Devoção matinal

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A importância de ter um encontro com Deus no começo de cada dia

Edward Allen

Foto: Adobe Stock

Em um navio veleiro, a noite é dividida em três turnos. A vigília intermediária é a mais difícil. Tudo está escuro. O vigia entra em serviço à meia-noite e vê apenas a escuridão das ondas, que escondem uma infinidade de perigos. Quando a vigília matinal começa, às 4h da madrugada, a escuridão é tão pesada quanto à meia-noite, mas é nessa vigília que se vê o céu começar a clarear, as estrelas desaparecerem e o sol surgir do mar. O que estava oculto, torna-se visível. A terra emerge da neblina. Os perigos que eram desconhecidos na escuridão tornam-se nítidos. Na vigília matinal, o navio se transforma de uma construção inerte em um lar cheio de vida para marinheiros e passageiros.

METÁFORA

Essa imagem é uma metáfora do tempo que o cristão dedica a Deus pela manhã. A prática da devoção matinal ganhou destaque a partir da experiência de Handley G. C. Moule, diretor da Ridley Hall, uma escola evangélica de formação teológica, em Cambridge, na Inglaterra. Tanto Moule quanto a instituição na qual ele trabalhava faziam parte de um movimento interdenominacional fundamentado em tradições da Igreja Anglicana.

Pouco depois de Moule se tornar diretor da escola, em 1880, Dwight L. Moody e Ira Sankey chegaram a Cambridge. Moody relutava em falar nos grandes centros de educação inglesa, pois tinha pouca educação formal. No entanto, suas mensagens simples e sinceras causaram um impacto profundo. A atitude de Moule também impressionava os alunos da Ridley Hall. Eles logo notaram o hábito do diretor, que se levantava às 6h30 da manhã e caminhava pelo jardim da escola. Quando questionaram sobre o assunto, Moule lhes disse que havia descoberto que orava melhor quando estava caminhando.

Ao vê-lo em comunhão com Deus, os alunos começaram a se perguntar: “Como posso ficar deitado na cama enquanto aquele senhor está caminhando e orando no jardim?” Como resultado, os estudantes formaram um grupo chamado de Ridley Hall Morning Watch Union. Eles assinaram uma declaração que dizia o seguinte: “Com a ajuda de Deus, vou me esforçar para reservar, de manhã cedo, pelo menos vinte minutos e, se possível, uma hora para orar e estudar a Bíblia” (Handley Carr Glyn Moule, Bishop of Durham: A Biography [Hodder and Stoughton, 1922], p. 97, 101).

IDEAL DO CRISTÃO

Quando John R. Mott, presidente do Movimento Estudantil Voluntário para Missões Estrangeiras (MEM), visitou Cambridge em junho de 1894, Moule recomendou-lhe a devoção matinal. Após a conversa, Mott começou a promover essa prática dentro do MEM. Logo após sua fundação, em 1886, essa iniciativa chamou atenção dos adventistas do sétimo dia. Os alunos da Faculdade de Battle Creek formaram um grupo de missões estrangeiras em 1890, e logo começaram a se corresponder com Mott. Em 1891, Frederick Rossiter, líder do grupo de Battle Creek, participou da primeira convenção internacional do MEM, realizada em ­Cleveland, no estado de Ohio (EUA), com mais oito adventistas do sétimo dia de Battle Creek. Algum tempo depois, Mott visitou a Faculdade União e proferiu um discurso na capela que havia ali.

Em 1898, Milton E. Kern, aluno da Faculdade União, foi enviado à convenção do MEM como delegado. Com 1.600 participantes, essa foi uma das maiores convenções estudantis realizadas até aquela época. Kern ouviu Mott fazer um discurso impressionante sobre devoção matinal. Mott argumentou que “a fonte do poder de qualquer movimento espiritual é Deus, e o poder divino é liberado em resposta à oração” (World-Wide Evangelization: The Urgent Business of the Church [Student Volunteer Movement for Foreign ­Missions, 1902], p. 241).

Mott acreditava que os missionários seriam capacitados e sustentados à medida que estabelecessem um relacionamento firme com Deus, comunicando-se diretamente com Ele e lendo Sua Palavra durante a devoção matinal. Portanto, esse era um hábito que devia ser cultivado por todos os cristãos que procuram ser eficazes na causa de Cristo. Em uma reportagem sobre a convenção do MEM daquele ano, a Review and Herald destacou esse discurso fazendo um longo comentário sobre ele (W. E. Cornell, “The Volunteer Convention”, Review and Herald, 15 de março de 1898, p. 10, 11).

Kern era professor da Faculdade União quando foi chamado para ser o primeiro secretário do Departamento de Jovens da Associação Geral. Por insistência dele, esse ministério foi oficialmente renomeado como Sociedade de Jovens Missionários Voluntários Adventistas do Sétimo Dia (SJMV). Como líder da SJMV, Kern desempenhou um papel ativo na promoção da devoção matinal.

A devoção matinal pode se transformar em um mero ritual se, em vez de nos concentrarmos na transformação que Deus pode realizar, nos fixarmos essencialmente no estudo e na análise das informações

Os três objetivos declarados pela SJMV em sua primeira convenção, em 1907, incluíam “desenvolver a vida devocional, o esforço missionário e as atividades educacionais” (eram semelhantes à ênfase que Kern observou na Convenção dos Estudantes Voluntários de 1898). Utilizando textos selecionados por Matilda Erickson, secretária correspondente da SJMV, Kern publicou um calendário de devoção matinal para 1908, que incluía “um texto bíblico para ser lido todas as manhãs e um incentivo para ser seguido com devoção e oração”. A Lei do Missionário Voluntário, desenvolvida sob a orientação de Kern, tornou-se a Lei do Desbravador, que começa com o compromisso de “observar a devoção matinal” e tem sido recitada por milhares de juvenis há décadas. Será que os desbravadores que reafirmam a cada reunião os ideais do clube têm em vista a importância disso para seu relacionamento com Deus?

DESENVOLVENDO A PRÁTICA

Como podemos desenvolver a prática de dedicar um tempo a sós com Deus? A seguir, compartilho alguns passos importantes para que você forme esse hábito.

1. Faça do tempo com Deus uma prioridade. Respeite esse tempo, independentemente das circunstâncias da vida. Moule era um homem muito ocupado, que muitas vezes era chamado altas horas da noite para ajudar em alguma questão. No entanto, todas as manhãs, às 6h30, ele andava pelo jardim em atitude de oração. Os alunos da Ridley Hall sabiam que seu poder espiritual vinha dessas caminhadas matinais com Deus.

2. A manhã faz a diferença. Em seu discurso de 1898, Mott apresentou algumas razões pelas quais devemos nos encontrar com Deus pela manhã. É quando a mente está em seu estado mais receptivo. Se buscarmos a Deus no fim do dia, já estaremos preocupados com outros assuntos e será mais difícil nos concentrar Nele. Se buscarmos Deus primeiro, estaremos preparados para os conflitos do dia e não seremos pegos desprevenidos.

3. Procure Deus. Se disciplinarmos nossa mente para se concentrar primeiro na misericórdia, na graça e no poder de Deus, isso permeará o restante do nosso tempo com Ele. Então veremos nossos pecados e nossas falhas sob a perspectiva de Sua graça e Seu poder. Ao confessarmos nossa culpa e nossos fracassos, recebemos perdão e experimentamos renovação espiritual.

4. Encontre Deus em Sua Palavra. Medite nas Escrituras e permita que Seu Espírito o impressione com o propósito que Ele tem para sua vida. Somos convidados a nos entregar a Ele em obediência e sentir Sua presença. Experimentamos alegria e paz quando passamos tempo com Deus. Mas esses sentimentos não são o objetivo. São apenas os subprodutos do nosso tempo com o Senhor.

Ao passarmos tempo em Sua presença, meditando em Sua Palavra, nossa vida é enriquecida. A plenitude da Sua graça transborda e impacta o nosso mundo. Intercedemos por nossos entes queridos e vizinhos. Mas essa intercessão não é estereotipada – apenas pedindo a Deus que esteja com eles e os abençoe. Em vez disso, procuramos observar onde Deus já está trabalhando para que possamos nos juntar a Ele na missão.

CUIDADO COM O RITUAL

A devoção matinal pode se transformar em um mero ritual se, em vez de nos concentrarmos na transformação que Deus pode realizar, nos fixarmos essencialmente no estudo e na análise das informações. Se a devoção matinal for uma promessa a Deus – e, provavelmente, mais quebrada do que cumprida –, pode gerar culpa. É melhor não fazer a promessa do que quebrá-la.

Por outro lado, a devoção matinal pode ser vista como uma promessa de Deus de Se encontrar com Seus filhos. À medida que respondemos ao Seu convite, percebemos os incríveis benefícios de Sua presença em nossa vida. Assim, a devoção matinal se torna um momento em que a escuridão da nossa noite se dissipa e a luz de Deus brilha em nosso mundo. Os perigos e as oportunidades são vistos sob a perspectiva da ­Palavra de Deus, e estamos preparados para enfrentar os desafios de navegar durante o dia com Ele.

EDWARD ALLEN é professor de religião na Faculdade União, em Lincoln, no Nebraska (EUA)

Última atualização em 15 de agosto de 2023 por Márcio Tonetti.