Fé e ação

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Lições da experiência de Neemias sobre resolução de conflitos

Ricardo Norton
Crédito da imagem: Adobe Stock

O conflito é um intruso que passou a fazer parte do planeta algum tempo depois da semana da criação. O mundo era perfeito e harmonioso, até que Satanás, enganando nossos primeiros pais, semeou decepções, inimizades e contendas. Hoje, tanto a história quanto as ciências biológicas, políticas e sociais testemunham a natureza conflituosa do mundo em que vivemos. A prevalência de conflitos em nosso cotidiano fez com que fossem considerados algo “natural, inevitável, necessário e normal” (Bernard Mayer, The Dynamics of Conflict Resolution: A practitioners guide [San Francisco, CA: Jossey-Bass, 2000], p. 3).

As consequências negativas do conflito são inegáveis. Nosso desafio é enfrentá-las. Este artigo analisa como Neemias superou as dificuldades que envolviam os judeus em Jerusalém durante os dias do império persa. Ele enfrentou simultaneamente vários problemas: a grande quantidade de judeus casados com mulheres pagãs; a restauração dos muros de Jerusalém, com suas respectivas portas; a transgressão do sábado por parte dos comerciantes; a injustiça social, opressão dos pobres e ganância; a paralisação do serviço do templo e as ameaças de seus inimigos. Sua história nos apresenta lições úteis para encarar com sucesso os conflitos atuais.

Enfrentando conflitos

Dependência de Deus. Em alguns aspectos, a reação de Neemias ao conflito foi semelhante à de Esdras, seu contemporâneo. Como sacerdote, Neemias, vendo a difícil situação do povo, também chorou, jejuou e orou (Ne 1:4; 2:2, 4; 4:4). No entanto, em outros aspectos, ele era muito diferente de Esdras. Diante da destruição de Jerusalém e do afastamento do povo em relação aos princípios divinos, o sacerdote arrancou os cabelos e a barba. Por sua vez, Neemias começou a arrancar os cabelos e a barba dos desobedientes! Nos tempos bíblicos, esse ato expressava raiva, insulto e desprezo (2Sm 10:4; Is 50:6).

Liderança autoritativa. Uma análise da linguagem de Neemias o apresenta como um líder que dava ordens diretas (por exemplo, Ne 7:3; 13:25). Deve-se notar que, apesar de vir da mesma raiz etimológica, as palavras autoritativa e autoritária expressam diferentes posturas de liderança.[1] O líder autocrático lidera por si mesmo e toma decisões sem consultar. O líder autoritativo lidera com base na autoridade recebida pelo povo, depois que este verifica sua eficiência e seu desejo de buscar o bem-estar de todos.

Na maioria dos desafios relatados em seu livro, Neemias é conhecido por ter exercido liderança autoritativa; pois o povo o ouvia e lhe obedecia voluntariamente. Contudo, no caso dos casamentos mistos, fica claro que ele foi autoritário, devido à persistência dos judeus em cometer esse pecado.

Organização detalhada. A desorganização tem o potencial de agravar os conflitos. A capacidade organizacional de Neemias pode ser vista desde o início do livro. Considerando as circunstâncias que enfrentaria durante sua missão, ele pediu ao rei cartas que o autorizassem a atravessar territórios de outros governadores do império e lhe dessem madeira para a restauração da cidade de Jerusalém.

Depois de concluir o trabalho de re-edificação dos muros e portões, o governador passou a nomear líderes e delegar responsabilidades específicas para o funcionamento eficaz da cidade. A maneira de dedicar o muro, organizada, com coros, música e sacrifícios de animais, também mostra a grande capacidade organizacional de Neemias.

O resultado

Restauração dos muros em tempo recorde. Concluir a reconstrução dos muros de Jerusalém em 52 dias, após 70 anos de sua destruição, foi algo surpreendente, considerando seu comprimento, altura e espessura.[2] Além da rapidez com que os muros foram refeitos, o trabalho foi realizado com voluntários e sob a constante ameaça de inimigos armados que se opunham à sua restauração (Ne 6:15). Essa conquista administrativa deu a Neemias a reputação de ser um dos líderes mais destacados e hábeis do Antigo Testamento na administração de conflitos.[3]

Abolição da usura. Ouvindo o clamor do povo (Ne 5:1) e conhecendo os abusos financeiros cometidos contra os membros pobres da mesma família espiritual, Neemias ficou furioso e foi obrigado a tomar decisões drásticas para aliviar a fome e as necessidades das pessoas. Ele instou os credores a renunciar aos juros de empréstimos que haviam concedido, o que eles fizeram imediatamente.

Reformas religiosas. Concluída a reconstrução do muro, Neemias concentrou-se no desenvolvimento de reformas religiosas, a fim de levar os israelitas à comunhão com Deus e aos princípios que o Criador estabeleceu nas Escrituras Sagradas. Um dos primeiros passos foi organizar um serviço religioso para a dedicação do muro.[4]

Esse serviço exigia a participação de levitas e cantores que haviam sido obrigados a deixar o templo e voltar para suas casas. Neemias os trouxe de volta a Jerusalém para organizar coros e fazer parte da cerimônia de dedicação, que incluía o sacrifício de animais (Ed 12). Além disso, o governador expulsou Tobias do santuário, jogando fora todos os seus bens e restaurando a fidelidade nos dízimos, para que os levitas fossem restabelecidos em suas funções religiosas (Ne 13:1-13).

Observância do sábado. O serviço do santuário e a adoração a Deus estavam intimamente relacionados com a observância do sábado, que era semanalmente transgredida pelo comércio entre habitantes locais e estrangeiros, que traziam seus produtos em animais para vendê-los na cidade. A solução prescrita por Neemias foi fechar as portas antes do pôr do sol na sexta-feira até depois do pôr do sol no sábado.

Para garantir que não houvesse comércio no sétimo dia, ele colocou alguns de seus homens de confiança para vigiar as portas. Como os comerciantes acamparam do lado de fora dos portões fechados, tentando os habitantes a fazer negócios, Neemias os advertiu, possivelmente do alto do muro, e os ameaçou dizendo que se fizessem isso de novo, eles seriam presos (Ne 13:19-21).[5]

Dissolução dos casamentos com mulheres estrangeiras. Diante do problema crônico que era o jugo desigual, Neemias repreendeu, amaldiçoou e feriu alguns judeus, provavelmente os mais relutantes em obedecer (Ne 13:25). Suas ações drásticas foram planejadas para impedir que o problema se repetisse, como aconteceu com Esdras. Deve-se notar que separar o esposo da esposa, os pais dos filhos, é algo realmente traumático; por isso, muitos voltavam para sua família.

Lições de liderança

Cada líder enfrenta os conflitos de maneira diferente, influenciado por sua personalidade e visão. Sendo contemporâneos,[6] Esdras e Neemias administraram os mesmos problemas dependendo de Deus, mas enfrentando-os de maneira distinta. Mais do que diversidade estratégica, a diferença entre esses dois líderes foi marcada por suas personalidades singulares. Os parágrafos a seguir apresentam algumas lições objetivas que podemos aprender com Neemias para resolver conflitos.

Decisões impopulares. O pecado sempre resulta em consequências negativas e muitas vezes nos coloca em situações impossíveis de ser resolvidas sem sofrimento. A estratégia de Esdras de permitir que os homens livremente deixassem esposas e filhos não funcionou porque exigia a renúncia da condição familiar. Sabendo disso, Neemias foi além, proibindo posteriores matrimônios mistos. O casamento com pessoas de outras crenças religiosas é muito comum atualmente; mas essas uniões frequentemente enfraquecem a fé e, às vezes, levam à apostasia. É importante alertar o povo de Deus sobre as consequências negativas do jugo desigual (2Co 6:14). Frequentemente, o líder é obrigado a se posicionar em questões difíceis, e seu parecer poderá ser muito criticado. No entanto, críticas que não têm fundamento bíblico nem moral não devem ser levadas em consideração.

Pregação e fracasso. A ideia de que Esdras falhou em sua reforma porque Neemias teve que lidar com os mesmos problemas anos depois não é necessariamente verdadeira. Quando um servo de Deus prega fielmente a mensagem bíblica e as pessoas a rejeitam, o fracasso é delas, não do pregador. Algo semelhante aconteceu com o próprio Neemias. Após ficar distante por um tempo, ele teve que enfrentar novamente várias questões que já havia corrigido em seu primeiro período em Jerusalém (Ne 13:4-31).[7]

Coragem para pedir. Neemias não tinha autoridade civil nem recursos humanos e financeiros para reconstruir o muro. Ele precisava de ajuda! Por isso, pediu auxílio às personalidades mais poderosas que conhecia: Deus, que prometeu ajudar Seu povo em todos os momentos (Ne 1:8-11); e o rei Artaxerxes, que apreciava sua dedicação. Sem dúvida, Deus respondeu à oração de Neemias e deu-lhe graça aos olhos do rei, que o nomeou, imediatamente, como governador da Judeia, dando-lhe autoridade e os meios para reparar os muros de Jerusalém.

Estilo de liderança. A maneira violenta com que Neemias tratou os homens casados com mulheres estrangeiras tem sido alvo de muitas críticas. Alguns o consideram um líder cruel e antiético, um homem “raivoso, despótico e sem tato”.[8] Apesar de seu caráter impetuoso, não se pode negar que Neemias teve sucesso em enfrentar o conflito e era temente a Deus, benevolente e altruísta. Um líder apegado aos mandamentos estabelecidos nas Sagradas Escrituras (Ne 1:7), que orava frequentemente (Ne 1:4, 6, 11; 2:4; 4:9) e tinha compaixão de seu povo (Ne 1:4).

Em suma, a paciência, mesmo do líder mais devoto, tem limites. Certamente, isso não deveria nos tornar violentos. Nesse caso, aprendemos por contraste. É importante destacar que a Bíblia registra as ações positivas e negativas dos heróis da fé, e isso se aplica a Neemias. No entanto, certamente sua história provê reflexões úteis que nos ajudarão a lidar com os conflitos atuais.

RICARDO NORTON diretor do programa hispano de doutorado em Ministério na Universidade Andrews

(Artigo publicado na edição de setembro-outubro de 2020 da revista Ministério)

[1] A raiz etimológica dessas palavras vem do termo grego autokrateía, que significa “poder independente”, “poder autossustentável”.

[2] Dimensões da muralha em metros: comprimento, 4.018; altura, 12; largura, 2,5.

[3] A fama de Neemias como líder pode ser vista na quantidade de livros, artigos, teses de doutorado e sermões sobre sua liderança.

[4] Esse serviço religioso para a dedicação de um muro é o único registrado nas Escrituras.

[5] Essa expressão implica o uso da força física, que Neemias estava disposto a usar, quando colocou pessoas armadas com espadas, lanças e arcos para proteger a construção das muralhas e confrontou os judeus casados com mulheres estrangeiras (Ne 4:13-18; 13:25).

[6] É evidente que o trabalho de Neemias como governador e o de Esdras como sacerdote convergiram, pois ambos aparecem juntos exercendo suas responsabilidades civis e religiosas em favor do povo de Deus (Ne 8:9; 12:26-36).

[7] Em seu diálogo com o rei e a rainha, Neemias estabeleceu um tempo para retornar ao serviço do palácio. Depois de 12 anos como governador da Judeia, ele voltou a Susã para servir ao rei (Ne 5:14). Ao ouvir que o povo havia retornado aos seus maus caminhos, ele pediu permissão para voltar a Jerusalém (Ne 13: 6-7).

[8] Esses defeitos de Neemias foram considerados por Pfeiffer como “suas melhores qualidades”, ver George Buttrick (org.), The Interpreter’s Bible Commentary (Nashville, TN: Abingdon, 1978), v. 3, p. 808, 809.

Última atualização em 28 de dezembro de 2020 por Márcio Tonetti.