Falar em línguas

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O que a Bíblia ensina sobre essa prática controversa?

Gerhard Pfandl

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Certa ocasião, recebi uma carta de um membro da igreja relatando que um visitante em sua congregação estava falando em línguas durante o culto. Falar em línguas é uma característica distintiva de mais de 30 denominações pentecostais ao redor do mundo. De fato, se somarmos os membros que falam em línguas entre as igrejas carismáticas e tradicionais, como batistas, metodistas e católicas, teremos milhões de pessoas.

Os discípulos, após três anos e meio aprendendo aos pés do Salvador, estavam despreparados e sem poder para dar continuidade à Sua obra (Mt 28:19). Jesus lhes havia dito: “Eis que envio sobre vocês a promessa de Meu Pai; permaneçam, pois, na cidade, até que vocês sejam revestidos do poder que vem do alto” (Lc 24:49).

De fato, ninguém está preparado para o serviço cristão, a menos que seja revestido com poder divino. Conhecimento e atividade são insuficientes. Ellen White afirmou: “O que precisamos é do batismo do Espírito Santo. Sem ele, não estamos mais aptos para ir ao mundo do que estavam os discípulos após a crucificação de seu Senhor. Jesus conhecia a necessidade deles e disse-lhes para esperarem em Jerusalém até serem revestidos com poder do alto” (“How to meet a controverted point of doctrine”, Review and Herald, 18 de fevereiro de 1890).

Uma atividade importante do Espírito Santo prometido é conceder dons. “A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando um fim proveitoso” (1Co 12:7). Os dons mencionados em 1 Coríntios 12:7 a 11 são: sabedoria, conhecimento, fé, cura, operação de milagres, profecia, discernimento de espíritos, variedade de línguas e interpretação de línguas.

O fenômeno de falar em línguas é comumente chamado de glossolalia, derivado dos termos gregos glossa (língua) e lale? (falar). De acordo com Elias Andrews, o dom de línguas “consistia em discurso articulado e ininteligível emitido por cristãos que, em estado de êxtase, acreditavam estar possuídos pelo Espírito” (“Tongues, Gift of”, The Interpreter’s Dictionary of the Bible [Abingdon, 1962], v. 4, p. 671). Nesse sentido, a glossolalia tem sido reconhecida em religiões não cristãs em tempos antigos e modernos. Sacerdotes pagãos, curandeiros, xamãs e outras personalidades religiosas têm falado em línguas em diversas ocasiões cerimoniais e litúrgicas.

Nas últimas décadas, estudiosos têm investigado a glossolalia para determinar se pode ser considerada uma língua legítima. Os resultados têm sido unilaterais. William Welmes, antigo professor de línguas africanas na Universidade da Califórnia em Los Angeles, escreveu: “Devo relatar sem reservas que minha amostra não soa estruturalmente como uma língua. Não há mais do que dois sons de vogais contrastantes e um conjunto bastante peculiar de sons de consoantes; estes se combinam em pouquíssimos agrupamentos de sílabas que se repetem muitas vezes em diversas ordens. As consoantes e vogais não soam todas como inglês [língua usada como comparação], mas os padrões de entonação são tão completamente do inglês americano que o efeito total é um pouco extravagante” (“Letter to the editor”, Christianity Today, 8 de novembro de 1963, p. 19, 20).

William Samarin, professor de linguística na Universidade de Toronto, estudou extensivamente a glossolalia por cinco anos. Ele avaliou a glossolalia como “uma expressão humana sem sentido, mas foneticamente estruturada, que o falante acredita ser uma língua real, mas sem semelhança sistemática com qualquer língua natural, viva ou morta” (Tongues of Man and Angels [Macmillan, 1972], p. 2).

A maioria dos carismáticos, por sua vez, reconhece que a glossolalia moderna não é uma linguagem humana comum. Eles acreditam que seja uma linguagem celestial. “A glossolalia é, de fato, uma língua em um sentido diferente da palavra. […] No entanto, a maior parte das evidências sugere que, embora haja um padrão e uma forma, falar em línguas provavelmente não se trate de uma língua conhecida ou de uma linguagem humana conforme entendida atualmente” (H. Newton Malony e A. Adams Lovekin, Glossolalia: Behavioral Science Perspectives on Speaking in Tongues [Oxford University Press, 1985], p. 38).

O DOM DE LÍNGUAS NO NOVO TESTAMENTO

A questão se o dom de línguas do Novo Testamento é o mesmo que a glossolalia moderna gera divergências entre os estudiosos. Alguns acreditam que se tratava simplesmente de um discurso extático. Por exemplo, “a glossolalia cristã primitiva era a emissão de palavras sem sentido sob a compulsão de emoções extáticas e incontroláveis – uma cacofonia incompreensível para todos, exceto os poucos que foram carismaticamente capacitados para sua interpretação” (S. MacLean Gilmour, “Easter and Pentecost”, Journal of Biblical Literature, março de 1962, p. 64). Outros estão convencidos de que “ao falar em outras línguas, os crentes forneciam evidências de que o Espírito Santo estava realizando um milagre” (Simon J. Kistemaker, Acts [Baker, 1990], p. 8). Há também aqueles que veem tanto o discurso extático quanto línguas estrangeiras no Novo Testamento.

AS LÍNGUAS ERAM EVIDÊNCIA DO BATISMO COM O ESPÍRITO SANTO E DA CAPACITAÇÃO PARA A MISSÃO

A maioria, porém, entende que os fenômenos descritos em Atos 2:4 e 1 Coríntios 14:2 são significativamente diferentes entre si. Em um caso, as pessoas entendiam em sua própria língua ou dialeto e, no outro, era necessário um intérprete. É por esse motivo que muitos interpretam glossa em 1 Coríntios 14:2 como discurso extático, que também era um elemento importante nas religiões helenísticas e constituía um símbolo de inspiração divina (J. P. Louw et al., Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domain [United Bible Societies, 1988], v. 1, p. 389).

O dom de línguas é mencionado nos evangelhos apenas uma vez (Mc 16:17); em Atos, aparece em cinco textos (2:4-11; 10:46; 19:6); e em 1 Coríntios 12 a 14, ocorre 20 vezes (12:10 [duas vezes], 28, 30; 13:1, 8; 14:2, 4, 5 [duas vezes], 6, 13, 14, 18, 19, 22, 23, 26, 27, 29).

O primeiro a falar sobre o dom de línguas foi o próprio Jesus. Referindo-Se aos Seus seguidores, Ele disse: “Em Meu nome, expulsarão demônios; falarão novas línguas” (Mc 16:17). O cumprimento dessa profecia é encontrado em Atos 2: “Ao cumprir­- se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem” (v. 1-4).

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar. Não houve período de ensino nem tempo de aprendizado. Eles começaram a falar imediatamente “em outras línguas”, ou seja, em idiomas estrangeiros (At 2:6, 8, 11). Enquanto alguns intérpretes veem falas extáticas em Atos 2, a maioria concorda que se referem a idiomas: “As línguas em [At] 2:4 são melhor entendidas como ‘idiomas’ e devem ser interpretadas de acordo com a referência de Filo à linguagem compreensível como um dos três sinais da presença de Deus na entrega da lei no Monte Sinai” (Richard N. Longenecker, “The Acts of the Apostles”, The Expositor’s Bible Commentary [Zondervan, 1981], v. 9, p. 271). Ellen White explicou: “Esse dom sobrenatural era uma forte evidência para o mundo de que o trabalho deles tinha a aprovação do Céu. Dali em diante, a linguagem dos discípulos passou a ser pura, simples e correta, falassem eles no idioma materno ou em uma língua estrangeira” (Atos dos Apóstolos [CPB, 2021], p. 26).

Em primeiro lugar, as línguas eram consideradas evidência do batismo com o Espírito Santo. Em Atos 1:5, Jesus disse aos apóstolos que seriam batizados com o Espírito Santo; no Pentecostes, esse batismo ocorreu. O segundo propósito era estar equipado para a missão. “Com base na predição de Jesus, como registrada em Marcos 16:17 e seu contexto, o propósito do dom de línguas era fornecer os meios de comunicação para a evangelização do mundo por intermédio da proclamação do evangelho” (Gerhard F. Hasel, Speaking in Tongues [Adventist Theological Society, 1991], p. 74). Nesse sentido, Atos 2 é o capítulo fundamental para interpretar o dom de línguas no Novo Testamento. Trata­- se de um texto facilmente compreensível.

Em Atos 10:44 a 48, Cornélio e sua família receberam o Espírito Santo quando aceitaram Cristo. Como Pedro explicou aos apóstolos, “o Espírito Santo caiu sobre eles, como também sobre nós, no princípio” (At 11:15). O propósito de Deus com esse incidente era convencer os judeus de que os gentios também recebiam o Espírito Santo e tinham parte no reino de Deus.

AS “LÍNGUAS” EM CORINTO

Depois de Jerusalém, Cesareia e Éfeso (At 19), Corinto se tornou a quarta metrópole na qual o “falar em línguas” foi manifestado no Novo Testamento. A igreja na cidade foi fundada na segunda jornada missionária de Paulo (At 18:1-18). Ela enfrentava muitos problemas: divisões (1Co 3:3), imoralidade (5:1), litígios entre os cristãos (6:1), questões matrimoniais (7:1), abuso na Ceia do Senhor (11:21) e falta de compreensão sobre os dons espirituais (12–14).

Outro problema em relação aos dons espirituais é que não sabemos qual era a pergunta referente ao dom de línguas à qual Paulo estava respondendo. Para nós, a questão é: as “línguas” em Corinto eram um discurso extático ou idiomas? Há bons argumentos de ambos os lados dessa questão (veja o quadro).

Neste artigo, discutimos dois tipos de línguas: um é o dom bíblico de línguas estrangeiras, o outro é uma experiência extática, um discurso sem sentido, que pode ser encontrado em religiões antigas e contemporâneas. Contudo, é importante lembrar que há apenas um dom de línguas no Novo Testamento, e conforme Gerhard Hasel afirmou, “é muito razoável concluir que o falar em línguas ao longo do Novo Testamento é o dom de falar milagrosamente línguas estrangeiras não aprendidas” (Speaking in Tongues, p. 150). 

SAIBA +

ARGUMENTOS FAVORÁVEIS ÀS LÍNGUAS COMO IDIOMAS

1. O Novo Testamento conhece apenas um dom de línguas.

2. Em Atos, as línguas são idiomas estrangeiros; portanto, em 1 Coríntios, as línguas também devem ser idiomas estrangeiros. Assim, 1 Coríntios deve ser interpretado à luz de Atos, não o contrário.

3. Deus age por meio da inteligência humana. O Senhor que alertou contra a repetição de frases vazias dos gentios (Mt 6:7) inspiraria um discurso sem sentido?

4. Em 1 Coríntios 14:22, as línguas são um sinal para os descrentes, como no Pentecostes. Portanto, as línguas devem ser uma linguagem real.

5. Os dons foram dados para o bem comum (1Co 12:7). Isso descarta o uso de um dom unicamente para a gratificação pessoal.

6. As línguas em Corinto foram usadas de maneira inadequada. Em 1 Coríntios 14:2, Paulo criticou os membros da igreja por usarem seu dom para falar com Deus e não com seres humanos. No versículo 4, ele condenou o uso das línguas para edificação própria.

7. Em 1 Coríntios 14:21 e 22, Paulo comparou as línguas com o idioma assírio/babilônico.

8. Glossa na Septuaginta (LXX) é usada 30 vezes como linguagem e apenas duas vezes como discurso ininteligível – não extático –, mas discurso vacilante (Is 29:24, 32:4).

ARGUMENTOS FAVORÁVEIS ÀS LÍNGUAS COMO FALAS EXTÁTICAS

1. Existem diferenças entre Atos e 1 Coríntios. Em Atos, o foco era na pregação; em 1 Coríntios, na oração e ação de graças. Em Atos, não havia interpretação; em 1 Coríntios, havia intérprete (1Co 14:13).

2. Nas características das línguas em 1 Coríntios 14, a pessoa fala com Deus, não com outras pessoas (v. 2, 28); ninguém a entende (v. 2); no espírito, ela fala mistérios (v. 2); e não se edifica a si mesma (v. 4).

3. Se a glossa em Corinto fosse uma língua estrangeira, Paulo dificilmente a teria criticado. Ele teria dito aos membros que a usassem para testemunhar.

4. As perguntas feitas apoiam as falas extáticas (1Co 14:6, 9, 16, 23). No entanto, todos esses elementos também podem ser compreendidos no contexto do uso inadequado de línguas estrangeiras na igreja em Corinto. Em vez de usar o dom de línguas para propósitos missionários, eles o utilizavam para se glorificar.

Em relação à glossolalia moderna, Ellen White afirmou: “Algumas dessas pessoas têm formas de culto a que chamam dons e dizem que o Senhor os pôs na igreja. Têm um palavreado sem sentido a que chamam língua desconhecida, desconhecida não só ao homem, mas ao Senhor e a todo o Céu (Maranata [CPB, 2021], p. 153).

Nota: Este artigo foi publicado na Perspective Digest, v. 8, nº 24, outubro de 2023.

GERHARD PFANDL foi diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica da Igreja Adventista do Sétimo Dia

(Artigo publicado na Revista Adventista de fevereiro/2024)

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Última atualização em 26 de fevereiro de 2024 por Márcio Tonetti.