A postura do profeta Daniel em meio a uma sociedade corrupta é uma inspiração para os que se afligem com a perda dos valores na atualidade
O mundo vive hoje uma crise de integridade sem precedentes. Essa crise é um problema não só dos segmentos da política, mas também da família, do relacionamento conjugal, do mundo dos negócios e da vida financeira. O Brasil, em especial, presencia uma desintegração impressionante dos valores éticos e morais.
Nesse contexto, vale a pena refletir sobre a postura de um estadista de influência relevante, que teve uma conduta irrepreensível: o profeta Daniel. Durante um período de quase 70 anos, ele serviu aos reis dos impérios babilônico e persa. Ocupou a função de primeiro-ministro nos reinados de Nabucodonosor, Belsazar e Dario. Foi no reinado deste último rei que ele passou por uma experiência extraordinária, cujo destaque está em sua vida íntegra, acima de qualquer suspeita.
Embora alguns historiadores e críticos afirmem que Dario, o medo, não passa de um personagem fictício, o relato bíblico (Dn 5:31; 6:1, 6, 9, 25, 28; 9:1) trata de sua existência como um fato. Mesmo que a história secular ou as descobertas arqueológicas não esclareçam a existência desse personagem, a exatidão das Escrituras não deve ser questionada. Algumas descobertas têm levado a conclusões sobre a identidade desse rei.
No livro Uma Nova Era Segundo as Profecias de Daniel (p. 104), o historiador Mervyn Maxwell faz referência a um tablete de barro conhecido como a Crônica de Nabonido. A informação contida no tablete é de que Babilônia foi atacada em 539 a.C. por um comandante militar identificado pelo nome Gubaru (Gobrias em grego), que era governador de uma província da Média. Ele conquistou o reino da Babilônia para Ciro, estabelecendo ali governadores. A conclusão a que Maxwell chegou é que Dario “era a mesma pessoa que Gubaru” e que governou na qualidade de rei local (Dn 6:6) de 539 até o outono de 538 a.C.
O biógrafo grego Xenofonte identifica Dario como sendo Ciáxares II, tio de Ciro. Afirma que, por ocasião da conquista de Babilônia, o grande comandante persa visitou seu tio Ciáxares II para presenteá-lo e oferecer um palácio em Babilônia. Em retribuição, Ciáxares II entregou a Ciro sua filha como esposa. Aqui está um ponto que se harmoniza com a narrativa de Daniel: o fato de que Ciáxares II era sogro de Ciro leva à conclusão de que o rei medo tinha idade avançada, cerca de 62 anos, conforme descrito em Daniel 5:31.
Por outro lado, há um problema em identificar Dario como Ciáxares II: sua paternidade. No livro de Daniel, Assuero é o pai de Dario (Dn 9:1). Xenofonte diz que Astíages é o pai de Ciáxares II. Uma possível explicação é interpretar a expressão “filho de Assuero” no texto de Daniel como sendo “neto de Assuero”. Como explica o Comentário Bíblico Adventista (v. 4, p. 899), “há muitas demonstrações de que a palavra hebraica para ‘filho’ pode significar ‘neto’ ou até mesmo um descendente mais remoto”. Mas, como lembra o doutor William Shea, “a partir da perspectiva do livro de Daniel, é mais importante o que Dario fez do que quem é ele”.
Sistema político persa
O império persa tinha uma política expansionista, e Ciro, com habilidade para governar, empregou uma política de adaptação e reconciliação. Historiadores afirmam que “Ciro devolveu o nível mais elevado dos oficiais babilônicos, optando por manter os oficiais locais em essência, os colaboradores das elites em seus lugares, com intuito de contar com o seu apoio no governo”, conforme explicam Eric H. Cline e Mark W. Graham na obra Impérios Antigos (p. 125). Por isso, Daniel foi preservado como forte líder na corte de Babilônia no período medo-persa.
Dario reorganizou o reino da Babilônia em dois níveis de administração: o primeiro composto de 120 sátrapas para governar províncias, e o segundo formado por três administradores que, atuando nos interesses do rei, tinham autoridade sobre os 120 sátrapas.
As satrapias eram territórios administrativos do governo que ajudavam a controlar e financiar o império. O papel dos sátrapas era controlar ações burocráticas locais, cobrar e encaminhar os impostos, recrutar forças militares e ainda lidar com crises e levantes que viessem a surgir. Eles atuavam como governadores locais. Além deles, três administradores funcionavam como supervisores, e aparentemente cada um cuidava de 40 sátrapas. Esse sistema de liderança governamental era burocrático, porém bem estruturado, para evitar que houvesse prejuízo econômico para o império.
Obviamente, a corrupção não é uma invenção atual. E não nos equivocamos em afirmar que o sistema político persa era sujeito à corrupção e continha vícios políticos que favoreciam a desonestidade e a injustiça. Por essa razão, Daniel foi alvo de um esquema político desleal, eivado de inveja e ciúmes. É bem possível que alguns dos sátrapas e supervisores houvessem se corrompido e, por isso, ficaram enciumados acerca do sucesso de Daniel e sua integridade.
O plano ardiloso daqueles políticos incluía a elaboração de uma lei que contou com a aprovação do rei. A lei dos medos e persas era irrevogável dentro do império. Nem mesmo o rei tinha poderes para revogá-la. Essa lei fazia oposição objetiva mais a Yahweh do que ao próprio Daniel, embora ele tivesse sido responsabilizado por servir ao seu Deus. O edito que Dario assinou determinava que somente ele deveria ser adorado. Se não bastassem os vários ídolos que existiam naquela cultura, o rei seria mais um deus por 30 dias! O alvo não eram os outros ídolos, mas o Deus de Daniel.
Alcançado esse objetivo, os autores do tal plano diabólico conseguiram o impeachment de Daniel do governo do rei e ainda o puniram, lançando-o na cova dos leões. É impressionante notar que o profeta de Deus permaneceu inabalável e seguro da justiça divina. Por mais que o decreto tivesse amparo legal, seu motivo era imoral e injusto.
Modelo de excelência
O rei Dario planejou escolher Daniel como o principal administrador de seu governo. Mas não foi por uma razão exclusivamente “política” que o rei decidiu dar-lhe o posto mais elevado de seu reino. O texto sagrado revela que o caráter íntegro e a extraordinária bênção de Deus sobre Daniel resultaram na preferência do rei em escolhê-lo como estadista de seu governo (Dn 6:3, 4, 21). Daniel revelava “fidelidade inabalável, lealdade ao dever e sinceridade de palavras e atos, qualidades raramente vistas em servidores civis daquela época” (Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 4, p. 892). Ele estava acima da média dos oficiais do governo.
Além de ter um currículo extraordinário e uma reputação ilibada, Daniel foi um homem de hábitos santificados ao Senhor. Seu estilo de vida não apenas impressionava as pessoas, mas trazia certo incômodo para os que condescendiam com o pecado. Descobrimos quatro características marcantes que distinguiam Daniel dos demais agentes políticos, por causa de sua integridade singular:
1. Excelência em sua base educacional. A instrução que Daniel recebeu em seu lar foi a raiz de uma árvore que cresceu e deu excelentes frutos, chamada integridade. “Daniel e seus companheiros tinham sido fielmente instruídos nos princípios da Palavra de Deus. Tinham aprendido a sacrificar o terrestre pelo espiritual, a buscar o mais alto bem. E colheram a recompensa”, comenta Ellen White (Educação, p. 55). Essa primeira educação foi mais importante do que a que Daniel recebeu por três anos entre os príncipes caldeus.
2. Excelência em seu caráter. Daniel era a representação do caráter de Deus expresso através de seus atos. Deus colocou Daniel e seus companheiros numa posição elevada no reino de Babilônia “para que no meio de uma nação de idólatras pudessem representar seu caráter” (Profetas e Reis, p. 487). A Bíblia define o caráter de Daniel como sendo:
- Puro. Assim que chegou na corte do rei de Babilônia, o jovem Daniel e seus companheiros foram submetidos a uma prova de caráter: deveriam comer o alimento da mesa do rei, o mesmo que era consagrado aos ídolos caldeus. Mas Daniel “decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do rei” (Dn 1:8).
- Reto. No reinado de Belsazar, Daniel foi novamente provado. O rei quis seduzi-lo com presentes e honra, mas, como Daniel tinha caráter nobre, não sucumbiu às promessas do rei (Dn 5:16, 17). Com esse exemplo aprendemos que “um caráter nobre não é resultado de acidente; não é devido a favores especiais ou dotações da Providência. É o resultado da autodisciplina, da sujeição da natureza mais baixa à mais alta, da entrega do eu ao serviço de Deus e do homem” (Profetas e Reis, p. 488).
- Fiel. Fidelidade significa exatidão. O homem foi criado com o propósito de ser a exata expressão de Deus, ou seja, ser fiel. Daniel cumpriu esse propósito em sua vida e, quando investigado por alguns governantes de Dario, nenhuma falta foi encontrada nele, “pois ele era fiel” (Dn 6:4).
3. Excelência espiritual. Como um importante homem de negócios, Daniel talvez tivesse uma agenda cheia de tarefas. As demandas de seu cargo, porém, não o impediam de separar tempo para Deus, pois era na comunhão que ele cultivava um espírito excelente. Ele cultivava o hábito da oração, buscando a Deus três vezes ao dia (Dn 6:10); e tinha discernimento espiritual, pois havia recebido de Deus o dom profético. Mediante o conhecimento das Escrituras (Dn 9:2), a oração diária e a revelação, adquiria clareza espiritual sobre os propósitos de Deus e conseguia ler os mistérios do futuro.
4. Excelência em seu testemunho. Desde quando chegou cativo em Babilônia até tornar-se um importante homem da corte, Daniel aproveitou todas as oportunidades para testemunhar de Deus. Cada ato praticado, cada palavra proferida, as obrigações cumpridas sob sua responsabilidade, seu zelo, sua coragem e ousadia em arriscar a própria vida em favor de seus princípios eram um testemunho vivo de sua integridade a Deus.
Daniel é um modelo para nós hoje. Ellen White comenta: “Assim como Deus chamou Daniel para testemunhar por Ele em Babilônia, Ele nos chama para sermos testemunhas suas no mundo hoje. Tanto nos menores como nos maiores negócios da vida, Ele deseja que revelemos aos homens os princípios do seu reino” (Profetas e Reis, p. 487).
A pessoa íntegra nunca fica em desvantagem por causa de sua integridade. Daniel é um exemplo dessa verdade. Mesmo sofrendo a punição, esse grande homem de Deus teve a companhia do anjo do Senhor e a vida dele foi preservada. Daniel cuidou de sua fidelidade e Deus cuidou da sua reputação. Ele foi “considerado inocente à vista de Deus” e também contra o rei não cometeu “delito algum” (Dn 6:22). Como resultado, o Senhor o tirou da cova da morte e o alçou ao ponto culminante da honra.
WAGNER AUGUSTO VIEIRA ARAGÃO é pastor em Taguatinga (DF)
(Texto publicado originalmente na edição de junho de 2016 da Revista Adventista)
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.