meu senhor tarde virá” (Mt 24:45-51, ARC). Contudo, desde a era apostólica, a expectativa pela segunda vinda de Cristo nunca havia sido tão real e ampla quanto no grande Despertamento do Segundo Advento, na primeira metade do século 19.

Tempo do fim

Ao longo dos séculos, muitos eruditos bíblicos estudaram os livros de Daniel e Apocalipse. No entanto, dois eventos importantes na segunda metade do século 18 geraram um renovado interesse por suas profecias. O primeiro deles foi o terremoto de Lisboa, ocorrido em 1º de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, uma das mais importantes festas católicas. Naquela manhã de sábado, pouco depois das 9h30, quando muitos fiéis estavam participando da missa, Lisboa foi surpreendida por três abalos sísmicos, em um espaço de 10 minutos, seguidos por um maremoto e um devastador incêndio que durou uma semana.

Segundo o historiador Otto Friedrich, diversas pessoas haviam afirmado ter recebido revelações sobrenaturais de que Lisboa, a Rainha do Mar, seria em breve punida por sua maldade. Na noite anterior à tragédia, o padre Manuel Portal, do Oratório, “havia sonhado que Lisboa estava sendo devastada por dois terremotos sucessivos” (O Fim do Mundo [Editora Record, 2000], p. 227). Assim, parece evidente que esse não foi apenas mais um terremoto na história mundial, mas um evento repleto de significado.

Deus levantou o movimento adventista para restaurar as verdades bíblicas no contexto do tempo do fim

Independentemente da origem dessas revelações, nenhum outro terremoto teve um impacto filosófico, cultural e religioso tão significativo quanto o de Lisboa. Segundo T. H. Kendrick, esse tremor de terra “abalou a civilização ocidental mais do que qualquer outro evento desde a queda de Roma no quinto século” (The Lisbon Earthquake [Lippincott, s/d], p. 185). Não é de admirar que muitas pessoas estivessem convencidas de que o solene momento do juízo divino havia chegado (cf. Ap 6:12, 13) e se perguntassem por que essa calamidade teria ocorrido naquele feriado religioso sem que os supostos “santos” tivessem protegido os devotos fiéis.

O segundo evento, ainda mais impactante sob o ponto de vista religioso, foi a prisão do papa Pio VI
pelas tropas francesas comandadas pelo general Luís Alexandre Berthier, em 15 de fevereiro de 1798.
Preocupado com a Revolução Francesa, que estava derrotando o cristianismo na França, o papa condenou o movimento e apoiou uma liga contra ele. Em resposta, os soldados franceses conquistaram Roma, depuseram o papa de sua autoridade e o levaram como prisioneiro para diferentes lugares, antes de sua morte na cidadela de Valença, em 29 de agosto de 1799.

Vários estudiosos da Bíblia interpretaram a prisão do papa como o encerramento dos 1.260 dias/anos de supremacia papal (Ap 11:3; 12:6; cf. Dn 7:25; Ap 11:2; 12:14; 13:5) e o início do “tempo do fim” escatológico (Dn 8:17; 11:35, 40; 12:4, 9; cf. 8:19). Esse evento gerou um grande interesse nas profecias bíblicas. Assim, o tempo tornou-se solene e havia uma crescente consciência disso. As pessoas começaram a raciocinar que, se Deus permitiu a prisão do papa, isso deveria ter um significado profético.

Guilherme Miller

O interesse renovado no estudo dos livros de Daniel e Apocalipse levou vários estudiosos a concluir que as 2.300 tardes e manhãs simbólicas de Daniel 8:14 terminariam na década de 1840. Alguns sugeriram o ano de 1843, outros preferiram 1844, e a maioria se fixou em 1847. No entanto, nenhuma dessas exposições proféticas atingiu a popularidade alcançada pelas ideias de Guilherme Miller (1782-1849), um pregador leigo autodidata de Low Hampton, no estado de Nova York, que se interessou pelas profecias bíblicas de maneira inesperada.

Em sua juventude, a leitura de alguns filósofos o afastou de sua fé batista tradicional, levando-o ao deísmo: a crença em um Deus que não interfere nos assuntos humanos. Contudo, suas opiniões foram abaladas quando, durante a Guerra de 1812, o pequeno exército norte-americano derrotou o poderoso exército britânico, e ele mesmo foi protegido de perigos que ameaçaram sua vida.

Gradualmente, Miller começou a se preocupar com o significado da vida e da morte, sentindo a necessidade de uma experiência de conversão. O processo atingiu seu clímax quando sua mãe, Paulina, providenciou para que ele lesse na igreja o sermão de domingo, 15 de setembro de 1816, na ausência
do pastor. Pouco depois de começar a lê-lo, Miller foi dominado por suas emoções a ponto de não conseguir terminar a leitura.

Logo após esse evento, Miller encontrou um amigo deísta que o desafiou acerca de sua nova convicção de uma Bíblia toda harmoniosa. Miller respondeu que se o amigo lhe desse tempo, ele harmonizaria o conteúdo bíblico para o benefício de ambos. Então, deixando de lado suas pressuposições anteriores, Miller começou um estudo sequencial das Escrituras. Com a ajuda da concordância de Cruden, tentou harmonizar todas as passagens “com cada passagem colateral na Bíblia”. Por meio de “uma comparação das Escrituras com a história”, ele revelou o cumprimento histórico das profecias bíblicas (William Miller, Apology and Defence [J. V. Himes, 1845], p. 5).

As decepções tendem a levar as pessoas a romper com as tradições e buscar um novo começo

Obviamente, as profecias eram as partes mais desafiadoras a ser harmonizadas, o que Miller tentou fazer da melhor maneira. Após dois anos de estudo intensivo (1816-1818), ele estava totalmente convencido de que Cristo viria “por volta de 1843”. Para ele, as 2.300 tardes e manhãs de Daniel 8:14 representavam 2.300 anos que começaram em 457 a.C., com a ordem de Artaxerxes para reconstruir os muros de Jerusalém, (Ed 7; Dn 9:25) e terminariam em 1843 d.C.

Algumas pessoas creem erroneamente que Miller apenas leu a Bíblia e, ao fazê-lo, chegou instintivamente às suas conclusões sobre o cumprimento profético. Isso, porém, não corresponde à realidade. Devemos nos lembrar de que as profecias não se cumprem dentro do texto bíblico em si, mas na história, e Miller tinha um bom conhecimento histórico. Isso é evidente pelas fontes que citou em seus escritos, bem como pelo reconhecimento de que seus cálculos proféticos “baseavam-se na cronologia recebida” que era “melhor sustentada” (Apology and Defence, p. 34).

O movimento milerita

Guilherme Miller não tinha a intenção de pregar sobre sua interpretação profética e só concordou em fazê-lo após ter uma evidência clara de que era a vontade de Deus. Então, em agosto de 1831, ele compartilhou suas ideias em Dresden, Nova York. Depois, foi convidado a pregar sobre o tema em outros lugares. Inicialmente, Miller era apenas um pregador leigo, mas a partir de 1833, recebeu uma licença para pregar concedida por vários ministros de diferentes igrejas. Em novembro de 1839, Josué Himes, pastor da igreja da rua Chardon, em Boston, convidou-o para pregar em sua congregação. A partir desse momento, Miller passou a pregar também em outras grandes cidades do nordeste dos Estados Unidos.

Dois anos depois que Miller proferiu seu primeiro sermão, a tempestade de meteoros de 13 de novembro de 1833 ocorreu inesperadamente, iluminando toda a noite daquela região, convencendo muitos de que o Dia do Juízo estava próximo (Mark Littmann, The Heavens on Fire [Cambridge University Press, 1998]). Esse evento, que se tornou um marco na interpretação profética (Ap 6:13), foi seguido por vários outros sinais no céu, especialmente durante 1843. Os mileritas deram pouca atenção a esses sinais, porque sua esperança estava focalizada na segunda vinda de Cristo.

À medida que o tempo esperado se aproximava, alguns dos amigos de Miller o questionaram sobre sua compreensão a respeito do ano religioso judaico de 1843 d.C., que ele acreditava se estender de 21 de março de 1843 a 21 de março de 1844. Enquanto isso, Samuel Snow estava convencido de que os 2.300 anos se estendiam do outono de 457 a.C. ao outono de 1844 d.C., mais precisamente no décimo dia do sétimo mês (Lv 16:29; 23:27; 25:9), o que correspondia a 22 de outubro de 1844. Ele apresentou seus argumentos em uma reunião campal em Exeter, New Hampshire, em agosto daquele ano. Suas opiniões injetaram novo fervor e senso de urgência ao movimento milerita.

Em vez de reclamar sobre a aparente demora da segunda vinda, deveríamos ser gratos a Deus por nos permitir existir

Quando 22 de outubro finalmente chegou, os mileritas foram tomados por uma introspecção solene e uma expectativa indescritível. Não havia espaço para entusiasmo desenfreado e demonstrações públicas. Na quietude de suas casas, eles esperavam pacientemente o retorno do Senhor. Josué Himes foi ao lar de seu amigo Miller, onde pelo menos alguns membros da família aguardavam Jesus na chamada “Rocha da Ascensão”. Eles observavam o céu na direção leste para ver Cristo assim que o sinal de Sua vinda aparecesse nas nuvens.

Bendito desapontamento

Os mileritas esperaram ansiosamente a vinda de Jesus em 22 de outubro de 1844, mas suas doces expectativas deram lugar à mais amarga decepção. Na manhã de 23 de outubro de 1844, após o desjejum, Hiram Edson convidou seu amigo Owen Crosier para sair e encorajar alguns vizinhos mileritas decepcionados. Edson relatou: “Começamos a caminhar e, enquanto passávamos por um grande campo, parei no meio dele. O céu pareceu abrir à minha visão, e enxerguei, com toda distinção e clareza, que, em vez de nosso Sumo Sacerdote sair do lugar santíssimo do santuário celestial para vir à Terra no décimo dia do sétimo mês, ao fim dos 2.300 dias, Ele tinha entrado pela primeira vez, naquele dia, no segundo compartimento do santuário e que tinha uma obra a realizar no lugar santíssimo antes de voltar a este planeta” (“Description of Hiram Edson’s experience in the cornfield on october 23, 1844” [s/d]).

Historiadores críticos têm aludido tradicionalmente ao desapontamento de 1844 em termos muito negativos. No entanto, estudiosos também têm reconhecido sua dimensão positiva. Na verdade, as decepções tendem a levar as pessoas a romper com as tradições e buscar um novo começo. Estudando novamente as Escrituras, os precursores do adventismo do sétimo dia encontraram respostas bíblicas não só para o desapontamento (ver Ap 10) como também para diversas outras perguntas que ainda nem haviam feito. Isso gerou um processo de restauração que culminou na formação de um sistema coerente da verdade presente.

Conforme afirmei em um devocional, “do desapontamento de 1844, Deus levantou o movimento adventista, hoje mundial, para restaurar as verdades bíblicas no contexto do tempo do fim. Da mesma forma, Ele é capaz de extrair, de nossos desapontamentos pessoais, uma vida de vitória completa. Confiemos em Sua direção providencial hoje e sempre!” (Um Dia Inesquecível [CPB, 2018], 23 de outubro).

Herdeiros da esperança

Muitos dos que acreditaram na segunda vinda de Cristo foram para o túmulo esperando que esse glorioso evento ocorresse durante sua vida. Um exemplo inspirador é o do próprio Guilherme Miller, cuja esperança foi severamente provada quando Cristo não voltou como ele esperava. Após o desapontamento, ele foi duramente criticado e zombado por ter causado expectativas infundadas. Mesmo assim, Miller não abandonou sua fé e esperança. Em 14 de setembro de 1848, já completamente cego, ele declarou em uma carta a Himes: “Seria, de fato, um tempo triste e melancólico para mim, se não fosse pela ‘bendita esperança’ de ver Jesus em breve. […] E embora minha visão natural esteja escura, a visão da minha mente está iluminada com uma perspectiva brilhante e gloriosa do futuro” (Sylvester Bliss, Memoirs of William Miller [J. V. Himes, 1853], p. 367).

Miller faleceu em 20 de dezembro de 1849, deixando-nos um exemplo convincente de compromisso incondicional com a esperança adventista. Em vez de reclamar sobre a aparente demora da segunda vinda, deveríamos ser gratos a Deus por nos permitir existir. Se Jesus tivesse retornado durante a vida de Miller, nem mesmo teríamos a oportunidade de viver para Cristo e esperar por Seu breve retorno. Nossas fervorosas orações devem ecoar as abençoadas aspirações: “Venha o Teu reino” (Mt 6:10) e “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22:20). Afinal, estamos mais próximos hoje desse glorioso evento do que qualquer geração anterior (Rm 13:11). Que o Senhor nos ajude a viver e, se necessário, até mesmo a morrer por essa gloriosa esperança! 

ALBERTO R. TIMM é diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica na sede mundial da Igreja Adventista

(Artigo publicado na Revista Adventista de outubro/2024)

Última atualização em 22 de outubro de 2024 por Márcio Tonetti.