Fé provada sob mísseis

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Depois do comunismo, adventistas vivem a mais dramática experiência na Ucrânia

Ruben Dargã Holdorf

Foto: Adobe Stock

Aeroporto Internacional Boryspil, 8 horas da manhã de 17 de fevereiro. Guichê da Ukraine Airlines. Sob o balcão, um celular recém-desligado. Minha esposa, Lia, olhava para mim e para a atendente da companhia aérea, quase não acreditando no que acontecia. A jovem tinha uma interrogação sobre a cabeça, esperando uma resposta, solução para o impasse. Ucranianos pacientes em uma fila tornavam o ambiente mais tenebroso. Isso jamais ocorreria em um supermercado. Segundos pareciam horas, mas eu precisava parar e conversar naquele instante. Duas das quatro malas já haviam sido despachadas e não poderíamos encaminhar as outras, tampouco reaver as enviadas à aeronave. Ninguém sabia que atitude tomar.

Olhando para uma janela na fachada do Terminal D, desliguei-me de todos, não escutando a atendente e mais ninguém. Eu almejava receber uma resposta de Jesus. Lá na frente do prédio, a luz do dia iluminava cada vez mais o salão no qual nos debatíamos com uma insana situação. Por que o Senhor permitira nossa missão chegar abruptamente ao fim e, ao tentar sair do país, permanecer retidos por detalhes técnicos, extorsão, cobrança de pedágios? Oito meses antes, bloquearam nossos cartões de crédito. Tínhamos apenas dinheiro e a companhia rejeitava o valor em cash. Naquele instante, fixei-me em Jesus e clamei: “Chegamos aqui pela Sua graça. Cumprimos parte dos objetivos por um milagre. Agora precisamos sair daqui e não temos poder para isso. Mostre, por favor, que nossas vidas são dirigidas por Sua vontade, se devemos continuar na Ucrânia ou ir para a Turquia.”

Voltei à realidade do balcão da companhia aérea e vi a atendente em pé solicitando se alguém poderia fazer o pagamento com cartão de crédito para nos liberar e que devolveríamos imediatamente o valor em euro, e não em grívnia, a unidade monetária ucraniana. Após três pedidos em alto e bom som, eis que surgiu uma jovem sorrindo e entregou o cartão à atendente. Realizada a operação, passei 120 euros para as mãos dela, agradecendo de coração pela imensa bondade demonstrada, e as malas seguiram para o destino. Mas o drama continuaria. A atendente nos pediu para preencher um documento do Ministério da Saúde da Turquia – que jamais seria solicitado no Aeroporto de Istambul. E deveria ser on-line. Iniciamos o procedimento e o site travou. Então nos encaminharam a uma empresa, que desbloqueou o documento e concluiu o preenchimento. Não sem antes nos cobrarem 800 grívnias, outro pedágio para sairmos do país, equivalente à metade de nossas compras a cada semana. Embarcamos faltando poucos minutos antes do voo, depois de uma “sessão de massagens” junto a um integrante do exército.

Objetivos da missão

Em frente ao Palácio Maryins’kyi, sede do governo ucraniano. Ao fundo, a Rada, parlamento dos deputados. O palácio foi construído por Catarina, a Grande, no século 18. Foto: Arquivo pessoal

Chegamos a Butcha, cidade-dormitório a 17 quilômetros ao noroeste da capital, Kyiv, em 3 de junho de 2021 – sim, é assim que se escreve, e não como a palavra russa “Kiev”. Afinal, o idioma oficial é o ucraniano, e se sente orgulho de registrar “Kyiv”. Antes da viagem, eu sabia que minhas atribuições se resumiriam a estruturar o laboratório da redação para a prática profissional dos alunos de Jornalismo e estudar ucraniano. Todavia, menos de um mês depois de nos estabelecermos no campus do Instituto Ucraniano de Humanidades (UGI), a diretora do Departamento de Jornalismo, doutora Iryna Grinenko, solicitou demissão. Essa atitude mudou minhas atribuições, deslocando-me surpreendentemente para a sala de aula, mesmo sem dominar os idiomas, mas sujeitando-me a dar a disciplina em espanhol, com interpretação para o russo, e o material didático de apresentação em inglês. Desse modo, assumi a matéria História do Jornalismo Estrangeiro, lecionando entre a última semana de setembro e a véspera do Natal, com interpretação da professora Maria Alekseikyna. Outra tarefa me designava a promover parcerias de intercâmbio com cursos de Comunicação das Universidades de Montemorelos (UM), Peruana Unión (UPeU) e Del Plata (UAP).

Em momento algum, antes de sair do Brasil, recebi a informação de que o curso poderia fechar as portas em decorrência da avaliação realizada pelo Ministério da Educação e Ciências no início de 2021, cujo conceito concedido garantia apenas um ano de vigência para o Departamento de Jornalismo corrigir os itens reprovados. Recebi já na Ucrânia esta informação. Felizmente, conseguimos contribuir para o envio de documentos à Comissão de Acreditação do governo e participamos da reunião com os avaliadores em 21 de dezembro. Em 10 de janeiro, recebemos a informação de que a Comissão de Acreditação concederia um B (bom, equivalente ao conceito 4 no Brasil) para o curso de Jornalismo. Oramos por essa conquista e o Senhor abençoou a todos. Pouco mais de um mês adiante, em 15 de fevereiro, o ministério da educação recredenciou o curso de Jornalismo. Nessa mesma semana, a doutora Halyna Kushnir, diretora do departamento, apresentou o projeto de prática profissional para todos os alunos. Desde novembro, as aulas de Jornalismo continuavam a distância, apesar de não haver lockdown no país e nem os outros cursos deixarem de oferecer aulas presenciais para os estudantes.

Não foi nada fácil me ajustar à organização curricular do UGI. Ofertam-se matérias aos alunos por módulos. Esses módulos têm uma data-limite para as apresentações de trabalhos, seminários e exames. Contudo, enquanto o docente desenvolve o conteúdo, os horários e dias de aulas podem mudar de semana para semana, segundo ajustes promovidos pelo decanato. Se um professor necessita realizar outra atividade, solicita a transferência das aulas para outras semanas, causando mudanças nos horários e dias de outros docentes e cursos. Parece estranho para nós, mas professores, alunos e funcionários se acostumaram ao estilo modular flexível. Os alunos podem fazer cursos intensivos, de apenas seis aulas, e receber os devidos créditos das matérias escolhidas. E os professores precisam resumir as 15 a 20 aulas do módulo em apenas seis.

Particularidades

Adaptar-se a outra cultura requer muito mais do que simples encaixes em processos administrativos. Isso envolve estilo de vida, relacionamentos, tecnologia, alimentação, comunicação, modos de abordagem, vestuário e outras áreas mais ou menos destacadas. Durante o tempo de permanência na Ucrânia, carregamos para o apartamento 1.215 litros de água potável em galões de cinco litros.

Na região de Kyiv, a água é imprópria para o consumo, pois acusa a presença excessiva de ferro e magnésio. Então, a necessidade de um filtro apropriado se torna imperativa e vital para a saúde. Como não tínhamos filtro na cozinha, pegávamos água na fonte junto ao prédio do restaurante do instituto, duas ou três vezes por semana.

A lei não permite que os estrangeiros adquiram veículos. É necessário usar subterfúgios para ter um carro. Primeiramente, conquista-se a confiança de um ucraniano, que se prontificará a registrar o veículo em seu nome, assinando compromisso em cartório com seguro para casos de acidentes. Diante dessa barreira, optamos por melhorar a saúde, caminhando os seis quilômetros de ida e volta até o supermercado mais próximo. Eu completei pouco mais de 450 quilômetros, e minha esposa conseguiu ultrapassar os 400 quilômetros entre o instituto e a zona comercial, ou o Parque Municipal. Ainda no verão, compramos duas patinetes elétricas e os equipamentos sobressalentes de segurança. À primeira vista, alguns podem se assustar, mas é muito seguro pedalar e usar as scooter nas vias de Butcha. Na capital, a moda de usar patinetes se tornou tão comum, que a prefeitura estudava emitir um projeto de lei regulando o uso dos veículos elétricos individuais de baixa potência. Ao contrário do que ocorre no Brasil, em cruzamentos e pontos específicos assinalados com placas de trânsito, pisar na faixa faz com que os veículos parem de circular. O respeito pelos pedestres se mostra parte da cultura contemporânea ucraniana.

Nosso apartamento tinha menos de cinquenta metros quadrados, mas era o suficiente. A primeira conclusão dos benefícios da missão revelava não ser necessário residir em casas com cem ou mais metros quadrados. Vivíamos felizes e com propósito delineado na kitinete cedida pelo instituto. O missionário mexicano Emílio Sobrino, um dos auditores do escritório da Divisão Euroasiática, situado no campus, aconselhou-nos a comprar um freezer, pois as frutas desapareceriam ou teriam os preços quadruplicados a partir do início do inverno. Então, instalamos o aparelho na cozinha e o abastecemos, congelando frutas, legumes, ovos, leite, iogurte, pães e bolos. Isso se revelou prudente para os eventos a partir de fevereiro.

Em julho, a professora Svitlana Romantchuk, que lecionava ucraniano, informou-nos a respeito do início das estações em datas diferentes daquelas aprendidas nos livros de geografia no Brasil. Os ucranianos têm outra percepção sobre as estações. O outono começa em 1º de setembro, o inverno em 1º de dezembro, a primavera em 1º de março e o verão em 1º de junho. O incrível aconteceu. Em 31 de agosto fazia quase 30 graus Celsius. No dia seguinte, choveu muito, a temperatura despencou 15 graus, e não subiu mais até depois de deixarmos o país. A primeira neve se precipitou em 23 de novembro. Entretanto, a partir de 1º de dezembro começou a nevar e não parou mais, fazendo as temperaturas baixarem mais ainda, atingindo os 15 graus negativos.

Durante parte do verão e ao longo do outono, o país sofreu diversos apagões provocados pelo boicote russo no fornecimento de gás.

Mesmo com roupas apropriadas, percebemos que o sistema de calefação do apartamento poderia sofrer avarias, e a crise do gás atingiria em algum momento o instituto. Durante parte do verão e ao longo do outono, o país sofreu diversos apagões provocados pelo boicote russo no fornecimento de gás. Chegamos a ficar mais de uma semana sem conseguirmos tomar banho de água quente durante dias muito gelados do outono. Então tivemos a ideia de adquirir sacos de dormir resistentes a temperaturas negativas para as noites nas quais a caldeira deixasse de funcionar. Em qualquer emergência, vestiríamos as roupas de inverno e entraríamos nos sacos. Felizmente, não necessitamos desse expediente.

Questão de caráter

Somada à educação no trânsito, não obstante a alta velocidade empregada por muitos motoristas, a honestidade emerge como reflexo do caráter ucraniano. Contaram-nos que objetos esquecidos não são tocados por terceiros. Percebemos esse aspecto em diversos momentos. Esqueci meu pendrive conectado ao computador em uma sala de aula. Voltei para buscar o dispositivo quatro dias depois e o encontrei no mesmo lugar. Junto ao supermercado no qual costumávamos fazer as compras semanais, havia uma mesa ao lado das portas de saída do estabelecimento. Sobre ela, comumente aparecia algum objeto esquecido pelos clientes. Ninguém tocava, e ali permaneciam dias, semanas.

Um sábado, ao sairmos depois do almoço para aproveitar os já escassos dias de luz solar, minha esposa perdeu os taquinhos das botas calçadas. Ao pegar as botas no sapateiro, perguntei o valor do trabalho e lhe entreguei uma nota de 500 grívnias, segundo havia compreendido. O homem balançou negativamente a cabeça, devolveu a nota e me solicitou uma nota de 200 grívnias. Então compreendi que o trabalho custara 180 grívnias. Se ele fosse desonesto, teria se aproveitado da minha ignorância linguística e cobrado qualquer outro valor.

Os funcionários da instituição não mediram esforços para nos ajudar durante a adaptação no país. Alla Petrivn, chefe do RH, desdobrou-se para conseguir nossos cartões de permanência no país e o direito à vacina contra o coronavírus. Além das constantes peregrinações aos ministérios, Alla se dispôs a nos levar às clínicas, até que recebêssemos os cartões de identificação, as doses de vacinas e os comprovantes. Em outubro, ela se mostrou novamente determinante na mudança da docente que nos ensinava ucraniano. Como chegaram muitos estrangeiros, o instituto nos conduziu à professora Alina Shevtchuk e à tutora Nastasiya Ivontchak. Essa nova perspectiva tornou o aprendizado mais prático, concedendo dinâmica e sentido à relação com as docentes.

A princípio, tivemos dificuldade, mas nos acostumamos a almoçar depois das duas horas da tarde. Não bastasse o horário, os ucranianos comem muito rápido. Visitar outras pessoas significa se acostumar a levar algo para complementar a refeição e, se possível, uma recordação para os anfitriões. À entrada das residências, deixam-se não apenas casacos, mas principalmente os calçados em local apropriado. Nem todos usam faca à mesa, e isso torna a refeição desafiante. Em geral, há muitos pratos à mesa, começando pela sopa “borshtch”, à base de beterraba, e finalizando quase sempre com um produto de confeitaria. É preciso conversar e se alimentar, pois alguém tentará retirar o seu prato. Deve-se observar o ritmo dos anfitriões e acompanhá-los na mesma velocidade.

No início de julho, Emílio nos emprestou seu carro, pois voltaria ao México de férias durante dois meses. Saímos pouco com o Ford Fiesta, uma vez ao Shopping Lavina, em Kyiv, e duas outras ao Supermercado Novus, no Centro de Butcha. Ao final da segunda semana, dirigimo-nos ao Shopping Passaj para comprar vestuário de inverno. Ao tentar ligar o carro, não aconteceu nada. A bateria estava totalmente arriada, morta. Nenhum sinal de energia. Conferi as horas: 17 horas de uma sexta-feira. Liguei para o auditor argentino, Boris D’Agostino. Ele me retornou a mensagem e disse que estava na capital. Acionei o grupo da Escola Sabatina. Nada. Até que me garantiram que o vice-presidente do instituto, pastor Sergiy Omeltchuk, iria nos socorrer.

Meia hora mais tarde apareceu a van vermelha com teto branco, única na região. Junto ao pastor Sergiy, outro pastor, o capelão das faculdades, Oleg Vasylenko, esposo de Irene, secretária do presidente do campus e da reitora. Oleg também é engenheiro de computação e entende de muitas coisas. Fizeram todas as tentativas possíveis, mas o Fiesta continuava em silêncio. Rebocar o veículo até o pátio do UGI se tornou a melhor solução. Uma aventura! Hoje sei por que muitas vezes sofri com automóveis no Brasil. O Senhor me preparava para esse momento. A van rebocou o Fiesta. Não foi fácil dirigir um veículo com volante hidráulico e sem bateria. Isso me exigiu muita força e atenção. Os pastores estavam apavorados, achando que eu provocaria um acidente a qualquer instante. Por meio do celular, Oleg me posicionava nos cruzamentos, semáforos, mudanças de direção, freadas repentinas. Mesmo sendo o vice-presidente da maior instituição adventista de ensino superior da Europa, Sergiy não se negou a atender uma emergência próximo ao pôr do sol de uma sexta-feira.

Os funcionários da instituição não mediram esforços para nos ajudar durante a adaptação no país.

Quanto aos cumprimentos pessoais, resumem-se a no máximo em apertos de mãos, jamais em abraços. Um homem não saúda uma mulher que esteja sozinha e não seja do seu círculo de amizades. Isso inclui professoras, alunas e funcionárias. Não significa que eles não gostem de abraços. Ao conhecerem os costumes brasileiros, eles fazem questão de sempre nos abraçar. Beijinhos, jamais!

Panorama histórico

O atual mapa da Ucrânia é uma configuração geográfica que nunca existiu. Os ucranianos jamais tiveram um território tão extenso. O país se localiza no entroncamento entre Ocidente e Oriente, cujas terras os mongóis invadiram há séculos, assim como otomanos, alemães nazistas, romenos, austro-húngaros, franceses, poloneses, lituanos e, claro, russos, ao longo de períodos de dominação, escravidão, genocídio.

Em meados do século 19, Taras Shevtchenko estabeleceu os parâmetros da literatura ucraniana e sistematizou o que poderia se tornar uma desejada federação de estados eslavos, imaginando a criação da Ucrânia (do eslavônico, “fronteira”). Diante da revolução bolchevique que deu termo ao império russo em 1917, os nacionalistas ucranianos se animaram e proclamaram a independência da República Popular Ucraniana, seguidos pela independência do Rada Central, Hetmanato, Diretório e República Popular Ucraniana Ocidental. Com o fim da guerra entre poloneses e soviéticos, parte desse território se tornou posse da Polônia, parte dos soviéticos. Acabava em 1922 o sonho da Ucrânia livre, soberana.

Filho de um sacerdote greco-católico, Stepan Bandera planejava a Ucrânia livre do comunismo. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, ele comandou as forças nacionalistas e, em 1959, a KGB (serviço secreto soviético) o assassinou em Munique. Acusado de antissemitismo, por causa de sua ligação com os nazistas, Bandera se tornou o símbolo da Plastovyi, organização assemelhada aos escoteiros, mas com orientação ideológica voltada ao preparo de novos cidadãos com espírito nacionalista e patriótico, sob a égide da Igreja Greco-Católica Ucraniana (Uniata). Aliados a outros movimentos da extrema-direita, tal como o Pravyi (Direita) Sector, essas facções militarizadas tiveram importante papel nos protestos de 2013-2014, conhecidos como Euromaidan, cuja consequência provocou o abandono da presidência por Viktor Yanukovitch. Não houve golpe de estado, mas uma deposição do governante por vontade popular. Em seguida, Petro Poroshenko venceu as eleições de 2014 e tratou de modernizar a Ucrânia, criando pela primeira vez um exército oficial.

Cansados dos altos índices de corrupção no país, os ucranianos elegeram o judeu Volodymyr Zelensky em 2019, nomeando outro judeu como primeiro-ministro, Denys Shmigel. Zelensky continuou o processo de modernização, ocidentalização, inserção ucraniana gradativa em órgãos europeus. Celeiro da Europa, países como a Espanha dependem totalmente da importação de cereais ucranianos. Apesar da pandemia, a Ucrânia não deixou de trabalhar. Segura, não obstante os movimentos políticos extremos, sem desemprego visível, mas com um abismo socioeconômico avassalador.

Em 24 de agosto, presenciamos a organizada festa do trigésimo ano da independência. Mais de um milhão de pessoas se concentraram na área da Maidan (Praça da Independência) e com civilidade e sentimento patriótico comemoraram a merecida liberdade. Mal sabíamos o que nos preparava o outro lado da fronteira, em silencioso movimento.

Nesse cenário de liberdade, a Igreja Adventista do Sétimo Dia aproveitou para crescer, estabelecendo em 1999 três cursos superiores no UGI. Em fevereiro de 2022 havia dez cursos, tornando o UGI a maior instituição adventista do gênero na Europa. Em 2009, com a participação do pastor brasileiro Jonatan Conceição, iniciou-se a transmissão dos programas do Telekanal Nadiya (Esperança) – Hope Channel Ukraine – em russo e ucraniano. Um hospital, um spa, um acampamento e 784 congregações, com cerca de 45 mil membros, complementam a segunda maior representação eclesiástica adventista europeia.

Tempos difíceis

Mal se iniciaram as aulas, comparecemos à cerimônia fúnebre de um aluno de Filologia, em 15 de setembro. Dois dias antes, ouvimos o choro de uma aluna logo abaixo de nossa janela. Depois soubemos que um aluno havia morrido no campus. Ele sofreu uma parada cardiorrespiratória e os médicos não conseguiram reanimá-lo. Comovidos, alunos homenagearam o ex-colega diante da mãe e irmãos.

A nova geração começa a ter uma ideia das agruras sofridas pelos pais, avós e demais antepassados ao longo do período de dominação comunista da Ucrânia. Em 1932 e 1933, o ditador Josef Stalin confiscou as terras dos ucranianos, cooperativas, fazendas produtivas e os isolou do mundo, provocando o genocídio chamado “Holodomor” (“Grande Fome”), que assassinou mais de dez milhões de ucranianos. Na lista de vítimas se encontram dois parentes distantes: Gottfried Bogner e sua mãe, Dorothea, mortos em 1932. Seis anos depois, morreu o pai, Daniel, assassinado por ocasião de outro expurgo provocado pelo partido comunista.

A fidelidade dos membros se fortaleceu durante o tempo da igreja subterrânea, fazendo-a multiplicar o número de novos adventistas. Depois da independência e do fim do comunismo, a membresia tratou de aproveitar cada minuto do tempo de liberdade para prosperar em instituições nunca imaginadas como possíveis ao longo do obscurantismo soviético.

Pouco mais de trinta anos depois da independência, alunos, professores e funcionários do UGI acordaram assustados às 5h20 da quinta-feira 24 de fevereiro. Eles escutavam o pipocar das balas, e o estrondo das bombas na invasão do Aeroporto Antonov, a cinco quilômetros do instituto.

O presidente do campus, pastor Andriy Shevtchuk, com o auxílio dos demais membros do staff, organizou a evacuação dos alunos, professores e funcionários. Rapidamente conseguiram encaminhar os estudantes para suas casas e preparar dois ônibus, conduzindo alguns professores e funcionários com familiares para a região ocidental do país. No campus permaneceram o pastor da Igreja dos Estudantes, o romeno Mykhailo Skrypkar, e dois funcionários. Em razão do aumento e da violência das batalhas em Butcha, adventistas residentes no entorno buscaram segurança junto ao campus. Outros funcionários retornaram também, e o número de refugiados se elevou a 160 pessoas. No dia seguinte, a previsão do estoque baixou para apenas três dias. Então, contatei o pastor Andriy e pedi para ele informar e autorizar o pastor Mykhailo a entrar em nosso apartamento e pegar todo o alimento disponível, ato seguido pelos outros missionários que haviam evacuado dois dias antes de nós.

Em 2 de março aconteceu um milagre em meio às batalhas e à falta de combustível. Duas pessoas transportaram com suas vans alimento suficiente para mais algumas semanas. Porém, na manhã seguinte, 3 de março, tropas tchetchenas dispararam morteiros sobre o campus, mas não feriram uma pessoa sequer.

Um estudante do último ano de Filosofia/Teologia e Jornalismo, Oleksandr Dar’yenko, saiu com o comboio para o Oeste. Ele relatou que a caravana chegou “a um lugar seguro, mas tivemos um grande estresse”. Sabendo da chegada de alimentos em Butcha, Dar’yenko agradeceu as orações da igreja em todo o mundo, crendo que o Senhor “protege e ajuda. E isso pode ser visto em diferentes detalhes e aspectos. Apesar dos tiros, em silêncio ouvimos os pássaros cantando”.

A doutora Halyna morava em Kharkiv, a qual os russos cercaram e sobre a qual despejaram uma chuva de mísseis, inclusive sobre um hospital e uma maternidade. A professora tem duas crianças e está grávida de oito meses. Enviei-lhe mensagem, aconselhando-a a fugir da cidade. Ela me respondeu afirmando estar com medo, pois “ninguém sabe o que fazer agora”. No dia 3, soube que ela conseguiu escapar de Kharkiv e alcançar o Oeste. Um milagre, haja vista haver passado também pelo inseguro entorno da capital.

O doutor Maksym Balaklytskyi também fugiu de Kharkiv, chegando com a família a Lviv, próximo à Polônia. A vice-reitora Valentyna Kurylyak atravessou a fronteira eslovaca e recebeu acolhimento de uma irmã mais nova. O marido não pôde sair, assim como nenhum homem entre 18 e 60 anos de idade deve abandonar a Ucrânia, que impôs a lei marcial, convocando todos para se incorporarem ao efetivo das tropas de acordo com a necessidade. As forças armadas já convocaram muitos estudantes do UGI.

Esses tempos difíceis estimularam muitos a olhar o outro. O pastor Oleg Vasylenko, capelão do ensino superior, também se encontra no Oeste, e garante: Estamos em segurança e tentamos ajudar o máximo aqui.” O pastor Vyatchyslav Kortchuk, doutor em Teologia e chefe do Centro White da Divisão Euroasiática, deixou a aparente segurança de sua casa e se arriscou a voltar ao campus a fim de auxiliar o colega no amparo às famílias adventistas e às pessoas da comunidade, instaladas no UGI.

Componente espiritual

No início de 2022, Vladimir Putin se reuniu com o extremista tchetcheno Ramzan Kadrylov. O líder da Tchetchênia garantiu que suas tropas nunca perderam um homem e prometeu “limpar a Ucrânia dos infiéis”. Em discurso junto ao presidente francês Emmanuel Macron, Putin sublinhou a necessidade de os russos resgatarem o patrimônio espiritual de Kyiv.

O cisma entre os patriarcados de Moscou e Kyiv ocorrido em 2019 contribuiu para a invasão russa. Ao ser reconhecida pelo Patriarcado de Constantinopla, com sede em Istambul, a Igreja Ortodoxa Ucraniana passou a fazer parte do rol de objetivos de Putin. Uma lista divulgada pela imprensa europeia mencionava os alvos a serem eliminados durante a agressão militar: os judeus Zelensky e Shmigel, uma série de parlamentares, prefeitos e presidentes de regiões (as províncias), empresários, jornalistas e líderes religiosos, destacando-se o termo “minorias”. Durante a homilia de missa realizada no domingo, 27 de fevereiro, em Moscou, o patriarca ortodoxo Kirill enalteceu Putin “como o homem de Deus para esse tempo”, aprovando a guerra contra a Ucrânia, pois, afinal, a Igreja Ortodoxa e a Rússia precisam “recuperar o patrimônio espiritual”, repetindo as palavras do governante.

Além dos componentes político, étnico, histórico, ideológico, emerge a justificativa religiosa para matar em nome do poder, vaidade, ganância. Seja qual for o desenrolar dessa guerra, os adventistas construirão outra concepção de mundo em sintonia com a ordem de Jesus para levar o evangelho até que Ele volte e coloque fim a este mundo de pecado.

Novo destino

O avião levantou voo. Um alívio tomou conta do nosso corpo, mas havia um nó no estômago, um coração partido, o sono que não chegava. Corpo em outro país, mente na Ucrânia, orando pelos destemidos irmãos ucranianos. Diariamente oramos para que a vontade do Senhor se materialize na vida de cada um deles, assim como clamamos pela proteção ao presidente Zelensky e sua família.

Não sabemos qual será nosso próximo destino. Escutaremos a “multidão de conselheiros”, a fim de prudentemente continuarmos sendo úteis à igreja segundo as aptidões construídas ao longo de décadas. Ao nos deparar com muralhas, crises, cremos que o Senhor nos capacita para assumir responsabilidades.

RUBEN DARGÃ HOLDORF, jornalista e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, foi missionário na Ucrânia e, por causa da iminência da guerra, foi aconselhado a ir para Istambul, na Turquia

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Última atualização em 8 de março de 2022 por Márcio Tonetti.