Da cruz ao trono

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A entronização de Cristo ocorreu no lugar mais sagrado do universo e desencadeou uma série de eventos importantes como parte do plano da redenção

Wilson Paroschi

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Em Sua mais longa e sublime oração registrada nos evangelhos, Jesus orou pedindo que o Pai Lhe restabelecesse a glória que tivera no Céu desde antes da formação do mundo (Jo 17:5). Na oração, feita na noite anterior à Sua morte, Jesus assumiu que Sua missão na Terra estava concluída (v. 4) e que o propósito pelo qual viera ao mundo já havia sido alcançado, embora a cruz ainda estivesse por vir. Mas o que exatamente significava reaver a glória que Ele tivera no passado e quais são as implicações disso?

O SIGNIFICADO DA CRUZ

Visto que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6:23), a cruz foi necessária para que o ser humano pudesse ser salvo (Hb 9:22). Porém, a vinda de Jesus ao mundo teve um propósito maior, que foi a vindicação do caráter de Deus. É sobre isso que Jesus falou na oração de João 17 antes de pedir que o Pai O glorificasse: “Eu Te glorifiquei na Terra, realizando a obra que Me deste para fazer. E agora, ó Pai, glorifica-Me Contigo mesmo com a glória que Eu tive junto de Ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17:4, 5).

A ideia de que, com Sua morte, Jesus estava glorificando o Pai deve ser vista no contexto do grande conflito entre o bem e o mal. O originador do mal levantou dúvidas sobre o caráter de Deus. Alguma coisa tinha dado errado com a criação do ser humano (Rm 3:9-12) e era natural que a responsabilidade recaísse sobre o Criador. O pecado, porém, foi um risco calculado antevisto por um Deus de amor ao dotar Suas criaturas do direito de escolha. Entretanto, o pecado nunca O intimidou. Deus nunca perdeu o controle das coisas e, desde o início, já havia estabelecido um plano para salvar a humanidade, caso esta usasse o ­livre-arbítrio para ­desobedecer-Lhe (Rm 16:25, 26; 2Tm 1:8-10; 1Pe 1:19, 20; Ap 13:8). E foi na cruz que o amor e o poder de Deus foram vindicados, ao mesmo tempo em que a natureza do mal foi plenamente revelada (Jo 12:31; 16:11; Cl 2:14, 15).

O custo de tudo isso foi enorme. A abnegação de Cristo ao deixar a glória do Céu, tornar-Se humano e morrer como se fosse um vil pecador (Fp 2:5-8; 2Co 5:21; Gl 3:13) jamais poderá ser totalmente compreendida por mentes finitas (Rm 11:33). E agora, uma vez concluída Sua missão, era hora de retornar para junto do Pai (Jo 16:5, 28) e reassumir Sua glória anterior. Mais que isso, a ascensão de Jesus desencadearia uma série de eventos importantes como parte do plano da redenção.

A ENTRONIZAÇÃO DE CRISTO

O retorno de Jesus para junto do Pai e Sua entronização no Céu foram preditos no Antigo Testamento (Sl 110:1, 2) e descritos em tons dramáticos no capítulo 5 de Apocalipse. O desespero de João (Ap 5:4) revela o temor de que o caráter de Deus tivesse sido para sempre comprometido pela história do pecado e Ele houvesse perdido as condições morais de governar. Mas alguém lhe disse: “Não chore! Eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para quebrar os sete selos e abrir o livro” (v. 5). Quando João olhou, porém, o que ele viu não foi um Leão, e sim “um Cordeiro que parecia que tinha sido morto” (v. 6). E o que se segue é a cena, descrita em termos apoteóticos, da entronização de Cristo no Céu.

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A tônica da narrativa é clara: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor” (v. 12), um reconhecimento que começa aparentemente com seres humanos redimidos (v. 8), passa para os milhões de anjos celestiais (v. 11) e termina com toda a criatura no vasto Universo de Deus (v. 13). Um momento de glória e louvor indescritíveis. Jesus venceu! Deus venceu! Seu caráter foi passado a limpo e Seu direito de reinar, bem como o de Cristo, plenamente vindicado, e por isso Jesus pôde dizer pouco antes de ascender ao Céu: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e na Terra” (Mt 28:18). Embora esse não tenha sido ainda o momento em que as forças do mal foram definitivamente aniquiladas, a destruição delas e o triunfo do plano divino já estavam assegurados (Sl 110:1; Ef 1:19-22; Fp 2:10, 11).

A entronização de Cristo à destra do Pai, mencionada inúmeras vezes pelos escritores do Novo Testamento (At 2:32-36; 5:31; 7:55, 56; Rm 8:34; Ef 1:20; Cl 3:1; Hb 1:3, 13; 8:1; 10:12; 12:2; 1Pe 3:22; Ap 3:21) e antecipada pelo próprio Jesus diante do Sinédrio (Lc 22:69), ocorreu na sala do trono celestial, simbolizado pelo Santo dos Santos do santuário terrestre (Êx 25:17-22; Nm 7:89; 1Sm 4:4; 2Sm 6:2; 2Rs 19:15; 1Cr 13:6; Sl 99:1; Is 37:16) e o lugar mais sagrado do Universo. A sacralidade do local é determinada pela presença de Deus. Detalhe interessante é que no evangelho de João Jesus é explicitamente apresentado como o “Eu Sou” do Antigo Testamento (Jo 8:28, 58; 13:19), inclusive como Aquele que Isaías viu “assentado sobre um alto e sublime trono,” rodeado por serafins que clamavam uns para os outros: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos” (Is 6:1, 3; cf. Jo 12:41). Ou seja, de acordo com João, o Ser divino, glorioso e majestoso que Isaías viu na sala do trono do santuário celestial era o próprio Jesus, o que ajuda a entender o que Jesus quis dizer quando Ele orou para reaver a mesma glória que Ele tivera desde a eternidade passada.

A VINDA DO ESPÍRITO

A ascensão e a entronização de Jesus inauguraram uma nova fase na história da redenção. Ao revelar o verdadeiro caráter de Deus e desmascarar Satanás, a cruz conferiu a Deus o direito definitivo de resgatar a humanidade de volta para Si (Rm 3:24-26; Hb 7:25; 9:12). Isso significa que, nos tempos do Antigo Testamento, as ações salvíficas de Deus ainda eram de certo modo limitadas e provisórias, porque dependiam da morte de Jesus na cruz (Hb 9:15, 22). Talvez isso explique por que o Espírito Santo não poderia vir em Sua plenitude senão após o sacrifício de Jesus ter sido confirmado no Céu e Ele ter ­ocupado novamente Seu lugar à destra do Pai (Jo 7:39). O Espírito Santo sempre estivera presente. Ele é mencionado quase 400 vezes no Antigo Testamento, mas ao mesmo tempo há ali várias profecias que se referem a Ele como o dom da era messinânica (Is 11:1, 2; 32:15; 44:3; Ez 11:19; 36:26, 27; 37:1-14; Jl 2:28, 29), indicando uma vinda futura muito mais abundante que até então.

Isso se cumpriu no Pentecostes (At 2:1-4), como Pedro deixou bem claro em seu sermão (v. 16-21, 32-36), o que resultou, já no primeiro momento, no batismo de quase 3 mil pessoas (v. 41; cf. 2:47; 4:4; 5:14). Após a cruz e o fim do reino teocrático de Israel (Jo 19:14, 15), não era mais Jerusalém que deveria atrair as nações (1Rs 8:41-43; Sl 22:27; 66:5; Is 2:2-4; 42:6, 7; 56:6-8; Mq 4:1-3; Sf 3:9, 10), mas o povo de Deus que, cheio do Espírito, deveria sair e testemunhar de Jesus a todas as nações, tribos, línguas e povos (Mt 24:14; 28:19, 20; Mc 13:10; Lc 24:47; At 1:8). O Espírito não só atuaria de forma ainda mais intensa para convencer “o mundo do pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16:8) como também capacitaria os seguidores de Jesus para que alcançassem até os confins da Terra com a mensagem do evangelho.

Numa pequena parábola, Jesus declarou que, se alguém quiser entrar na casa de um homem forte para lhe roubar os bens, terá primeiro que neutralizar o homem forte. Então estará à vontade para lhe saquear a casa (Mt 12:29). Na cruz, o príncipe deste mundo foi para sempre neutralizado (Jo 12:31; 16:11). Sua derrota foi flagorosa (Ap 12:7-9). Havia chegado a hora de invadir seu reino e levar de volta para Deus as pessoas que ele mantinha sob seu domínio. O Espírito veio com essa finalidade.

A INAUGURAÇÃO DO SANTUÁRIO

Assim que o sacrifício de Jesus foi aceito pelo Pai, conferindo-Lhe o direito de salvar o pecador sem anular Sua justiça e santidade (Rm 3:24-26), e Jesus foi entronizado, o santuário celestial entrou em cena como a sede das ações salvíficas divinas. É ali, na parte mais interior do santuário, que está o trono de Deus.

O santuário celestial sempre existiu. Foi ele que Deus usou como modelo para que Moisés contruísse o tabernáculo no deserto (Êx 25:40; At 7:44; Hb 8:5; 9:23, 24), mas ele somente entrou oficialmente em operação no que diz respeito à salvação da humanidade quando Jesus ascendeu ao Céu, levando por assim dizer o próprio sangue para ministrar na presença de Deus. O livro de Hebreus é claro a esse respeito (Hb 9:11-14, 23-28), como também ao afirmar que o antigo tabernáculo era uma “figura e sombra das coisas celestiais” (8:5) ou “uma parábola para a época presente” (9:9). Assim como o antigo tabernáculo foi inaugurado ou consagrado por ­Moisés para que entrasse em operação (Êx 40:1-9; Lv 8:10-12; Nm 7:1; Hb 9:18), o mesmo aconteceu com o santuário celestial (Hb 6:19, 20; 10:19, 20).

A mesma ideia está presente na profecia de Daniel 9, uma das mais impressionantes profecias messiânicas do Antigo Testamento por antecipar não apenas a obra do Messias, mas também o tempo exato de Sua vinda (v. 24-27). Entre as coisas que aconteceriam ao final do período profétido das 70 semanas, uma delas seria exatamente a unção ou consagração do Santo dos Santos do santuário celestial (v. 24). Desde os primórdios do adventismo a expressão “ungir o Santo dos Santos” nesse versículo tem sido interpretada como uma referência à inauguração do santuário celestial por Jesus em Sua ascensão.

O INÍCIO DA OBRA INTERCESSÓRIA

Os sacrifícios do Antigo Testamento eram simbólicos e, portanto, imperfeitos. Não consistiam numa solução real e definitiva para o problema do pecado (Hb 9:9; 10:1-4, 11). Eles apenas apontavam para o sacrifício de Jesus, “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Por ser perfeito e eficaz, o sacrifício de Jesus não precisa ser repetido (Hb 9:26, 28; 10:10, 12-14; 1Pe 1:19). Ele morreu uma vez para sempre, cumprindo assim a tipologia de todos os sacrifícios do passado. Em Sua asensão, Jesus Se tornou Sumo Sacerdote (Hb 6:20), passando a aplicar diante de Deus os benefícios de Seu sacrifício em favor do pecador arrependido (Hb 9:12-14, 23-28).

Assim como no santuário terrestre, o ministério de Cristo no santuário celestial se desenvolve em duas fases: no Lugar Santo e no Lugar Santíssimo. A primeira é de intercessão; a segunda, de julgamento. A profecia de Daniel 8:14 nos ajuda a entender a cronologia das duas fases. Dizer que, em Sua ascensão, Jesus foi ao Santo dos Santos (entronização e inauguração do santuário celestial) não anula Seu ministério em duas fases, as quais são tão essenciais à salvação como Sua morte na cruz.

A glorificação de Jesus no Céu foi o reconhecimento de Seu triunfo na cruz, que vindicou o governo de Deus no Universo e assegurou a Ele o direito de salvar o pecador

Mesmo que a morte de Jesus tenha sido perfeita e tenha provido ampla e suficiente expiação pelos pecados (Rm 3:24, 25; Hb 2:17; 1Jo 2:2; 4:10), a justiça divina requer cuidado na aplicação do perdão. Embora Deus possa perdoar a todos indistintamente (1Tm 2:4, 6; 4:10; Tt 2:11; 1Jo 2:2), o perdão só é realmente outorgado àquele que responde com fé (Jo 3:16; At 10:43; 13:39; 16:31; Rm 1:16; 3:22, 25-28). Nem todos, portanto, serão salvos (Jo 3:16-19). É aqui que entra a intercessão de Cristo, ministrando diante de Deus em favor daqueles que se arrependem e creem (Rm 8:34; Hb 7:25; 1Tm 2:5; 1Jo 2:1, 2). No dia antitípico da expiação (ou seja, a segunda fase do ministério sumo-sacerdotal de Cristo), o próprio registro de pecado é removido, o ­santuário é purificado e o perdão ratificado para sempre.

NOVO E VIVO CAMINHO

O pecado nos baniu da presença de Deus (Gn 3:23, 24; Is 59:2). Como pecadores, não mais podíamos ter acesso direto a Ele. A mediação era feita pelos sacerdotes, que, sendo igualmente pecadores, precisavam primeiro fazer rigorosa expiação pelos próprios pecados para que pudessem interceder pelo povo (Hb 5:1-3). A presença de Deus entre o povo de Israel era real, mas velada e circunscrita ao Santo dos Santos do antigo tarbernáculo (Êx 40:34-38) e depois do templo (2Cr 7:1-3).

Quando Jesus morreu, provendo completa expiação pelo pecado, o véu interior do templo de Jerusalém se rasgou de alto a baixo (Mt 27:51), deixando a descoberto o Santo dos Santos. Era o fim da alienação. E, ao ascender ao Céu como um de nós (1Tm 2:5), Cristo, como nosso Precursor, entrou “no santuário que fica atrás do véu” (Hb 6:19), readmitindo-nos à presença de Deus. No Antigo Testamento, a expressão “atrás do véu” ou “dentro do véu” sempre se refere ao véu mais interior, que dava acesso ao Santo dos Santos (Êx 26:33; Lv 16:2, 12, 15). Paulo falou que, justificados pela fé, “temos paz com Deus” (Rm 5:1). Não somos mais inimigos, estranhos nem alienados. Fomos reconciliados com Ele (2Co 5:19, 20; Cl 1:20-22). Recuperamos a condição de filhos e podemos novamente chamá-Lo de “Pai” (Rm 8:15; 2Co 6:18; Gl 4:4-7; Ef 2:17, 18).

É por isso que somos instados a nos achegarmos ao “trono da graça com confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça para ajuda em momento oportuno” (Hb 4:16). Pela fé, podemos hoje entrar à presença de Deus “pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele nos abriu por meio do véu, isto é, pela Sua carne” (Hb 10:19, 20). Isso significa entrada irrestrita à sala do trono celestial, confiados na obra intercessória de Cristo (v. 21) e “em plena certeza de fé” (v. 22). Guardemos firmemente, portanto, “a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel” (v. 23).

TRIUNFO COMPLETO

A glorificação de Jesus no Céu foi o reconhecimento de Seu triunfo na cruz, que vindicou o caráter e o governo moral de Deus no Universo e assegurou a Ele o direito de salvar o pecador. Após a glorificação, seguiu-se uma série de eventos destinados a tornar real a salvação do ser humano: o envio do Espírito Santo, que capacitaria a igreja para o cumprimento da missão; a inauguração do santuário celestial, onde seriam aplicados os benefícios do sangue expiatório de Cristo; a unção de Cristo como Sumo Sacerdote, habilitando-O a interceder por nós; o início de Sua obra intercessória em favor daqueles que se arrependessem e cressem; e nossa restauração à presença de Deus, de modo que novamente podemos nos dirigir a Ele como “Pai”.

Embora a obra de Cristo no santuário celestial ainda não esteja concluída, já temos a certeza de que “não existe nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1). “Se Deus é por nós,” pergunta Paulo, “quem será contra nós?” Quem intentará ­acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou melhor, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo?” (v. 31-35). Na sequência (v. 37-39), o apóstolo responde: Nada! Ninguém! Jamais!

WILSON PAROSCHI, doutor em Teologia, é professor de Novo Testamento na Universidade Adventista do Sul, em Collegedale (EUA)

(Artigo publicado na edição de dezembro de 2020 da Revista Adventista)

Última atualização em 30 de dezembro de 2020 por Márcio Tonetti.