Desde a sociedade patriarcal dos tempos bíblicos até nossos dias, as mulheres sempre desempenharam um papel fundamental na família, na comunidade e na igreja, a despeito das dificuldades culturais
Você certamente já ouviu falar ou percebeu assistindo à TV, lendo jornal ou mesmo nos posts das redes sociais: as mulheres estão conquistando muitas posições na chamada escala social e vêm dominando setores antes exclusivamente masculinos.
Ildete Aparecida Soares, 38 anos, dois filhos e casada há 19, é um retrato dessa nova mulher. Como caminhoneira, partilha o volante com o marido Luiz Soares, com quem divide também as despesas da casa. “Gosto de trabalhar e nunca fiquei parada, mas há dez anos ele comprou o caminhão e eu vi a possibilidade de trabalharmos juntos, em turnos diferentes para ganhar mais dinheiro. Tirei a habilitação e hoje vivemos na estrada”, conta.
O modo de vida do casal é bem diferente daquele que seus pais adotaram. Para se ter uma ideia, a mãe de Luiz teve 14 filhos, dos quais 11 sobreviveram, e nunca saiu do seu estado de origem ou trabalhou fora. “Meu pai não deixava minha mãe nem ir sozinha à feira. Para ele, lugar de mulher era a cozinha ou a roça. Mas eu não acho que tenha que ser assim. Com minha mulher é diferente”, afirma o trabalhador de 42 anos.
Casar cedo e ter vários filhos ao redor da mesa é coisa do passado. A mulher atual é independente e vem postergando ao máximo o casamento e a maternidade. Ângela Ribeiro Pavani, da cidade de Osasco (SP), é um exemplo disso. Formada em Engenharia Ambiental, a moça, que está terminando o mestrado em Ecossistemas, nem sonha em casar e ser mãe. “Eu sei que é o natural da vida, acho lindo nos outros, mas tenho só 26 anos e muita coisa para estudar e aprender. Quero ser doutora e dar aula na Federal”, justifica.
Dona do próprio destino, poderosa, chefona… Não importa que nome você use para descrevê-la, o fato é que ser mulher deixou há muito tempo de ser considerado desvantagem. E, sim, isso já ocorreu. Tanto que escritoras, artistas, políticas e até papisas tiveram que se fingir de homens para alcançar o sonho de trabalhar e se realizar profissionalmente.
Por essa razão, soa esquisito ouvir que, em países como o Sudão, uma mulher tenha sido condenada à morte (e, depois de sucessivos apelos internacionais, perdoada) por ter se casado com um cristão. Também é estranho saber que a mutilação genital ainda acontece com frequência em comunidades como a dos massais, no Quênia, e em segmentos mais radicais do islamismo.
Constatações como essas causam uma comoção tão grande que parece justíssimo o Prêmio Nobel da Paz recebido pela adolescente Malala Yousafzai, paquistanesa de 17 anos que hoje vive com os pais em Birmingham, na Inglaterra. Em 2012, ela sofreu um atentado quando voltava da escola num ônibus escolar no norte do seu país. Era uma represália do grupo terrorista Taliban, que considerou ser uma obscenidade o que a garota de 14 anos fazia na época. A atitude considerada absurda pelos extremistas consistia simplesmente no fato de que ela estava estudando e incentivando suas amigas a fazer o mesmo. “Um aluno, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo. A educação é a única solução. Educação primeiro”, disse Malala em seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), consagrando-se como um ícone da luta em defesa dos direitos das mulheres à educação feminina.
Discursos mais recentes também repercutiram na mídia mundial por criticar o machismo ainda existente em algumas culturas. Em visita à Ásia, em janeiro deste ano, o papa Francisco pediu, em tom bem-humorado, maior espaço para as mulheres na sociedade local. “As mulheres têm muito a nos dizer na sociedade atual. Às vezes, nós, os homens, somos muito machistas. Não damos espaço às mulheres, mas elas são capazes de ver as coisas por um ângulo diferente do nosso, com um olhar diferente”, disse o pontífice numa crítica velada em Manila, capital das Filipinas.
MULHERES NO BRASIL
Embora ainda com grandes desafios e desigualdades de gênero, ocupando a 85ª posição no ranking dos países mais desiguais nessa área, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil vem apresentando mudanças significativas no quesito emancipação feminina. Pela primeira vez com uma presidente no poder, com outras mulheres em altos e bem remunerados cargos, o Brasil tem vivido uma reposição de mão de obra bem mais qualificada, graças ao maior nível educacional das mulheres, que vem aumentando desde os anos 60, década em que a primeira pílula anticoncepcional também chegou ao mercado.
Segundo dados do IBGE divulgados no ano passado, referentes ao período de 2010, de todas as pessoas com pelo menos nível superior, 58,15% eram mulheres e 41,85% homens. Elas estão estudando mais e conquistando espaço no mercado de trabalho. Porém, continuam ganhando menos e caminhando mais lentamente no que diz respeito ao preenchimento de vagas formais.
No mesmo levantamento, o IBGE constatou que dobrou o número de mulheres responsáveis pelo sustento da família entre 2000 e 2010, passando de 9 para 18 milhões, enquanto homens como chefes de família continuavam na mesma quantidade (49 milhões). Essas estatísticas podem estar ligadas tanto a fatores educacionais (elas estão se qualificando mais) quanto ao aumento do número de divórcios, o que tem feito com que, sozinhas e com filhos, elas assumam as contas da casa. No caso dos filhos, estes andam bem reduzidos nas famílias. Se na década de 1960 cada mulher tinha em média seis filhos, em 2010 esse número baixou para 1,9 e, segundo os estudiosos, agora beira 1,7.
ESFERA RELIGIOSA
As inúmeras mudanças sociais que aconteceram não só no Brasil nas últimas décadas, mas no mundo todo, vêm fomentando também debates sobre a participação da mulher no âmbito religioso. A própria Igreja Adventista tem ampliado a esfera de atuação feminina, seguindo o precedente bíblico.
Embora tida por muitos como machista, a Bíblia é um compilado de referências de como Deus vê a mulher e atribui a ela características e atenção especiais. Mesmo numa sociedade patriarcal, Jesus ensinou as mulheres, conversou com elas e lhes dedicou atenção diferenciada, inclusive àquelas renegadas social e religiosamente. Não sem motivo. Criada por Deus para ser ajudadora do esposo, à mulher cabe papel importante na família como cuidadora, educadora e influenciadora. Se até o mercado já descobriu isso, direcionando propagandas de carros, imóveis e outros bens de consumo para atrair o público feminino, que compra para os filhos e influencia nas decisões do cônjuge, quanto mais a igreja!
Liderado, entre outros, por uma mulher, o movimento adventista surgiu dando mostras da função que tanto homens quanto mulheres cumprem na pregação do evangelho. Ellen White, Annie Smith e Minerva Loughborough, adolescentes envolvidas na igreja desde a sua organização, em 1863, são um retrato dessa destacada postura dos adventistas de não relegar as pessoas por causa de gênero, ainda que sob a influência cultural da época. Minerva se tornou tesoureira da Associação Geral. E, mais adiante, Maud Sisley Boyd foi a primeira missionária na Europa.
Segundo Raquel Arrais, mestre em Teologia e diretora associada do Ministério da Mulher na Associação Geral, a cultura e a tradição ainda afetam a percepção das pessoas sobre o trabalho das mulheres na igreja ao redor do mundo, seja por falta de informação ou equívocos conceituais. “Por outro lado, não podemos esquecer que a Bíblia tem esse caráter contracultural e, enquanto a cultura caminha para uma direção, a Palavra muitas vezes vai na direção oposta”, analisa. “Em algumas áreas, a igreja tende a entender esse importante conceito, mas com relação ao envolvimento de mulheres na missão não tanto. Precisamos sempre ponderar sobre a relação entre a Palavra e a prática, e como a Palavra existe para corrigir nossa cosmovisão influenciada pela cultura vigente”, completa.
Neste ano, o departamento do Ministério da Mulher comemora 20 anos de criação, embora na prática o trabalho feminino na pregação do evangelho exista desde sempre, sem nunca ter precisado de formalização. Uma das pioneiras nesse trabalho no Brasil, juntamente com Suzana Shultz e Vasti Viana, Meibel Guedes trabalhava na antiga União Central Brasileira, que, além de São Paulo, administrava os estados de Mato Grosso, Goiás e Tocantins. Remexendo em suas memórias e materiais, ela mostra uma coleção dos primeiros manuais e cartilhas criados para definir a atuação do recém-nascido ministério.
“Já tínhamos a Afam, voltada para as esposas de pastores, e, desde 1979, eu atuava nessa área e via as mulheres da igreja pedindo encontros e treinamentos para elas também. No primeiro encontro que fiz para as mulheres, em 1980, só homens ocuparam a plataforma e o presidente do campo pregou. Demoraria ainda mais 15 anos para o trabalho com as mulheres ser oficializado, mas não havia verba para projetos e tudo era voluntário. Achei que não veria na minha geração a consolidação desse trabalho”, relembra.
Felizmente, Meibel, que, embora seja aposentada, percorre o Brasil fazendo palestras e escrevendo livros, estava equivocada. Ela e os de sua época. Hoje a posição da mulher na América do Sul é consolidada, apoiada e respeitada. O pastor Erton Köhler, presidente da Divisão Sul-Americana, endossa que “as mulheres têm sido fundamentais na dinâmica missionária da igreja, pois têm um perfil relacional e de comunicação forte. Elas também têm sido a linha de frente dos pequenos grupos, tanto como anfitriãs quanto líderes. As mulheres são dinâmicas, ativas e com muita capacidade de coordenação, pelo próprio papel que têm dentro da família. Portanto, hoje elas são vitais para o crescimento e a vida da igreja”. Não apenas são imprescindíveis nesse sentido, mas também já são em maior número. Dos 2.327.463 membros da igreja no território administrativo sul-americano, 43,6% são homens (1.014.440) e 56,4% são mulheres (1.313.018).
Essa proporção, que não existe só na América do Sul, mas no mundo, entre outros fatores, provocou a discussão sobre a possibilidade de ordenação das mulheres ao ministério. O assunto vem sendo estudado por comissões ao redor do mundo para ser votado na próxima assembleia da Associação Geral, que será realizada em julho deste ano em San Antonio, Texas (EUA). Mas, para a líder sul-americana do Ministério da Mulher, Wiliane Marroni, isso não é algo que mude o que as mulheres já vêm fazendo. “Creio que a luta por cargos inferioriza tanto homens quanto mulheres. O machismo é uma forma equivocada de luta, assim como o feminismo. A época em que vivemos é muito solene para que a igreja tenha que gastar tempo em disputas entre os gêneros em vez de concentrar energia total na pregação do evangelho. A necessidade é de homens e mulheres, cada um cumprindo sua parte conforme os dons recebidos de Deus”, enfatiza.
Para Meibel, a questão vai além de um tratado teológico. Tem que ver com necessidades. Na opinião dela, a mulher não precisa da ordenação onde existem pastores suficientes para desenvolver o ministério pastoral, continuando como um apoio ao ministério. “Mas, eventualmente, se a liderança da igreja assim entender, em alguns países onde os homens não se dispõem a exercer o ministério e as mulheres estão mais disponíveis e sentem o chamado de Deus, elas poderão ser separadas para esse propósito. Creio que há época e lugar, e Deus mostrará com muita clareza quando houver essa necessidade”, posiciona-se.
Com ou sem ordenação, para a líder mundial das mulheres adventistas, Heather-Dawn Small, o que guia esse ministério ao redor do mundo é a disponibilidade para o serviço. “Estamos envolvidas em muitos métodos de evangelização diferentes, pregando, dando estudos bíblicos, atuando no ministério da prisão, no evangelismo por meio da amizade, ajudando a discipular novos membros, nos pequenos grupos, ministério de oração e projetos comunitários. Cremos que Deus deu às mulheres uma habilidade especial para tocar a vida das pessoas que encontramos. Por isso, tentamos fazer o ministério como Jesus fez”, argumenta. E ela lembra da luta constante de mulheres de todos os cantos do mundo que ainda sofrem com pobreza, altas cargas de trabalho, quadros de abuso e falta de acesso à educação e saúde, fatores que inviabilizam seu desenvolvimento humano. “Essas coisas acontecem em países pobres ou ricos, e atuamos também como agentes sociais, arrecadando fundos, ensinando e promovendo transformação para quebrar essas barreiras”, acrescenta.
Assim, enquanto as faculdades e comitês empresariais clamam pelo “empoderamento” feminino como meio de promover a igualdade, no meio cristão esse não é um alvo, não nesse sentido. “Na minha opinião, igualdade não é a palavra mais adequada para definir o ideal da mulher na igreja. É justamente na diferença de personalidade, visão e perspectiva que a mulher cumpre melhor seu papel, oferecendo ao serviço sagrado o que o homem não consegue. Creio que a luta pela ‘igualdade’ nivela a atuação de homens e mulheres a um único modelo que limita a busca da perfeita sincronia entre os gêneros”, advoga Wiliane. Para o pastor Erton, “em alguns momentos, os dons de homens e mulheres são diferentes, pela sua estrutura física e emocional, mas outras vezes não dependem da identidade sexual. Com suas características pessoais de comprometimento, paixão, comunicação, liderança, organização e envolvimento com a missão, elas constroem pontes que dão um brilho e uma dinâmica especiais para a igreja.”
A dinâmica da mulher na família é, antes de tudo, um atributo divino, e ela precisa olhar para esse aspecto e outros não como vantagens ou desvantagens competitivas em relação aos homens, e sim como características complementares. Embora o patriarcado judaico tenha relegado a mulher à condição secundária e nossa sociedade ainda reflita isso, lideranças significativas como Débora e Ester, orientadas por Deus, são um reflexo do que uma mulher sábia e submissa ao Criador é capaz de fazer por sua nação. Aliás, uma mulher não, uma pessoa. Sim, antes de considerar diferenças peculiares e reivindicar direitos e posições, que muitas vezes refletem o baixo conceito que carregam de si mesmas, as mulheres cristãs podem usar a consciência e o conhecimento bíblico e histórico disponíveis para caminhar ao lado dos seus esposos, amigos e irmãos numa jornada que vai além de comparações e lutas de gênero, e caminha em direção à missão que cada um tem diante de si de pregar o reino de Deus para todos.
O que diz Ellen White sobre a participação feminina
“Elas podem fazer nas famílias uma obra que os homens não podem fazer, obra que alcança a vida íntima. Podem chegar bem perto do coração daqueles que estão além do alcance dos homens. Seu trabalho é necessário.” Evangelismo, p. 465
“Quando se tem a fazer uma grande e decisiva obra, Deus escolhe homens e mulheres para realizá-la, e ela sofrerá o dano caso os talentos de ambas as partes não se aliarem.” Evangelismo, p. 469
“O Senhor tem uma obra para mulheres, bem como para homens. […] Se estiverem imbuídas com o senso do dever, e trabalharem sob a influência do Espírito Santo, terão a exata presença de espírito requerida para este tempo. O Salvador refletirá sobre essas abnegadas mulheres a luz de sua face, e lhes dará poder que excede o dos homens.” Beneficência Social, p. 145
FABIANA BERTOTTI é jornalista e escritora
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.