Nas águas do Velho Chico

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A história das lanchas que levaram assistência médica e a mensagem adventista para a população às margens do rio São Francisco

Loriza Kettle

Foto: Centro Nacional de Arquivos Históricos Adventistas

Não há como falar da obra médico-missionária sem lembrar das lanchas Luzeiro, dada a relevância desse trabalho. Esse projeto começou no início do século 20, com o casal norte-americano Leo e Jessie Halliwell, e se tornou mundialmente conhecido.

A estratégia era muito eficaz. Percorrendo os rios do Amazonas e dos estados vizinhos, os missionários alcançavam ribeirinhos com problemas de saúde e prestavam assistência médica ali. Depois, convidavam essas pessoas para assistir às séries evangelísticas ministradas à noite. Muitos foram impactados pela nossa mensagem dessa maneira. Muita gente não sabe, mas o trabalho das lanchas Luzeiro inspirou muitos outros projetos Brasil afora.

Um deles foi amplamente desenvolvido na região do rio São Francisco, mais especificamente no trecho entre Pirapora (MG) e Juazeiro (BA). Foi nessa região que navegaram as lanchas Luminar, cujo trabalho de assistência social e evangelística também contou com a participação de um norte-americano. Leslie Charles Scofield Júnior chegou ao Brasil em 1956 com o objetivo de prestar auxílio à população carente da região do Vale do São Francisco. Scofield associava o evangelismo ao trabalho de assistência social à população ribeirinha.

Essa história foi lembrada em uma reportagem veiculada recentemente por uma afiliada da TV Globo em Minas Gerais. Conforme foi destacado, ao concluir a graduação em Medicina e o mestrado em Saúde Pública nos Estados Unidos, Scofield voltou ao Brasil, implementando um sistema regional de saúde para o norte de Minas Gerais, que ficou conhecido como Projeto Montes Claros. Segundo a reportagem, essa iniciativa, que celebrou seu 50º aniversário em setembro, teria inspirado a criação do SUS, um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo.

O INÍCIO DA HISTÓRIA

Ainda pouco conhecida até mesmo entre os adventistas, a história das lanchas Luminar começa em 1948, com o pastor Paulus Simon Seidl. Nesse ano, foi construída a Luminar I, que atendeu mais de 400 mil enfermos em um período de aproximadamente sete anos. Depois disso, Leslie Charles Scofield Júnior passou a comandar a embarcação. No entanto, a Luminar I era muito pequena e não tinha espaço para atender os doentes, além de encalhar com frequência. Os atendimentos eram realizados na proa da lancha. Após Scofield trabalhar por cinco anos na Luminar I no rio São Francisco, o governo de Juscelino Kubitschek doou verba para a construção de uma nova lancha, a Luminar II.

Foi elaborado um plano para a construção de uma lancha maior e melhor, com 20 metros de comprimento e uma clínica flutuante. Nessa clínica, centenas de pessoas foram atendidas. Com a chegada do novo barco, a Luminar I foi devolvida para a Bahia, e Cipriano Moraes assumiu o comando, prestando assistência aos municípios de Xique-Xique e Juazeiro. Nessa época, o rádio anunciava a chegada da lancha no cais, enquanto os missionários distribuíam folhetos sobre saúde e convites para os encontros evangelísticos. Uma multidão se aglomerava na beira do rio para receber o barco. Após alguns anos atendendo a população, a Luminar I saiu temporariamente de circulação devido a problemas técnicos.

Mais tarde, o pastor Dido Pereira Santos assumiu seu comando. Ele contava com uma equipe de voluntários, incluindo marinheiros, cozinheiros, enfermeiros, dentistas e médicos. O acesso a medicamentos era caro, e a população ribeirinha enfrentava muitas dificuldades para receber atendimento médico, uma vez que não havia postos de saúde próximos. A essa altura, a Luminar I já era uma lancha antiga e desconfortável, mesmo com as reformas e adaptações. Embora ainda estivesse ajudando a atender às necessidades dos ribeirinhos, o pastor Dido Santos decidiu construir uma lancha maior e mais eficiente, a Luminar V.

Assim, no início da década de 1980, a Luminar V já estava em plena atividade pelas águas do rio São Francisco, proporcionando mais velocidade, segurança e espaço para o trabalho. A lancha passava pelos municípios de Malhada, Cariranha, Bom Jesus da Lapa, Caratinga, Ibotirama, Santa Maria da Vitória, Morpará, Barra e Xique-Xique.

MUDANÇA DE DIREÇÃO

Depois de servir aos ribeirinhos no interior da Bahia por mais de uma década, o pastor Dido Santos foi chamado para atuar em sua terra natal, Januária (MG), onde seu irmão, pastor Dirson Pereira Santos, trabalhava na Luminar II. Com a mudança, Dido Pereira passou a ser o comandante da Luminar II, em Minas Gerais. Por sua vez, Dirson foi comandar a Luminar V e a Luminar I, na Bahia, viajando entre os municípios de Malhada e Xique-Xique, em uma extensão de quase 500 quilômetros.

Além de lancheiro, também atuava como pastor distrital em Bom Jesus da Lapa, Ibotirama, Paratinga e Cidade da Barra. “Durante 18 anos, tive o privilégio de trabalhar como comandante das lanchas Luminar”, conta o pastor Dirson Santos, que está jubilado e mora em Januária (MG).

VOLTANDO À LUMINAR II

A inauguração da Luminar II aconteceu em fevereiro de 1962, e sua sede de apoio ficava no município de Pirapora (MG), sob o comando de Leslie Scofield e sua esposa, Donna. O barco percorria cerca de 400 km ao longo do rio São Francisco, indo do norte de Minas Gerais até o sul da Bahia.

Foi nessa época que Adilson Carlos Rodrigues Siqueira conheceu a mensagem adventista. Em 1954, com apenas cinco anos de idade, ele já havia perdido a mãe. Seu pai ficou doente e também morreu pouco tempo depois. Órfão, o pequeno foi levado para a Fazenda São Pedro, no município de Pedras de Maria da Cruz (MG), a fim de ser feito escravo por seus algozes. Depois de anos de sofrimento, missionários visitaram a fazenda e ofereceram estudos bíblicos para os moradores.

Todos aceitaram o evangelho e, em 1966, Adilson foi batizado juntamente com outras 30 pessoas por Leslie Scofield no rio São Francisco. Scofield não havia cursado a graduação em Teologia, mas foi ordenado ao ministério devido ao seu trabalho evangelístico. Após o batismo, Siqueira foi morar em um orfanato administrado pela equipe das lanchas Luminar. Foi lá que ele desenvolveu as habilidades musicais, que lhe permitiram ingressar no quarteto que se apresentava nas conferências de Scofield.

“Tive uma convivência bem próxima com o missionário, pois o acompanhava nas conferências e cantava com o quarteto no fim das palestras. Também cheguei a acompanhá­-lo durante o atendimento de uma pessoa com tifo. Eu ficava pensando como era possível alguém vir de tão longe para ajudar o próximo”, Adilson relembra.

No livro Esperança a Bordo (2021), Abdoval Cavalcanti relata que, além das atividades de evangelização e do tratamento de enfermidades, também era feito um trabalho de orientação acerca de como prevenir doenças.

Há registro da ação das lanchas Luminar até meados da década de 1990. E, conforme o autor ressalta, elas desempenharam papel muito importante no atendimento às populações que não tinham acesso à saúde. Além de levar cura física, foi o meio que Deus usou para levar salvação aos que viviam à margem da sociedade.

DE VOLTA AO BRASIL

Depois de trabalhar durante vários anos com as populações ribeirinhas do rio São Francisco, o médico-missionário Leslie Scofield deixou a organização adventista e se mudou novamente para os Estados Unidos, onde cursou Medicina na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, e mestrado em Saúde Pública na Universidade de Michigan. Mais tarde, de volta ao Brasil, com base no trabalho que havia desempenhado na Assistência Social Adventista, ele fundou a ONG que teria servido de inspiração para a implantação do SUS, o Instituto de Preparo e Pesquisa para o Desenvolvimento da Assistência Sanitária da Área Rural (IPPEDASAR).

LORIZA KETTLE é jornalista

(Reportagem publicada na Revista Adventista de novembro/2023)


Última atualização em 10 de novembro de 2023 por Márcio Tonetti.