Novo curso de Medicina no Unasp é um marco para a Igreja Adventista no Brasil
Thamires Mattos
Era um dia tranquilo às margens do rio Amazonas. Naquela época, não havia celulares, computadores ou televisores à vista. Telefones eram uma raridade. Enquanto isso, um casal buscava soluções, mas suas forças estavam se esgotando. A pequena filha, com apenas três meses de vida, ardia em febre. O pai, desesperado, fazia sinal para os barcos e as lanchas que passavam perto de sua casa, na esperança de conseguir transporte até o hospital mais próximo. Atendendo aos apelos de socorro, uma lancha parou, mas, em vez de a bebê ser levada ao hospital, foi o hospital que chegou até ela.
Essa era a Luzeiro, uma unidade móvel de saúde e evangelização que levava assistência médica, odontológica e espiritual às comunidades ribeirinhas isoladas ao longo dos rios da Amazônia. A bordo estavam Leo Halliwell, engenheiro e pastor, e sua esposa, Jessie, enfermeira. Sob os cuidados de Jessie, a bebê febril recuperou a saúde.
A família, composta pela bebê e seus pais, Agilberto e Santina Rocha, ficou profundamente impressionada com a situação. Em gratidão, o casal decidiu nomear a criança de Jessie, em homenagem à dedicada profissional de saúde, e manifestou interesse em conhecer mais sobre o Deus que guiava a lancha Luzeiro. Pouco tempo depois, a família já fazia parte da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ao se mudarem para Manaus (AM), tornaram-se pioneiros do trabalho adventista na região durante a década de 1930.
Agilberto, carpinteiro, foi quem fez os bancos da Igreja Central de Manaus. Jessie, ao crescer, cursou enfermagem e dedicou muitos anos de sua vida à área da saúde. Seu sobrinho, Everton Gomes, também escolheu a área da saúde e se tornou médico. “A minha família tem uma ligação forte com a obra médico-missionária, porque não somente salvou a vida da minha tia, mas foi por meio dessa obra que tivemos contato com a verdade”, reconhece.
Essa tradição de cuidado integral e salvador foi o que motivou os adventistas a sonharem com um curso de Medicina no Brasil. Agora, esse sonho se tornou realidade. Everton Gomes, cuja conversão é fruto da obra médico-missionária, assumirá o papel de coordenador da graduação.
“Essa formação busca inspirar cada futuro médico a compreender que sua vocação vai além do consultório, alcançando as dimensões do ministério e da missão”, reflete Gomes, destacando o compromisso do curso em formar profissionais que aliem excelência técnica a uma visão de serviço e dedicação ao próximo.
Esforço conjunto
O curso de Medicina do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) foi oficialmente aprovado pelo Ministério da Educação (MEC) no dia 7 de novembro de 2024. A solicitação estava em tramitação há dois anos, embora os preparativos para sua implementação tivessem começado bem antes.
“O sentimento de gratidão é muito grande. Sentimos que fomos usados por Deus”, celebra Martin Kuhn, reitor do Unasp, ao comentar a conquista, que representa um marco importante para a instituição e para a educação adventista no Brasil.
A abertura do curso de Medicina no Unasp é fruto de um processo longo e minuciosamente planejado. O esforço incluiu a construção de uma infraestrutura robusta e moderna, bem como a elaboração e organização de quase 10 mil documentos que demonstraram a capacidade técnica e acadêmica da instituição para atender aos rigorosos requisitos do MEC, conforme explica o pró-reitor de Graduação do Unasp, Edilei Lames.
O caminho para a aprovação do curso de Medicina envolveu etapas rigorosas. A avaliação presencial realizada pelo INEP/MEC analisou diversos aspectos, como a infraestrutura, a qualificação do corpo docente e as parcerias estabelecidas com hospitais e unidades do Sistema Único de Saúde (SUS). O esforço dedicado foi recompensado com a nota máxima concedida pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Nacional de Saúde, algo raro no processo de aprovação de cursos de Medicina.
O campus Hortolândia já teve o curso de Medicina aprovado. Localizado próximo a Campinas, a terceira maior cidade do estado de São Paulo, a instituição se destaca por sua localização estratégica. Além disso, outro pedido para a oferta do curso no campus da capital paulista está em análise pelos órgãos governamentais.
Cerca de dois anos foram dedicados à adequação do campus Hortolândia para atender às exigências do MEC. Durante esse período, foram construídas salas de aula tecnológicas, espaços de convivência e uma série de laboratórios que não apenas atenderão ao curso de Medicina, mas também já trouxeram um novo dinamismo à instituição.
“Essa infraestrutura tem fomentado a interdisciplinaridade e promovido a integração institucional tanto no ensino superior quanto na educação básica”, destaca Henrique Romaneli, vice-reitor do Unasp para a Educação Básica e diretor do campus Hortolândia.
Além dos critérios técnicos, a estratégia acadêmica adotada pelo Unasp foi determinante. Segundo Allan Novaes, pró-reitor de Pesquisa e Desenvolvimento Institucional, o curso foi planejado para se alinhar aos objetivos de expansão da pesquisa na instituição.
“Medicina é uma área inerentemente ligada à inovação, ao desenvolvimento tecnológico, e está conectada ao Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde. Saber que o futuro curso de graduação seria implementado em um campus onde já há um processo consolidado na área da saúde trouxe credibilidade e consistência ao projeto”, esclarece. Essa sinergia com o programa de mestrado foi um diferencial importante, destacado na avaliação do MEC.
Outro aspecto essencial para a aprovação do curso foi o histórico da Igreja Adventista na área da saúde, considerado estratégico para a denominação. Segundo Novaes, “a Igreja Adventista tem um olhar especial sobre três áreas: saúde, educação e teologia. Essas áreas refletem nossa identidade e nosso compromisso com a sociedade, sendo a saúde uma das que mais impacta socialmente.”
Por sua vez, Martin Kuhn reforça que o apoio da União Central Brasileira e da Divisão Sul-Americana foi fundamental para a criação do curso. “O Unasp quer preservar o legado da mensagem de saúde que a Igreja Adventista carrega”, garante.
Estrutura de ponta
O curso de Medicina do Unasp estabelece-se como uma nova referência em ensino, oferecendo uma infraestrutura que combina tradição e modernidade. No campus, os estudantes dispõem de laboratórios de última geração, projetados para integrar teoria e prática. Entre os destaques estão os espaços dedicados à Anatomia Humana, Fisiologia e Biofísica, além de laboratórios especializados em Microscopia, Genética, Microbiologia, Parasitologia e Bioquímica. A Semiologia e a Simulação Realística contam com um espaço exclusivo, proporcionando experiências imersivas que simulam situações do cotidiano médico. No primeiro ano de funcionamento (2025), serão ofertadas 60 vagas. Afonso Cardoso, vice-reitor do Unasp para Graduação, ressalta: “O curso de Medicina confere reputação e projeção à instituição e reforça o conceito de excelência acadêmica e de qualidade nos serviços que oferecemos.”
O diferencial do curso vai além da excelência dos laboratórios. Desde o primeiro semestre, os alunos serão inseridos no contexto prático do SUS, permitindo que a vivência clínica seja parte fundamental de sua formação. Essa integração é viabilizada por uma ampla rede de parcerias, que inclui hospitais renomados, como o Hospital Mário Covas, e instituições de destaque, como a Irmandade de Misericórdia e a Real Beneficência Portuguesa de Campinas.
“Os estudantes serão desafiados a desenvolver habilidades de liderança por meio de programas que os colocam em contato direto com diversas realidades sociais, como projetos de saúde comunitária, missões e iniciativas em regiões carentes. Essa vivência prática os prepara para atuar como líderes transformadores em suas comunidades, promovendo saúde, equidade e esperança”, explica Gomes, coordenador do bacharelado.
Além disso, o curso conta com a parceria da Adventist Health Brasil, a rede de saúde da Igreja Adventista no país. Essa colaboração oferece aos alunos inúmeras oportunidades de prática e estágios, além de acesso a programas de internacionalização, que incluem, por exemplo, intercâmbios com a Universidade Adventista de Montemorelos, no México, e a Universidade Peruana União (UPeU).
Ensinar os futuros médicos a enxergar os pacientes de forma empática e a conectar ciência e fé são prioridades do curso. Segundo o coordenador, a metodologia incentivará os estudantes a aplicar seus conhecimentos científicos à luz de princípios espirituais, promovendo uma medicina que respeite a dignidade humana e reconheça o papel de Deus no processo de cura.
Essa formação vai além da técnica, preparando médicos para atuarem como líderes em suas comunidades e agentes de transformação social. A visão adventista de saúde integral, que considera as dimensões física, mental e espiritual, é um dos pilares do currículo. Gomes explica: “Disciplinas como Bioética, Psicologia Médica e Espiritualidade na Saúde terão um papel central ao ensinar os estudantes a abordar os pacientes de forma integral, conectando ciência e fé. Além disso, práticas como saúde preventiva, promoção de hábitos saudáveis e uso de tratamentos naturais, alinhados à mensagem de saúde adventista, serão enfatizadas, garantindo que os futuros médicos promovam não apenas a cura, mas também o bem-estar físico, mental e espiritual.”
Medicina e missão
A rede adventista de saúde desempenha um papel que transcende a formação técnica de seus médicos, fundamentando-se em uma filosofia que abarca o cuidado físico, mental e espiritual. Essa abordagem se consolida como um modelo de atendimento voltado para o bem-estar integral.
Ellen White, cofundadora da Igreja Adventista, em consonância com os ensinamentos bíblicos, enfatizava que o corpo humano é o templo do Espírito Santo e, por isso, deve ser cuidado com dedicação por meio de práticas naturais e hábitos saudáveis. Essa visão, considerada revolucionária em sua época, no século 19, antecipou importantes descobertas científicas sobre a relevância da medicina preventiva e do estilo de vida na promoção e manutenção da saúde.
O conjunto dos oito remédios naturais, descritos por Ellen White como essenciais para uma vida saudável, foi originalmente apresentado em 1905, na obra A Ciência do Bom Viver. Esses princípios formam um sistema integrado de práticas que permanecem atuais e alinhados com avanços científicos contemporâneos: o uso terapêutico da água pura, tanto para consumo quanto para tratamentos; a prática regular de exercícios físicos, preferencialmente ao ar livre; a exposição adequada à luz solar, essencial para a síntese de vitamina D; a respiração de ar puro; a adoção de uma alimentação equilibrada, com ênfase em vegetais, frutas e grãos integrais; a abstinência de substâncias prejudiciais, como álcool e tabaco; o descanso apropriado, com destaque para o sono regular e a observância do sábado; e a confiança em Deus como base para o equilíbrio emocional e espiritual.
A efetividade desses princípios tem sido amplamente comprovada por extensivas pesquisas científicas, especialmente nos estudos realizados em Loma Linda, nos Estados Unidos, uma das cinco “zonas azuis” reconhecidas mundialmente – regiões onde as pessoas apresentam maior longevidade e qualidade de vida.
De fato, a comunidade adventista de Loma Linda tem sido objeto de diversos estudos epidemiológicos que evidenciam uma expectativa de vida cerca de 10 anos superior à média nacional dos Estados Unidos, além de menores índices de doenças crônicas, como câncer, diabetes e enfermidades cardiovasculares. Esses resultados notáveis são amplamente atribuídos à adesão aos princípios de saúde estabelecidos por Ellen White, que promovem um estilo de vida saudável e equilibrado.
Essa filosofia demonstra seu poder transformador na promoção do bem-estar físico, mental e espiritual, especialmente em uma era marcada por desafios crescentes à saúde. “Hoje, em nosso país, as principais causas de morte já não são mais as doenças infecciosas, mas as doenças não transmissíveis, como as cardiovasculares, os diversos tipos de câncer e as doenças do aparelho respiratório – a grande maioria associada ao estilo de vida”, destaca Dorival Duarte, médico e professor do curso de Medicina do Unasp.
Para ele, os adventistas são pioneiros em medicina preventiva e no campo do estilo de vida, áreas que se mostram essenciais para a formação de médicos preparados para enfrentar os desafios contemporâneos e atuar de forma relevante na sociedade.
A inovação, portanto, está no DNA da saúde adventista, englobando ciência, atendimento e compreensão do paciente. “Deus revela coisas maravilhosas à humanidade e, em nome Dele, devemos sempre almejar oferecer o máximo, o melhor da ciência, às pessoas”, afirma o reitor do Unasp, Martin Kuhn.
Ministério de jaleco
Ellen White afirmou que, de acordo com a filosofia de saúde adventista, “o médico deve reunir em sua alma a luz da Palavra de Deus. Deve fazer contínuo progresso na graça. Para ele, a religião não deve ser meramente uma influência entre outras. Tem de ser uma força que domine todas as outras. Deve agir por elevados e santos motivos – motivos que são poderosos porque provêm Daquele que deu Sua vida para nos proporcionar poder a fim de vencer o mal” (A Ciência do Bom Viver [CPB, 2021], p. 62).
Jean Zukowski, professor de Teologia da Faculdade Adventista da Amazônia, ressalta que a educação médica adventista integra a cura física, mental e espiritual desde sua origem. O objetivo é formar médicos que, além da excelência técnica, atuem como agentes de restauração completa do ser humano. Esse modelo se expandiu mundialmente e se reflete nos currículos das faculdades adventistas de Medicina, que combinam conhecimento científico com disciplinas de ética, capelania e espiritualidade no contexto da saúde. “A abordagem integral da saúde capacita os médicos adventistas a se destacarem em sua prática, sendo frequentemente vistos como profissionais que oferecem algo além da cura física: um cuidado compassivo que abrange todas as dimensões da vida”, reflete.
Gerson Trevilato, médico e diretor do Hospital Adventista do Pênfigo, em Campo Grande (MS), corrobora esse conceito ao dizer que “o objetivo da medicina adventista é mostrar para as pessoas que Jesus as ama”. Nesse contexto, é fundamental que exista uma formação própria para isso: “Uma faculdade com princípios éticos e espirituais faz muito sentido. Ela formará profissionais que terão um olhar diferenciado na medicina”, destaca.
A médica Jocimara Fernandes acrescenta que essa formação levará os alunos a entender seu talento e sua profissão como uma missão. E isso fará uma diferença enorme na formação desses profissionais.” Everton Gomes reitera que, na instituição, “a medicina será apresentada não apenas como um meio de atender às necessidades físicas, mas também de oferecer conforto espiritual e esperança”. Por isso, os alunos serão preparados para atuar nos locais que mais necessitam de atenção, como regiões carentes e campos missionários.
Dorival Duarte também destaca o potencial missiológico e de promoção da saúde do curso. “O estudante poderá, a partir da vivência dos princípios de saúde em sua própria vida, compartilhar com convicção esses princípios com as comunidades onde estará inserido em suas práticas”, reforça.
Mais do que um novo curso superior, o curso de Medicina do Unasp representa a materialização de um sonho coletivo da comunidade adventista brasileira, que agora poderá formar médicos alinhados com sua visão integral de saúde e missão. Em um momento no qual o país enfrenta desafios significativos na área da saúde, essa iniciativa surge como uma resposta concreta à necessidade de profissionais que vejam a medicina não apenas como profissão, mas como ministério.
THAMIRES MATTOS é professora dos cursos de Comunicação Social e Jornalismo no Unasp
(Matéria de capa da Revista Adventista de janeiro/2025)
Última atualização em 10 de janeiro de 2025 por Márcio Tonetti.