Guardiões do planeta

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“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2:15)

André Vasconcelos

Ilustração: Vandir Dorta Jr.

Uma expressão popular no idioma da Letônia diz que não se deve “contratar um bode para ser jardineiro”. A razão para a proibição é óbvia: ele devoraria a grama verde e todas as flores em um piscar de olhos.

A lógica desse provérbio parece irrefutável, não é mesmo? Afinal, designar um ser com potencial destrutivo para cuidar de um ambiente que precisa de proteção não é a escolha mais prudente. Mas por que Deus colocou o ser humano no jardim do Éden e pediu que ele “sujeitasse” a terra e “dominasse” os animais (Gn 1:28)? Seria uma “carta branca” para a humanidade explorar o planeta?

Senhores da criação

Antes de qualquer resposta precipitada para essa pergunta, devemos analisar o que as palavras “sujeitar” e “dominar” significam no hebraico bíblico, sua língua original, e como elas são utilizadas em outras passagens do Antigo Testamento.

O verbo “dominar” (radah) transmite a ideia de governar e administrar. Essa expressão é usada frequentemente na Bíblia para se referir ao domínio de um rei ou nação sobre outros monarcas e povos inimigos (1Rs 4:24; Sl 72:8; 110:2; Isaías 14:2 e Ez 29:15). É utilizada também para se referir à ação de subjugar outra pessoa (Lv 25:43; 2Cr 8:10 e Jr 4:31). De maneira semelhante, a palavra “sujeitar” (kavash) pressupõe um tipo de dominação imposta (Nm 32:22; 2Sm 8:11; 2Cr 28:10 e Et 7:8).

Apesar de ambos os termos aparentemente expressarem a ideia de dominação, é importante lembrar que a relação entre o ser humano e a criação é qualificada ao fim do sexto dia pela expressão “muito bom” (Gn 1:31). Segundo o teólogo Nahum Sarna, isso revela a existência de uma inter-relação “harmoniosa e mutuamente benéfica” entre a humanidade e o restante da criação de Deus (Genesis, 1989, p. 12).

É provável que a ordem de dominar os animais esteja relacionada ao ato de dar nomes a eles. Em Gênesis 2:19 e 20, é relatado que Deus criou os animais a partir da terra e então os conduziu à presença de Adão para serem nomeados por ele. Essa autorização para dar nomes aos animais deve ser interpretada como uma delegação de autoridade, um exercício de soberania relativa que o ser humano recebeu sobre a natureza. Assim como Deus manifestou Seu domínio sobre o tempo e o espaço quando nomeou o dia, a noite, os céus e os mares (Gn 1), Adão demonstrou seu domínio sobre o reino animal ao nomear os bichos (Laurence Turner, no 6º episódio da série “Eis o Homem”, do programa Origens).

É importante destacar que esse senhorio inicial do ser humano sobre os animais não foi algo conquistado pela humanidade, mas algo outorgado por Deus. Uma das restrições para esse domínio era a dieta vegetariana (Gn 1:29). O consumo de carne só foi autorizado pelo Senhor após o dilúvio (Gn 9:3, 4), quando a relação entre o ser humano e os animais já havia sido desequilibrada pela presença do pecado.

O senhorio limitado do ser humano sobre os animais também é expresso de forma sutil no relato da queda moral do ser humano (Gn 3), quando o homem e a mulher foram enganados pela serpente. O fato de Satanás ter escolhido um animal para destruir a humanidade não deixa de ser irônico e trágico. Aquele que deveria dominar o reino animal foi dominado por ele.

Já a ordem para sujeitar a terra provavelmente tenha que ver com o cultivo dela (Laurence Turner, Anúncios de Enredo em Gênesis [Unaspress, 2017], p. 13). É importante destacar que a terra é descrita em Gênesis 1:2 por meio das palavras hebraicas tohu wavohu, traduzidas ao português por “sem forma e vazia”. Essa expressão não é apenas uma figura de linguagem (hendíade) pra representar o caos primitivo, mas uma representação gráfica da terra em seu estado de esterilidade e infertilidade, conforme o uso das palavras tohu e vohu em Isaías 34:11 e do termo tohu em Deuteronômio 32:10 e Jó 6:18 (Edson Nunes, no 6º episódio da série “Eis o Homem”, do programa Origens).

Esse estado de improdutividade começou a ser revertido quando Deus ordenou à terra que produzisse “relva, ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem fruto” (Gn 1:11). A Bíblia, no entanto, menciona que a erva do campo (que é diferente da erva que dá sementes em Gênesis 1:11, 12, 29) ainda não tinha brotado porque, entre outros motivos, não havia ninguém para “lavrar o solo” (2:5). A solução para esse problema foi apresentada por meio da formação de Adão (v. 7). Dessa forma, o texto parece sugerir que a ordem de “sujeitar a terra” dada ao ser humano está intimamente relacionada à sua tarefa de “lavrar o solo”.

Essa ideia é reafirmada em Gênesis 2:15. Nesse verso é dito que o Senhor colocou o homem no jardim do Éden e lhe ordenou que o guardasse e cultivasse. O verbo “cultivar” (‘avad) significa literalmente trabalhar. Adão deveria trabalhar a terra a fim de que a produção dela fosse determinada por ele. A palavra “guardar” (shamar), por sua vez, aponta para o cuidado e o zelo que o ser humano deveria ter para com a terra. Essa mesma palavra é usada com frequência no Antigo Testamento para retratar o cuidado de Deus com Seu povo (Sl 121).

Além disso, tanto o termo ‘avad como shamar são usados juntamente em Números 3:7 e 8:26 para descrever os “deveres” dos levitas e seu “serviço” no tabernáculo do deserto. Ou seja, a missão do ser humano para com o jardim é retratada nas Escrituras como um dever religioso, comparado ao trabalho dos levitas no santuário. Dessa forma, torna-se evidente que a ordem para “sujeitar a terra” não tem nada que ver com a exploração do meio ambiente nem deve ser utilizada para justificar tal atitude. Ao contrário, a ordem de Deus para os primeiros seres humanos foi que cuidassem com responsabilidade da natureza.

Deus, terra e homem

Ilustração: Vandir Dorta Jr.

O relato de Gênesis 1 a 3 apresenta uma tríade inseparável: Deus-terra-homem. A terra é a primeira parceira de Deus no processo da criação, sendo o primeiro elemento criado com a capacidade de produzir vida (Edson Nunes, no 6º episódio da série “Eis o Homem”, do programa Origens). Conforme lemos em Gênesis 2:7 e 19, o Senhor também a utilizou para formar os animais do campo, as aves e, principalmente, o ser humano.

O ser humano, assim como o solo e os animais (1:22), foi criado com a capacidade de gerar vida. Se a primeira ordem divina para a terra foi produzir relva, ervas e árvores frutíferas (Gn 1:11), para o ser humano foi: “sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (v. 28). Isso mostra que tanto a terra quanto o ser humano são parceiros de Deus no processo criativo (ibid).

Além da relação Deus-terra e Deus-homem, existe a relação homem-terra. O homem (’adam) veio da terra (’adamah), e cada uma de suas escolhas afeta diretamente o destino dela. Quando Adão e Eva pecaram, o solo foi contaminado: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos” (Gn 3:17, 18). Por causa do pecado, o ser humano passou a ter dificuldade para cultivar o solo, de modo que já não seria tão simples sujeitá-lo. A terra, por sua vez, começou a produzir plantas com espinhos, o que modificaria drasticamente o cenário perfeito da criação original.

Toda vez que a humanidade peca, a terra sofre e reage. Quando Caim matou Abel, por exemplo, o solo se tornou ainda mais difícil de ser cultivado (Gn 4:12). Essa realidade era tão dura que o patriarca Lameque, o pai de Noé, clamou por alívio do trabalho e do sofrimento causados pela “terra que o Senhor amaldiçoou” (5:29). Outro exemplo de como o solo é afetado pela pecaminosidade do ser humano se encontra em uma advertência de Deus ao povo de Israel: “Não suceda que a terra vos vomite, havendo-a vos contaminado, como vomitou o povo que nela estava antes de vós” (Lv 18:28).

Por outro lado, quando a humanidade restabelecer seu relacionamento com o Senhor, a terra também será restaurada à sua perfeição original (Ap 21-22). Na Terra renovada, os seres humanos “plantarão vinhas e comerão o seu fruto”; “não trabalharão debalde”; e “o lobo e o cordeiro pastarão juntos” (Is 65:21, 23, 25). Em outras palavras, a relação homem-terra se tornará harmoniosa novamente quando Deus for o elo entre ambos. Só então o ser humano será bem-sucedido em sujeitar a terra.

Luta pela sobrevivência

O relacionamento entre o ser humano, a terra e os animais assume traços ainda mais dramáticos após o dilúvio. Quando a narrativa bíblica retoma Gênesis 1:28 no capítulo 9 (versos 1 a 3), duas fórmulas são alteradas de maneira intencional. A ordem para encher a terra é mantida, mas não a ordem para o ser humano sujeitá-la. Por sua vez, o mandato divino para “dominar os animais” é modificado: a relação entre a humanidade e o reino animal passa a ser pautada pela luta em favor da própria sobrevivência (Turner, Anúncios de Enredo em Gênesis, p. 25).

Já a terra não apenas se tornou mais difícil de ser cultivada em consequência do pecado, mas “ela mesma” se rebelou contra o ser humano a fim de sujeitá-lo: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19). A sujeição completa da terra não é possível em um mundo dominado pela transgressão. Enquanto essa realidade prevalecer neste planeta, a natureza será “subversiva” e buscará ceifar a vida do ser humano por meio de catástrofes. Quando vai para a sepultura, o ser humano é engolido pela terra e reduzido à sua matéria-prima: o pó (Ec 12:7).

Depois do dilúvio, a ordem de “dominar os animais” é rebaixada a uma interação marcada pelo “pavor” e o “medo” (ibid). Enquanto os seres humanos lutam para dominar seu alimento, os animais lutam pela própria sobrevivência. De soberano gentil, que nomeia carinhosamente cada ser vivo, o ser humano se transformou em dominador cruel. Assim, o Adão vegetariano (um modelo do ser humano ideal) contrasta fortemente com o tirano caçador Ninrode (um modelo do ser humano corrompido; ver Gênesis 10:8, 9).

Ponto de equilíbrio

Dois extremos, portanto, devem ser evitados na relação do ser humano com os animais e a terra: (1) achar que pode fazer o que bem quiser, alimentando o ímpeto da exploração; e (2) exaltar a natureza acima da humanidade e até mesmo de Deus, o que representa risco de idolatria.

Na história de Israel, o segundo extremo era mais comum do que o primeiro. Quando os israelitas negligenciavam seu papel como senhores da criação e se rebaixavam diante da natureza, os animais, o sol, a lua e as estrelas se tornavam objetos de culto (Êx 32:4; 2Rs 23:5).

Hoje, no entanto, é possível dizer que a humanidade se depara com ambos os extremos, de modo que nunca foi tão importante encontrar um ponto de equilíbrio. Se por um lado o ser humano moderno promove a exploração do meio ambiente em nome do progresso, do consumo e do desenvolvimento, por outro, cultua a natureza por meio de filosofias que enxergam todos os elementos naturais como divinos (panteísmo).

Assim, mais do que nunca, se faz necessário assumir com dignidade a função de soberano que o Senhor designou ao homem e à mulher quando os colocou no jardim e lhes ordenou que dominassem os animais e sujeitassem a terra. Deus criou o ser humano e o pôs no jardim com um único e simples propósito: representar a divindade diante da criação. E, convenhamos, essa é uma baita responsabilidade!

ANDRÉ VASCONCELOS é pastor e editor de livros na CPB

(Artigo publicado originalmente na edição de abril-junho de 2019 da revista Conexão 2.0)

Última atualização em 14 de outubro de 2021 por Márcio Tonetti.