Filhos atípicos

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A experiência de ser mãe de crianças com necessidades especiais

Keiny Goulart Oliveira

Imagem: Adobe Stock

“Não a amamos!” A chocante declaração foi feita por um casal que decidiu colocar a filha com autismo para adoção. O relato polêmico, publicado pelo jornal Metrópoles em março, retratou o dilema de uma família que convive com o desafio de educar uma menina de oito anos com autismo severo e transtorno de personalidade.

O caso repercutiu internacionalmente e ainda tem gerado muitos comentários nas mídias sociais. Em uma plataforma virtual, a mãe expôs que não suportava ver os constantes ataques de pânico da filha toda vez que saíam de casa. Mesmo tendo passado por vários psicólogos e psiquiatras, a menina continua agindo da mesma maneira, o que levou a família a tomar uma medida extrema. “É impossível cuidar dela, criá-la e amá-la. Sinto­- me uma péssima mãe por considerá-la a pessoa mais cruel que já conheci”, justificou a mulher ao relatar que essa situação a levou a uma depressão profunda.

De acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), uma em cada 36 crianças recebe o diagnóstico de autismo (para saber mais, clique aqui). No ano 2000, essa proporção era consideravelmente menor: uma a cada 150 crianças. A frequência com que casos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) têm sido identificados, inclusive no Brasil, apresenta muitos desafios para as famílias. Como elas têm lidado com a realidade da maternidade atípica?

Minha experiência pode oferecer uma contribuição valiosa para mães de crianças com TEA ou outras necessidades especiais, auxiliando-as a enfrentar esse desafio sem perder a esperança.

DOIS MUNDOS

Marlon, meu esposo, é natural do Rio de Janeiro, enquanto eu nasci em Santa Catarina. Porém, começamos nosso ministério em Rondônia, na cidade de São Miguel do Guaporé, onde meu esposo serviu como pastor. Nesse período, fomos agraciados com a chegada da Myah, uma garotinha com olhos castanhos brilhantes. O tempo passou rapidamente, e logo planejamos a vinda de um irmãozinho para ela, o Derek, que chegou apenas 1 ano e 6 meses depois.

Os dois irmãos cresciam em estatura e graça perante o Senhor. Como pais cristãos, seguimos o conselho bíblico: “Instrui a criança no caminho em que deve andar, e até quando envelhecer não se desviará dele” (Pv 22:6). Assim, buscávamos cumprir nosso propósito em ensinar a Bíblia e trabalhar ativamente na missão, inserindo nossos filhos em tudo.

A educação da Myah nos fez perceber que o desenvolvimento do Derek não estava progredindo tão bem. Ele alcançou todos os primeiros marcos do desenvolvimento, como engatinhar, sentar-se e caminhar, no tempo certo, mas quando chegou à fala, ela não apareceu, e sua audição parecia não funcionar muito bem.

Suspeitamos que ele pudesse ser surdo, mas quando o volume da TV era reduzido, ele nos olhava com a testinha franzida de indignação. Após uma longa pesquisa, já com 2 anos e 10 meses, em um dia frio na cidade de Curitiba (PR), visitamos o segundo neuropediatra, que observou seus exames de sangue e imagem. O especialista revisou todos os pareceres da fonoaudióloga, da terapeuta ocupacional, da fisioterapeuta, do psicólogo e da psicopedagoga pelos quais Derek havia passado e realizou alguns testes. Após duas horas, ele nos entregou em nossos braços nosso garotinho e um papel com o diagnóstico: “Laudo Médico: CID F84.0 – Transtorno do Espectro Autista”, além de uma lista extensa de recomendações.

As aulas de música, natação e os momentos de lazer deram lugar a horas de terapias intensivas. Meu coração ardia de dor. Sentia-me culpada por ter tomado alguma medicação ou por ter feito alguma atividade durante a gestação que pudesse ter causado isso nele. Na verdade, nem fazia ideia do que significava a maternidade atípica. Sem rede de apoio familiar por perto e retornando para Rondônia, o apoio incansável dos irmãos e da igreja foram o alento nos momentos de dor.

Nessa jornada, apesar de todo o amparo, apoio e amor do meu esposo, a falta de aceitação e culpa ocuparam um lugar dentro de mim durante um longo período. Não via meu filho como uma criança comum; só enxergava o autismo e temia o que o desconhecido estava prestes a me oferecer. Será que ele vai se casar? Vai se graduar? E dirigir? Tantas perguntas sem respostas. Foi a combinação de duas ações que me proporcionou um momento único de aceitação. Por meio da dependência e do diálogo aberto com Deus e do apoio constante nas terapias psicológicas, fui capaz de entender que aquele “deserto” em que eu estava imersa iria passar. Por isso, o tempo foi tão importante. Permitir-me chorar, lutar e buscar compreender foram os passos certos para ressignificar a dor e transformar a culpabilidade em amor.

NOVAS PERSPECTIVAS

Tive a certeza de que estava na hora de permitir o agir de Deus em minha vida por completo. Certo dia, ao ver uma foto da amostra cultural do Colégio Adventista de Ji-Paraná, na qual Derek aparecia com um troféu, sem olhar para a câmera, decidi depositar toda a minha energia e força em aceitar meu filho como ele é e acreditar em seu potencial, para que logo ele conseguisse fazer contato visual comigo.

Em 6 meses, e após horas de terapias constantes, Derek já estava olhando nos nossos olhos. Tínhamos a certeza de que se aquele desafio levou tempo, outros viriam ao longo do caminho e poderiam ser superados por meio da nossa confiança sincera e entrega total a Deus. O trabalho de uma equipe multidisciplinar também faria toda a diferença.

Ver o mundo através das lentes dele me fez entender que, mesmo ao enfrentar os desafios que acompanham a maternidade de filhos atípicos, a fé se torna nossa âncora. Filipenses 4:13 nos assegura: “Tudo posso Naquele que me fortalece.” Essa promessa nos lembra de que, mesmo nos momentos mais difíceis, podemos encontrar força e conforto em Deus. Ele é nossa rocha inabalável, nossa fonte de esperança e nossa fortaleza nas tempestades da vida.

Senti o amparo de Deus e da minha família e me vi forte e pronta para lutar pelo Derek. O sorriso voltou a estampar o rosto, e a convicção de que poderíamos ser uma rede de apoio para alguém estava latente em meu coração. Participando de um congresso em São Paulo, encontrei algumas amigas virtuais, mães cristãs de crianças com autismo. Também fiz amizade com o doutor Carlos Gadia e sua esposa, Grazi. Uma das minhas amigas me convidou para permanecer em São Paulo para um evento sobre autismo que seria promovido por uma comunidade religiosa. Ela me explicou que eles convidam as famílias da comunidade e vizinhos, trazem um profissional da área e, no fim, apresentam uma mensagem bíblica de conforto aos pais.

REDE DE APOIO

Quando ouvi o relato dela, percebi que também poderíamos fazer algo em nossa igreja. Conversei com meu esposo e, depois de um mês de muita conversa e oração, ele então sugeriu o nome Raafa (Rede Adventista de Apoio à Família Autista) que, em hebraico, significa cura. Assim, a Raafa surgiu em 2020, com o propósito de oferecer apoio, acolhimento e orientação. Tudo começou pelo WhatsApp, com um grupo pequeno de pais adventistas de crianças com autismo. Hoje a iniciativa reúne mais de 90 voluntários que dedicam parte de seu tempo para acolher as mais de 3 mil famílias que fazem parte da rede.

Cada estado conta com um moderador, além dos que atuam em outros 10 países. As formas de assistência são diversas. Temos a Raafa Acolhimento, para famílias que acabaram de receber o diagnóstico, a Raafa Espiritual, a Raafa Educação, a Raafa Escola Sabatina, entre outras. Com o apoio de um corpo técnico, também já organizamos quatro webinars, alcançando mais de 300 mil pessoas na internet.

Além disso, a Raafa é uma ferramenta do Ministério Adventista das Possibilidades (MAP) e atua diretamente na área de saúde mental e bem-estar. Por meio do engajamento dessas famílias voluntárias, foi possível alcançar 48 pessoas para o reino de Deus somente no ano passado.

EDUCAÇÃO CRISTÃ

Eunice foi uma influência poderosa na vida de Timóteo, nutrindo nele valores espirituais e incentivando-o a viver uma vida que glorificasse a Deus. Ele se tornou um discípulo fiel de Jesus e um líder na igreja apostólica. As cartas de Paulo a esse jovem testemunham a profundidade de sua fé e seu compromisso com o evangelho. “Lembro da sua fé sem fingimento, a mesma que, primeiramente, habitou em sua avó Loide e em sua mãe Eunice, e estou certo de que habita também em você” (2Tm 1:5).

Neste mundo repleto de influências negativas e distrações, é crucial que nós, mães, sejamos intencionais em transmitir valores espirituais aos nossos filhos. A educação cristã em casa é uma das maneiras mais poderosas de moldar o caráter e o destino de nossos filhos, sejam eles típicos ou atípicos. Ore por eles e com eles, leia as Escrituras juntos, ensine-os sobre o amor de Jesus e modele uma vida de fé e serviço. Nunca subestime o impacto que sua orientação pode ter na vida de seus filhos e no reino de Deus.

Então, como posso saber se estou seguindo na direção certa daquilo que Deus me designou, mesmo sendo mãe de uma criança atípica?

1. Ame sem limites. Não se fixe na incapacidade. Lembre-se de que o amor é o fundamento de sua missão como mãe. Como está escrito em 1 Coríntios 13:7: “O amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” O amor incondicional é uma poderosa fonte de força e conforto para você e seu filho.

2. Confie em Deus. Deposite sua confiança no Senhor em todos os momentos. “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie no seu próprio entendimento. Reconheça o Senhor em todos os seus caminhos, e Ele endireitará as suas veredas” (Pv 3:5, 6). Deus é seu refúgio e sua fortaleza em meio às dificuldades. Quando faltar força, Ele a sustentará.

3. Seja persistente na oração. Não subestime o poder da oração. Caminhe ao lado do Senhor pelo deserto que está vivendo. Conte a Ele, de forma simples e clara, as suas tribulações e creia que Ele está operando. “Não fiquem preocupados com coisa alguma, mas, em tudo, sejam conhecidos diante de Deus os pedidos de vocês, pela oração e pela súplica, com ações de graças. E a paz de Deus, que excede todo entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus” (Fl 4:6, 7).

4. Encontre força na Palavra de DeusA Bíblia é uma fonte de luz e direção em nossa jornada como mães. Busque orientação e consolo nas Escrituras. Há diversos meios pelos quais você sentirá a presença de Deus, mas nenhum deles substituirá os conselhos claros do Livro Sagrado. “Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra; ela é luz para os meus caminhos” (Sl 119:105).

5. Aprenda com Jesus. Busque seguir o exemplo de Cristo em sua missão como mãe. Como está escrito em João 13:15: “Porque Eu lhes dei o exemplo, para que, como Eu fiz, vocês façam também.” Jesus demonstrou amor, compaixão e cuidado pelos necessitados.

6. Não perca a esperança. Mantenha-se firme, mesmo nos momentos mais difíceis. Como está escrito em Romanos 12:12: “Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação e perseverem na oração.” A esperança em Deus é uma âncora para a alma.

7. Aceite o apoio da comunidade. A Raafa promove essa missão unindo pais e mães em todos os estados do Brasil e ao redor do mundo. São pessoas que vivem lutas semelhantes e irão entendê-la sem julgamento, com respeito e amor. Ainda nesse contexto de apoiar e acolher as mães e as singularidades de seus filhos, encontramos em Gálatas 6:2 o seguinte conselho: “Levem as cargas uns dos outros e, assim, estarão cumprindo a lei de Cristo.” Deus muitas vezes nos envia ajuda por meio de outros e nos envia como ajuda para auxiliar outros irmãos em Cristo.

8. Acredite no potencial de seu filho. Reconheça o talento único e especial dele, independentemente de suas limitações. “Eu é que sei que pensamentos tenho a respeito de vocês, diz o Senhor. São pensamentos de paz e não de mal, para dar-lhes um futuro e uma esperança” (Jr 29:11). Deus tem um plano e um propósito para a vida dele. Acredite no extraordinário que Ele fará!

9. Descanse na promessa da vida eterna. Lembre-se de que, um dia, todas as lágrimas serão enxugadas e todas as dores serão curadas. Conforme está escrito em Apocalipse 21:4: “E lhes enxugará dos olhos toda lágrima. E já não existirá mais morte, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram.” A esperança na vida eterna nos fortalece em nossa jornada terrena.

Já se passaram oito anos desde que Derek nasceu. Nesse período, nunca ouvimos sua voz, mas percebemos através de seus olhos o que está em seu coração. Ele continua sem proferir uma única palavra, no entanto, por meio de sua vida, inspira muitas famílias a usarem sua voz com palavras de respeito, empatia, dedicação e amor.

Ser mãe de filhos atípicos é uma jornada de fé, amor e superação. É um chamado divino que nos leva a crescer, a amar incondicionalmente e a confiar na providência de Deus. Que possamos encontrar força na Palavra de Deus e no exemplo de amor e compaixão de nosso Salvador. Que continuemos a nutrir e guiar nossos filhos com amor e sabedoria, cientes de que Deus está conosco em cada desafio e que Ele nos fortalecerá para enfrentar qualquer adversidade. 

KEINY GOULART OLIVEIRA é conselheira voluntária do Ministério Adventista das Possibilidades na Divisão Sul-Americana para a área de saúde mental e bem-estar. Mãe da Myah e do Derek, fundou com o esposo, pastor Marlon Bruno, a Rede Adventista de Apoio à Família Autista (Raafa)

(Artigo publicado originalmente na Revista Adventista de maio/2024)

Última atualização em 6 de maio de 2024 por Márcio Tonetti.