Fé e poder

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Como o cristão deve se posicionar na intersecção entre religião e política

Marcos De Benedicto

Imagem: Adobe Stock

O ano de 2024 é excepcional para a política, pois houve ou haverá eleição em cerca de 90 países, inclusive nos Estados Unidos, a nação mais poderosa do globo, e na Índia, o país mais populoso. Houve também eleições parlamentares da União Europeia, um experimento interessante que começou mais tecnocrático e passou por um processo de politização. Tudo isso envolverá mais ou menos a metade da população mundial, o que significa bilhões de pessoas.

Conforme observou a revista Time, “2024 não é apenas um ano eleitoral, mas talvez seja o ano eleitoral”. Nem todas as eleições serão presidenciais; haverá votações legislativas, regionais e municipais, como é o caso do Brasil. Mas, independentemente do tipo de eleição e do fato de que alguns sufrágios não são democráticos, esse momento é decisivo.

De que maneira os cristãos, e especificamente os adventistas, devem se relacionar com a política? É possível ser adventista e político? Que tipo de candidato merece nosso voto? Qual era o pensamento de Ellen White e dos pioneiros sobre a política? O que diz a Bíblia sobre o tema?

Visão bíblica

A Bíblia não é um livro sobre política, mas tem muitos conceitos envolvendo política, como terra, reino, rei, governador, autoridades, imperialismo, invasão, guerra, diplomacia, administração, imposto, perseguição, prisão, justiça… Desde que o mundo começou, a política (no sentido amplo) vigora por aqui, e temos que conviver com a boa, a má e a péssima política, o que é refletido em nosso livro sagrado.

Há vários nomes que brilharam na esfera pública: José no Egito, Moisés no êxodo, Josué na conquista da terra, Débora e Samuel como juízes, Davi e Salomão nos palácios de Israel, Daniel em Babilônia, Ester e Mordecai na Pérsia, Neemias na reconstrução de Jerusalém… Essas personalidades, entre outras, mostram que é possível fazer política e obter resultados para a coletividade mesmo sem ser um político profissional.

Também observamos posicionamentos políticos corajosos e admiráveis, alguns exemplificando a desobediência civil. Podemos mencionar os jovens hebreus que, além de resistirem à perda da identidade representada pelos novos nomes teofóricos (referentes a Deus ou deuses) que receberam em Babilônia, ousaram dizer ao rei que Deus poderia livrá-los da fornalha de fogo ardente, mas, se tivessem que morrer, continuariam firmes (Dn 3:16-18); João Batista, ao criticar o relacionamento ilegal do rei Herodes com sua cunhada (Mc 6:16-18); Jesus, ao dizer que devemos dar ao imperador o que é do imperador e a Deus o que é de Deus (Mt 22:21); e Pedro e os apóstolos, ao afirmarem que é mais importante obedecer a Deus do que a qualquer autoridade humana (At 5:29).

Em Romanos 13, Paulo reconheceu o papel das autoridades para manter a ordem, promover o bem e combater o mal. Os agentes públicos foram instituídos por Deus e são instrumentos divinos. No versículo 6, o apóstolo os classifica como “ministros de Deus”. A palavra “ministros” em grego é leitourgoi, termo ligado a liturgia, o que reveste a função de certa sacralidade. O leitourgos público é um oficial de Estado a serviço de Deus, assim como o leitourgos religioso é um ministro de Deus no templo.

No entanto, a visão do apóstolo era mais ampla. Ele defendia uma dupla cidadania: a terrena e a celestial. Em Cristo Jesus, já somos cidadãos do Céu (Fp 3:20; cf. Hb 11:13-16). Assim, a cidadania eterna tem prioridade sobre a efêmera. Embora ainda estejamos no mundo, nossa lealdade, nossos valores e nosso destino estão enraizados no Céu, impulsionando-nos a viver de maneira que reflita a glória e a esperança desse reino.

Isso reflete o pensamento dos autores do Antigo Testamento, para quem Deus está acima de todos os poderes e reinos. “O Senhor governa todas as nações; a Sua glória está acima dos céus”, poetizou o salmista (Sl 113:4, NTLH). “Não há ninguém como o Senhor, nosso Deus, que tem o Seu trono nas alturas, mas Se inclina para ver o que há no céu e na Terra” (v. 5, 6).

Numa espécie de filosofia da história pela perspectiva divina, Daniel disse que é Deus quem “remove reis e estabelece reis” (Dn 2:21). Essa passagem ressalta a soberania de Deus sobre os assuntos do mundo, incluindo os líderes políticos. Deus tem o poder de derrubar governantes e colocar outros em seus lugares. Isso mostra que as nações e as autoridades estão sujeitas à vontade do Altíssimo e à Sua capacidade de intervir na história humana.

Embora ainda estejamos no mundo, nossa lealdade, nossos valores e nosso destino estão enraizados no Céu, impulsionando-nos a viver de maneira que reflita a glória e a esperança desse reino

No fim dos tempos, segundo Apocalipse 13, os poderes imperiais perseguirão o povo de Deus. As duas “bestas” são monstros híbridos que violam a ordem da natureza e agem como instrumentos do mal. Esse é um claro exemplo de que os poderes políticos podem se tornar totalitários. Os governos são coercivos por natureza, mas alguns se tornam muito agressivos. Quando eles ultrapassam os limites da arrogância e da violência, Deus precisa intervir. Ao longo da história, por permissão divina, cada império global foi substituído por outro. Mas, no estágio final, os monstros imperiais terão um DNA maligno tão acentuado que serão destruídos. A política terrestre terminará, para abrir lugar para a “política” celestial.

Enfim, a Bíblia vê a política por um ângulo transcendente, no contexto do conflito entre o bem e o mal. Os autores bíblicos não estavam muito interessados na política do dia a dia, mas na grande política em relação ao povo de Deus e ao destino da humanidade. Sua perspectiva é apocalíptica, que vai além da política, e seu foco é a intervenção cósmica de Deus, que destaca a vitória divina. Por isso, há muitas referências aos grandes impérios, como Egito, Assíria, Babilônia, Média­- Pérsia, Grécia e Roma. No fim, em todas as interações entre Deus e os poderes terrenos, o Rei dos reis prevalece.

Pensamento adventista

A Igreja Adventista surgiu em meados do século 19 com uma grande desconfiança da política, até porque sua escatologia vislumbrava riscos e ameaças no horizonte. Nos anos 1850, ainda havia certa rejeição ao voto. Depois, as coisas foram mudando. Entre a defesa de uma separação radical entre religião e política defendida por pioneiros como Tiago White, Uriah Smith e Alonzo T. Jones, o ponto de equilíbrio veio com Ellen White, que via dois tipos de Estados: um benigno, quando mantém a ordem e possibilita a pregação do evangelho, e outro maligno, quando restringe a liberdade e se torna uma besta perseguidora. Com o tempo, a igreja acabou se firmando em alguns pilares básicos.

 Legitimidade dos governos. Com a redução natural em seu nível de apocalipticismo inicial, a tensão entre o adventismo e os poderes terrenos diminuiu. Em tese, os governos passaram a ser vistos como instrumentos do bem. Em 1911, Ellen White registrou: “Devemos reconhecer o governo humano como uma instituição designada por Deus e ensinar obediência a ele como um dever sagrado, dentro de sua legítima esfera. No entanto, quando suas exigências se chocam com as reivindicações divinas, temos que obedecer a Deus, e não aos homens” (Atos dos Apóstolos [CPB, 2021], p. 44).

 Separação entre Igreja e Estado. Política e religião não devem se misturar. É claro que, na prática, as duas interagem com frequência. Mas o ideal é manter a separação, embora sem hostilidade e com a possibilidade de cooperação quando isso for do interesse público e não comprometer a fé. Ainda no início do movimento adventista, esse pilar foi bem estabelecido. “A união da Igreja com o Estado, não importa quão fraca seja, embora pareça aproximar o mundo da igreja, na realidade, apenas leva a igreja para mais perto do mundo”, afirmou a escritora inspirada (O Grande Conflito [CPB, 2021], p. 253).

O teólogo puritano Roger Williams (1603-1683), o quaker William Penn (1644-1718) e o ministro batista Isaac Backus (1724-1806) foram vozes heroicas em favor da liberdade religiosa e da separação entre Igreja e Estado. Na Igreja Adventista, esse papel coube principalmente a Alonzo T. Jones (1850-1923), que em 1888 fez uma brilhante defesa da separação entre Igreja e Estado perante uma comissão do Senado norte-americano. Ele defendeu que as leis civis não devem favorecer uma religião específica ou um dia de guarda particular e que todos devem ter o direito de praticar sua fé livremente, sem interferência do governo. Os argumentos dele podem ser conferidos em A Lei Dominical Nacional (Adventist Pioneer Library, 2016).

 Defesa da liberdade religiosa. A liberdade é uma dádiva concedida por Deus e não pode ser violada nem forçada, pois, caso contrário, não seria liberdade. O ser humano é como um pássaro nascido para voar em céus infinitos, desenhando trajetórias únicas no horizonte da existência. Assim como o vento sopra livremente e molda as paisagens, a liberdade permite que cada pessoa explore seu próprio caminho, guiada pela bússola da consciência e dos valores divinos. Por isso, a liberdade religiosa é inegociável. O Estado deve ser laico, mas precisa garantir a todos o direito de adorar ou não adorar.

A história da liberdade religiosa é marcada por uma evolução complexa ao longo dos séculos. A Reforma Protestante teve um papel crucial. Nos séculos 18 e 19, o Iluminismo introduziu novas ideias sobre direitos individuais. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda da Constituição, ratificada em 1791, é um marco fundamental, garantindo que o governo não poderia estabelecer uma religião oficial nem impedir o livre exercício das crenças religiosas. Esse princípio influenciou muitas outras nações e se tornou um pilar das democracias modernas.

Para Alonzo T. Jones, na defesa da liberdade religiosa, destacam-se os nomes de Martinho Lutero e Roger Williams, que “deram de novo ao mundo, e para sempre, os princípios originalmente anunciados por […] Jesus Cristo, o Autor da Liberdade Religiosa” (The Two Republics [Review and Herald, 1891], p. 662).

Os adventistas adotaram essa bandeira, criaram uma revista para defender o direito de adoração, a Liberty (libertymagazine.org), e até hoje mantêm uma associação para lutar pela liberdade religiosa para todos (irla.org). “A bandeira da verdade e da liberdade religiosa levantada pelos fundadores da igreja cristã e pelas testemunhas de Deus durante os séculos decorridos desde então foi entregue em nossas mãos neste último conflito”, afirmou Ellen White (Atos dos Apóstolos [CPB, 2021], p. 44).

Infelizmente, o mundo tem testemunhado vários ataques à liberdade de crença. Intolerância, discriminação, legislação restritiva, controle estatal, pressão social e cultural, perseguição e violência são apenas algumas dimensões do problema. No âmbito global, de acordo com o World Watch 2024, “mais de 365 milhões de cristãos sofrem altos níveis de perseguição e discriminação por causa de sua fé” (link.cpb.com.br/ead405). No último ano, 4.998 cristãos foram mortos por motivos religiosos. A liberdade religiosa corre risco!

 Postura apartidária. Os adventistas têm, ao mesmo tempo, uma história de participação social e distanciamento político. Numa carta escrita na Austrália, em 1898, Ellen White orientou: “Não devemos, como um povo, envolver-nos em questões políticas”. A atitude de neutralidade partidária ainda perdura. Envolver-se com política e partidos, além de desviar o foco da missão, seria um risco de comprometer os princípios.

A igreja não se envolve na política, mas não proíbe os membros de fazê-lo. Em 1884, na Faculdade de Battle Creek, Ellen White declarou que não há nada de errado na aspiração da juventude de “poder assentar-se em conselhos deliberativos e legislativos, cooperando na elaboração de leis para a nação” (Fundamentos da Educação Cristã [CPB, 1996], p. 82). Porém, se algum funcionário da organização (administrador, educador ou pastor, por exemplo) desejar entrar para a política e se candidatar, deve deixar a função. Não é possível, ao mesmo tempo, manter a credencial de obreiro e buscar o diploma de eleito.

No mesmo espírito apartidário, a igreja também evita a polarização, eleita a palavra do ano de 2023 na Espanha. Países como o Brasil e os Estados Unidos estão mais divididos do que nunca. A tribalização na política é imensa e intensa. A polarização, cada vez maior, tem um componente emocional mais acentuado, a chamada “polarização afetiva”, termo cunhado por Shanto Iyengar, professor de ciência política da Universidade de Stanford. Para Lilliana Mason, autora de Uncivil Agreement (University of Chicago Press, 2018), a polarização nos Estados Unidos saiu da arena das ideias políticas e entrou no campo dos sentimentos. Nesse cenário polarizado e tóxico, cheio de medo, raiva e hostilidade, o cérebro perde a capacidade de analisar objetivamente as ideias dos oponentes.

 Voto consciente. A igreja não permite campanhas em seus espaços oficiais, mas orienta os membros a votar em candidatos honestos e éticos, com bom histórico, que promovam os valores bíblicos, defendam a família e a vida, combatam os vícios e a imoralidade, preservem a liberdade e trabalhem pelo bem da sociedade. É importante também escolher candidatos comprometidos com a democracia e que não sejam manipuladores, demagogos nem populistas. A política tem que ser pautada pela ética e os interesses públicos.

Os adventistas têm, ao mesmo tempo, uma história de participação social e distanciamento político

Ao redor do mundo tem aumentado o número de candidatos com traços obscuros de personalidade. “Há uma nova ‘raça’ de figuras políticas bem-sucedidas que têm um prazer especial em quebrar as normas políticas e exibir uma personalidade abrasiva e polêmica? Até que ponto a presença de tais personalidades ‘sombrias’ está relacionada ao aumento do populismo e ao uso de campanhas mais negativas e incivilizadas?”, perguntam-se Alessandro Nai e Jürgen Maier em Dark Politics (Oxford University Press, 2024, p. 2), livro destinado a estudar esse fenômeno.

Parece que esse tipo de político veio para ficar, pois a política está mais agressiva. Embora os políticos sombrios possam atrair muitos eleitores, personalidades estáveis transmitem mais segurança. Usar um pouco de psicologia na hora do voto é sinal de inteligência e patriotismo.

Crença no palanque

O mundo está mais complexo, interconectado, dinâmico e instável do que nunca. As mudanças ocorrem em grande velocidade. Isso atinge os valores tradicionais da religião, em especial do cristianismo. Assim, muitos evangélicos entram na política em resposta às ameaças à sua fé e a seus interesses. Quando se unem, obtêm sucesso. No Brasil, tornaram-se visíveis.

Em vários países, os discursos se misturam. Muitas vezes, a religião se une ao nacionalismo, que é uma ênfase exagerada na identidade nacional de um povo e em seu direito de proteger, administrar e fortalecer seu território, sua cultura, sua história, sua ideologia, sua economia, suas instituições e seus recursos, sem interferências externas. Porém, conforme N. T. Wright e Michael F. Bird discorrem em Jesus and the Powers (Zondervan, 2024), a mensagem do reino de Deus confronta os poderes terrenos, mas os cristãos não são chamados para instituir uma teocracia. O reino é para este mundo, mas não é deste mundo.

Há muitos tipos de nacionalismos, como étnico e territorial, mas talvez o mais perigoso seja o religioso, pois ele pode levar a conflitos e perseguições por causa de crenças, gerando divisões profundas e justificando atos de violência em nome da fé. “O nacionalismo cristão refere-se a um conjunto de crenças de que a nação é de, por e para os cristãos”, definem Paul A. Djupe, Andrew R. Lewis e Anand E. Sokhey (The Full Armor of God [Cambridge University Press, 2023], p. 3). Philip Gorski o descreve como uma “espécie de hiperpatriotismo apocalíptico e nativista” (American Covenant [Princeton University Press, 2017], p. viii). Em sua versão mais radical, o nacionalismo cristão tenta cristianizar a política e a sociedade à força. Esse não é o reino de Cristo.

Em meio à secularização crescente, a religião, com seu simbolismo e mensagem de salvação, ainda tem um papel muito relevante na maior parte do mundo. Peter S. Henne explica que, quando a religião tem credibilidade e autoridade moral em um país e existe uma crise internacional carregada de ideologia que ameaça sua identidade e segurança, é provável que o Estado use o apelo religioso como instrumento político para formar coalizões internacionais (Religious Appeals in Power Politics [Cornell University Press, 2023], p. 7, 14). É preciso cuidado para que a política não manipule a religião. Se a religião pode influenciar a política, a política também pode moldar a religião. A interface Igreja/Estado ou religião/
política sempre termina mal.

Com frequência, é difícil manter a confiança na política ou nos políticos. Apesar de suas mazelas, a política é necessária. Mas um dia ela chegará ao fim. Felizmente, algo melhor surgirá: “Mas, nos dias desses reis, o Deus do céu levantará um reino que jamais será destruído e que não passará a outro povo. Esse reino despedaçará e consumirá todos esses outros reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre” (Dn 2:44). Que a nova “política” venha logo! 

MARCOS DE BENEDICTO é editor emérito da CPB e autor do livro Política (CPB, 2022)

(Artigo publicado na Revista Adventista de setembro/2024)

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Última atualização em 13 de setembro de 2024 por Márcio Tonetti.