Luz na periferia

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Saiba como a igreja influenciou a história e o desenvolvimento do Capão Redondo, distrito da capital paulista que está completando 110 anos de existência

Emily Kruger Bertazzo

Vista área da instituição adventista, plantada no coração do Capão Redondo, distrito da capital paulista. Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

“Quando eu cheguei, isso aqui era tudo mato!” Quantas vezes já ouvimos essa frase tipicamente brasileira! Quem estudou ou trabalhou no UNASP nas primeiras décadas da instituição costuma repetir essa expressão sempre que tem a oportunidade de visitar o atual Capão Redondo. Quando o internato adventista foi fundado, a região sul da cidade de São Paulo era exclusivamente rural. Mas a cidade se expandiu, tomando conta de todas as paisagens. Chácaras se tornaram loteamentos residenciais e, posteriormente, prédios e comércios.

Em 2022, o distrito do Capão Redondo completa 110 anos de existência. Desde 1912, essa ampla região testemunhou a chegada de milhares de pessoas que alteraram por completo sua estrutura. Dados atuais mostram que sua população já soma cerca de 300 mil habitantes, distribuídos em 62 bairros que concentram mais de 100 mil domicílios.

Como a denominação adventista influenciou e foi influenciada por essa história? 

Capão Redondo

De onde vem esse nome? O termo “Capão Redondo” remete ao início do século 19, quando a região conhecida como “sertão de Santo Amaro”, que ficava no caminho para a Vila de Itapecerica da Serra, possuía uma extensa área de Mata Atlântica em formato arredondado. Esse “capão” era pouco explorado, sendo visitado quase que exclusivamente por caçadores que frequentavam a região aos fins de semana à procura de espécies exóticas da fauna.

Até 1912, a região que circunda o distrito pertencia ao político Herculano de Freitas, que vendeu a grande propriedade para três famílias, desmembrando o grande “capão”. Esse seria, portanto, o vetor inicial de urbanização do bairro, pois mais famílias passaram a fazer parte da vida na “Estrada de Itapecerica” e em seus arredores.

Nessa época, a cidade de São Paulo tinha aproximadamente 300 mil habitantes, e Santo Amaro era um município separado de menor dimensão, com apenas 10 mil habitantes aproximadamente. Com o desenvolvimento do sertão de Santo Amaro, novos bairros passaram a existir e ganharam nomes próprios. Assim, o capão de mata em formato arredondado se tornou o bairro do Capão Redondo.

O crescimento de São Paulo e de Santo Amaro fez com que as matas da região passassem a ser grandemente exploradas para a produção de carvão vegetal. Os terrenos desmatados passaram a ser ocupados por chácaras que produziam hortaliças, vegetais, ovos e leite para serem vendidos nos mercadões e feiras de São Paulo e Santo Amaro.

Ao longo das décadas seguintes, a região passou a receber um número expressivo de pessoas do Sudeste, Norte e Nordeste que vinham para a cidade em busca de oportunidades de emprego. Seus arredores se tornaram bairros residenciais dessa crescente população migrante.

Santo Amaro e a Missão Paulista

O intenso desenvolvimento do estado de São Paulo, impulsionado pela produção cafeeira, fez a capital paulista acelerar sua expansão. A partir da construção de vias férreas entre São Paulo e Santo Amaro, e a construção das represas de Guarapiranga e Billings, Santo Amaro passou a ter seus terrenos mais e mais valorizados. Indústrias, condomínios, comércios e até um clube hípico passaram a compor a paisagem santamarense. As margens das represas se tornaram “praias” frequentadas pela elite paulista. Famílias da capital e de Santo Amaro passaram a comprar “propriedades de recreio” no sertão de Santo Amaro para passar os fins de semana desfrutando da natureza.

Nesse período, a liderança da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) escolheu a cidade de Santo Amaro para começar o trabalho evangelístico na região. O crescimento populacional e econômico era um dos motivos. Outra razão seria o fato de a IASD no Brasil ter conquistado fiéis especialmente entre as colônias alemãs. Na época, Santo Amaro possuía dezenas de famílias de origem germânica, por conta de grupos imigratórios que chegaram na região no século 19.

O trabalho dos missionários foi difícil e cheio de percalços. As noções básicas de higiene e saúde ainda eram pouco disseminadas. Isso fez com que os missionários adventistas se utilizassem desses conhecimentos para conseguir, aos poucos, conquistar a população.

Especialmente pelo fato de a maioria dos missionários ter dificuldade para aprender o português, e por serem poucos em número comparados ao vasto campo brasileiro, discutiam com frequência a necessidade de fundar um seminário que formasse nativos para disseminar a mensagem entre seus conterrâneos.

Já haviam sido feitas tentativas de abrir um seminário em outras localidades do Brasil, porém sem sucesso. Onde poderiam encontrar um local que fosse ideal para o estabelecimento de tão importante instituição?

O seminário adventista nos anos 1920. Aquarela feita pelo artista Devson Lisboa (2014). Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

Fundação do seminário

Em 1915, os missionários da IASD decidiram que não era mais possível adiar a fundação de um seminário e começaram a fazer planos e procurar propriedades. Seguindo os conselhos de Ellen White, buscavam um local longe dos centros urbanos, em meio à natureza, com água limpa, matas e animais. Nesse local, os alunos aprenderiam tanto a parte teórica quanto a parte prática. Estudariam sobre a Bíblia e o Espírito de Profecia, história denominacional, geografia, matemática, biologia, etc. E no contraturno escolar, participariam das atividades da fazenda, aprendendo a lidar com a terra e os animais, planejar, construir, limpar, costurar, cozinhar. Sairiam prontos para construir igrejas e escolas onde quer que fossem.

Conversando sobre essas possibilidades com algumas famílias recém-convertidas em Santo Amaro, Pantaleão Teizen comentou que sua família possuía uma propriedade que ficava a menos de 10 quilômetros de Santo Amaro, numa região rural que possuía tais características. Então, uma comitiva foi organizada para visitar a fazenda. Em charretes e carroças, os missionários se dividiram para cruzar a esburacada Estrada de Itapecerica. Rodaram na estrada de chão entre dezenas de chácaras até alcançar a propriedade da família Teizen, em uma das colinas mais altas da paisagem. A fazenda tinha regatos de água limpa, grandes porções de Mata Atlântica original da região, espaço para a construção de um açude, hortas, plantações, gado. Resolveram fechar negócio!

Pelo fato de as correspondências demorarem muito para chegar, o casal de missionários Augusta e John Boehm decidiu emprestar o valor de uma herança para que a propriedade pudesse ser comprada mais rapidamente. Entusiasmados com essa possibilidade, eles se mudariam para a propriedade e seriam os primeiros professores do seminário.

Em 6 de maio de 1915, tomaram posse da fazenda e iniciaram os trabalhos literalmente dentro de barracas, pois a propriedade possuía apenas uma velha casa sem telhado. Jovens de várias partes do Brasil começaram a chegar depois que a Revista Adventista noticiou:“Considerando que está próximo o fim e a grande necessidade que temos de obreiros preparados, rogamos a todos os irmãos que enviem seus filhos ao nosso seminário a fim de educá-los para a obra do Senhor, auxiliando esta obra com suas orações”(Paul Hennig, Revista Adventista, ed. março de 1916, p. 2). O objetivo inicial dessa instituição era formar jovens brasileiros para serem obreiros, pastores e professores da denominação. Com o crescimento da instituição e de seus serviços, sua nomenclatura foi mudando ao longo das décadas.

A instituição que tinha sido criada para ser um seminário, logo mudou seu nome para Collegio Adventista (conforme a grafia da época). Os seminários no Brasil daquela época eram instituições que educavam apenas meninos, e o internato adventista pretendia receber meninas também.

Anos depois, devido aos desdobramentos da II Guerra Mundial, o Collegio passou a se chamar Colégio Adventista Brasileiro (CAB). Passaram a ser oferecidos os cursos para a formação no primário, ginásio e colegial. Um conservatório musical foi construído, ampliando as opções. Além disso, o curso de Enfermeiro Padioleiro passou a ser grandemente promovido, possibilitando que jovens adventistas servissem a pátria como enfermeiros, caso fossem convocados para a guerra. Com o desenvolvimento de uma linha de produtos naturais, um prédio próprio foi construído para abrigar a fábrica do colégio, que passou a ser conhecida como Superbom.

Nos anos 1960, a direção sonhava com o estabelecimento da Faculdade Adventista de Enfermagem e a expansão de sua atuação. Resolveram mudar seu nome para Instituto Adventista de Ensino. O famoso IAE conquistou a aprovação do curso de Enfermagem, que foi o pontapé inicial para o estabelecimento de uma série de outros cursos de graduação e, posteriormente, de pós-graduação.

Porém, cada vez mais a fazenda na qual o campus havia sido plantado se via em meio à urbanização. Poderiam os pastos, as lavouras e cabeças de gado holandês subsistir no já populoso Capão Redondo?

A região mais adventista do mundo

A antiga Missão Paulista, fundada em 1906, expandiu-se ao longo das décadas. Atualmente, a cidade de São Paulo e os municípios vizinhos contam com cinco Associações (sedes administrativas da igreja), que foram diretamente potencializadas com o crescimento do seminário: Paulistana, Paulista Central, Paulista Leste, Paulista Oeste e Paulista Sul. Os formandos saíam prontos para atuar no campo missionário.

Ao conversar com os visitantes do Centro de Memória UNASP São Paulo, sempre pontuamos esse paralelo: em 1915, quando o seminário foi fundado, a cidade de São Paulo possuía em torno de 300 mil habitantes. Atualmente, só o bairro do Capão Redondo tem essa população, e a cidade como um todo já passou dos 12 milhões de moradores. Seria impossível continuar com uma grande fazenda no meio da cidade. A instituição precisou se reinventar para tentar atender parte das inúmeras demandas da cidade que se adensou cada vez mais em seu entorno.

O choque inicial de uma possível desapropriação deu início a um processo de expansão que seus líderes custaram a acreditar ser possível. Em 1979, foi divulgado um decreto de desapropriação. Entre negociações, idas e vindas, conseguiram fazer com que 30% da instituição permanecesse no Capão Redondo. Nesses 30% estariam os principais prédios de aulas, a administração, o templo e os dormitórios. Os 70% desapropriados envolviam as áreas utilizadas para a pecuária, agricultura e cultivo de hortaliças, além da porção de mata que foi preservada no projeto de desapropriação e se tornou o atual Parque Municipal Santo Dias. As áreas de pastagem e plantações viriam a ser bairros de conjuntos habitacionais, conhecidos hoje como COHAB Adventista, onde moram centenas de famílias.

Como parte do legado do então seminário, atualmente conhecido como UNASP, e da denominação adventista na região, podemos destacar alguns pontos. O distrito do Capão Redondo se tornou uma das maiores concentrações de igrejas e escolas primárias adventistas no mundo. Só na Paulista Sul, em um raio de 10 quilômetros em volta do UNASP, existem mais de 70 igrejas, que reúnem aproximadamente 25 mil membros. A igreja do próprio UNASP possui mais de 4 mil membros, seguida pela do Capão Redondo, onde congregam mais de 2,7 mil adventistas, e Alvorada com 1,9 mil membros, ambas fundadas por professores e colaboradores do UNASP, assim como muitas outras posteriormente.

Muitas melhorias na velha Estrada de Itapecerica foram feitas pelos pioneiros do seminário. O primeiro telefone do distrito foi instalado dentro do seminário. A primeira indústria adventista de produtos alimentícios no país, a Superbom, teve seu início também dentro do campus, com a produção de suco de uva integral. Muitas ruas do Capão Redondo levam o nome de personagens adventistas que fizeram a diferença no desenvolvimento do seminário e seus arredores. A Avenida Ellis Maas, uma das maiores do distrito, leva o nome de um diretor do colégio que trabalhou muito para o estabelecimento do curso ginasial e da fábrica da Superbom. A Rua Domingos Peixoto, onde está localizada a matriz da indústria de alimentos, homenageia o primeiro diretor brasileiro do então Colégio Adventista Brasileiro (CAB). A Rua Pastor Jerônimo Granero Garcia é uma homenagem ao aluno, professor e diretor do CAB que morou durante muitos anos na rua que leva seu nome. Por sua vez, a Rua Professora Eunice Bechara de Oliveira homenageia aquela que foi membro da comunidade adventista e faleceu em uma tragédia automobilística.

Em 107 anos de história, a instituição ampliou bastante sua influência. Atualmente, somente o campus do Capão Redondo atende mais de 6 mil alunos, desde o maternal, passando pela educação básica, cursos de graduação e pós-graduação, até os que frequentam o Centro Esportivo, a Academia de Artes e o Centro de Línguas.

Com o valor da desapropriação da fazenda do IAE foi possível comprar a Fazenda Lagoa Bonita no município de Engenheiro Coelho, e dar início ao “Novo IAE”, conhecido atualmente como UNASP, campus Engenheiro Coelho. Posteriormente, o IASP passou a fazer parte da estrutura do centro universitário, sendo conhecido atualmente como UNASP, campus Hortolândia. E com as possibilidades do ensino a distância, nos anos 2000 foi aberto o UNASP EAD. Em 2018, foi registrado na Prefeitura de São Paulo o tombamento do complexo do UNASP, campus São Paulo, sendo, inclusive, o primeiro do distrito do Capão Redondo. Esse ato administrativo representou o reconhecimento da população e do poder público quanto à relevância histórica, arquitetônica, cultural e ambiental dessa instituição centenária.

SAIBA +

A urbanização do Capão Redondo

Até 1930, o Capão Redondo possuía pouquíssimas casas e edificações em sua paisagem. Sitiantes derrubavam as matas para a produção de carvão vegetal e plantavam hortaliças para serem comercializadas em Santo Amaro.

Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

Nos anos 1950, o colégio já está plenamente estabelecido na região, com prédios de aulas, dormitórios, auditório, conservatório, Superbom. As imediações da Avenida Ellis Maas, no centro do Capão Redondo, são loteadas para moradia de professores e pais de alunos. Começam a aparecer também os migrantes.

Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

Nos anos 1980, 70% da propriedade da fazenda do IAE são desapropriados. A instituição passa a oferecer mais opções de cursos de graduação. A mata do colégio é preservada para a organização do Parque Municipal Santo Dias e habitações populares começam a ser construídas.

Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

Nos anos 1990 e 2000, o Capão Redondo perde definitivamente todas as suas características rurais. Ruas são asfaltadas, o poder público passa a tentar oferecer melhores condições de saúde, educação e segurança nessa região que se tornou uma das mais vulneráveis e violentas da cidade. A instituição continua expandindo o ensino básico e superior para atender a demanda local e de outras regiões.

Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

Atualmente, cerca de 300 mil pessoas moram no distrito do Capão Redondo e somente esse campus do Unasp atende mais de 6 mil alunos da região.

Crédito: Acervo do Centro de Memória / UNASP

EMILY KRUGER BERTAZZO, mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, é coordenadora do Centro de Memória do Unasp, campus São Paulo

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Veja a websérie que conta outros detalhes da história do Unasp.

Episódio 1

O sonho da Educação Adventista chega ao Brasil – EP 01 | UNASP 107 anos

Episódio 2

A construção do UNASP se torna realidade – EP 02 | UNASP 107 anos

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O legado leva ao novo passo: ser universidade!

Última atualização em 17 de agosto de 2022 por Márcio Tonetti.