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As leituras contemporâneas da Bíblia e suas implicações

Isaac Malheiros

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A Bíblia é uma obra literária riquíssima, e é razoável esperar que ela desperte e atraia múltiplas abordagens interpretativas. No entanto, as Escrituras não são apenas uma obra literária: elas são a Palavra de Deus escrita, inspirada e infalível. E admitir isso faz toda a diferença!

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Reflexão necessária

Quando adotamos essa afirmação como parâmetro, percebemos que algumas propostas de interpretação são incompatíveis com o que cremos e com nosso esforço de tentar compreender o correto significado do texto – o que Deus pretende comunicar –, sob a guia do Espírito Santo (1Co 2:14).

Há, basicamente, três dimensões na análise hermenêutica: (1) o autor, (2) o texto e (3) o leitor. Cada nova proposta hermenêutica se concentra em uma dessas dimensões, e muitas leituras contemporâneas enfatizam em demasia a perspectiva do leitor. Essas abordagens tendem a ignorar ou desprezar a intenção do autor do texto ou, no mínimo, creem que é impossível saber essa intenção.

Neste artigo, vamos avaliar, sob uma perspectiva adventista, algumas leituras bíblicas contemporâneas que têm adquirido relevância entre os cristãos na América do Sul, organizadas aqui em dois grupos: a Teologia da Prosperidade e as Teologias Contextuais da Libertação.

TEOLOGIA DA PROSPERIDADE

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Além de promover a barganha com Deus e a mercantilização da fé, em lugar do exercício da piedade com contentamento (1Tm 6:6), a Teologia da Prosperidade utiliza o “método texto-prova”, que é a citação de um verso bíblico sem levar em conta seu contexto histórico e literário, usando-o como prova de alguma afirmação que não emerge do texto. Essa abordagem, apesar de se apresentar como teologicamente conservadora, despreza a intenção do autor e interpreta o texto conforme seus interesses econômicos e existenciais. Assim, o método texto-prova produz omissões e ênfases que podem se tornar vícios hermenêuticos, levando a uma seletividade na citação de versos bíblicos, negando o princípio tota Scriptura e distorcendo a mensagem da Bíblia.

Invertendo a relação Senhor-servos, os pregadores da prosperidade afirmam que “quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na obrigação (por que prometeu) de cumprir a Sua Palavra” (E. Macedo, Vida com Abundância [Universal, 1996], p. 79). Essa postura se torna possível porque não se trata de uma teologia bíblica, que flui a partir do estudo do texto sagrado, mas de uma ideia pretensamente recebida de Deus, como afirma um dos principais promotores do movimento, Kenneth Hagin: “Eu nunca li a respeito dela num livro. Eu a recebi diretamente do Céu” (How God Taught Me About Prosperity [Hagin Ministries, 1985], p. 1).

Ao fomentar a cultura consumista, essa teologia representa uma acomodação cultural da igreja aos valores mundanos do “sonho americano”, adornando-o com versos bíblicos. O estilo de vida dos seguidores de Jesus é simples, pois a ostentação dos bens, “a soberba da vida”, é mundanismo (1Jo 2:16).

O aspecto antropocêntrico e egocentrado dessa teologia é visível nas expressões “eu determino”, “eu reivindico”, “eu ordeno” e “eu exijo”, que acompanham as orações e pregações. Assim, se essa fosse a mensagem pregada no cristianismo dos primeiros séculos, provavelmente os mártires não houvessem existido.

A Teologia da Prosperidade passou por atualizações, e atualmente emprega técnicas de coaching, programação neurolinguística e psicologia positiva. A antiga ênfase em dinheiro e saúde deu lugar ao bem-estar e à autoestima. É uma nova roupagem, mas o ser humano continua sendo o centro, enquanto a Bíblia se mantém aprisionada em um cativeiro cultural.

O método texto-prova produz omissões e ênfases que podem se tornar vícios hermenêuticos, levando a uma seletividade na citação de versos bíblicos, negando o princípio tota Scriptura e distorcendo a mensagem bíblica

Nas últimas décadas, essa teologia atraiu um braço político, ao desenvolver a ideia de que, na criação, os filhos de Deus receberam a incumbência de dominar sobre a Terra (Gn 1:28), o que passaria por aspectos políticos e culturais. Seus defensores apresentam propostas diversas: alguns defendem o nacionalismo cristão, outros se opõem à separação entre Igreja e Estado e há aqueles que defendem formas de teocracia cristã (teonomia).

Nesse sentido, muitos defensores da chamada Teologia do Domínio creem que a igreja vai fazer o Reino de Deus se manifestar visivelmente agora, subjugando os inimigos e preparando o caminho para a vinda de Jesus. Em uma antecipação do eschaton, o objetivo seria ter no mundo “repúblicas bíblicas teocráticas” (D. Chilton, ­Paradise Restored [Dominion Press, 1994], p. 226).

Essas ideias ganharam força com o movimento neopentecostal e a popularização dos conceitos de batalha ­espiritual, quebra de maldições e mapeamento espiritual. A batalha espiritual, por exemplo, ensina que as estruturas sociais podem ser possuídas por “espíritos territoriais”, e que “seres espirituais sobrenaturais exercem domínio sobre esferas geopolíticas” (P. Wagner, Warfare Prayer [Destiny Image, 2009], p. 92, 89). Isso tornaria ainda mais urgente a necessidade do domínio cristão em várias áreas da sociedade, a fim de libertar cidades e nações da opressão demoníaca.

Não podemos fechar os olhos para as implicações hermenêuticas dessas justificativas teológicas para se engajar na política. Em seu projeto de poder, as teologias do domínio instrumentalizam politicamente frases bíblicas como “feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (Sl 33:12), quando, de fato, a única nação cujo Deus é o Senhor hoje é a igreja (1Pe 2:9).

Outro elemento desse tipo de leitura é a alegorização das narrativas bíblicas de maneira triunfalista e completamente alinhada a uma visão de mundo ao mesmo tempo “mágica”, consumista e politizada. Dessa maneira, seus adeptos direcionam às nações contemporâneas profecias feitas a Israel e à igreja e aplicam a figuras políticas as promessas que só podem ser cumpridas por Jesus.

Na perspectiva adventista, qualquer tentativa de justificar esse tipo de manipulação das Escrituras é inaceitável. Não pregamos com a intenção de enganar, com artimanhas para tentar agradar ou bajular, nem com “pretextos gananciosos” (1Ts 2:3-6).

Biblicamente, temos uma genuína teologia do domínio: o domínio próprio, como fruto do Espírito (Gl 5:22). O domínio terrenal que Deus deu ao ser humano no Éden foi perdido, e só pode ser recuperado por Jesus, não pelo ativismo político do cristianismo (Hb 2:5-9). O engajamento cultural da igreja está ligado ao serviço amoroso e ao martírio, não ao domínio político.

TEOLOGIAS CONTEXTUAIS DA LIBERTAÇÃO

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No outro lado do espectro teológico, novas leituras bíblicas de caráter mais progressista têm conseguido espaço, especialmente entre os jovens. São as chamadas Teologias Contextuais da Libertação, que priorizam o contexto do leitor (como mulheres, negros e indígenas) e buscam promover mudanças na sociedade. Apesar de fazerem algumas denúncias pertinentes e defenderem certas pautas justas, essas teologias fazem afirmações temerárias sobre a Bíblia que merecem avaliação.

Quando o pai da Teologia Negra, James Cone, afirma não crer “que a Bíblia é um testemunho infalível” (A Black Theology of Liberation [Orbis Books, 1990], p. 31) nem que ela está “acima de qualquer crítica” ou serve “como um juiz absoluto na fé e na prática” (God of the Oppressed [Orbis Books, 1997], p. xii), fica evidente que o ponto de partida de sua teologia não são as Escrituras, mas a experiência negra: “Eu leio a Bíblia pelas lentes de uma tradição negra de luta e não como a palavra objetiva de Deus” (p. xi).

Colocar a sola Scriptura abaixo dos interesses materialistas ou da experiência resulta no ser humano ouvindo a sua própria voz e acreditando que foi Deus quem falou

Por sua vez, para a Teologia Feminista, a Bíblia não passa de um produto da misoginia patriarcal (N. Goldenberg, Changing of the Gods [Beacon, 1979], p. 22), e deve ser lida através de uma “hermenêutica da suspeita” (I. Gebara, “A feminist Theology of Liberation: A Latin American perspective with a view toward the future”, em Toward a New Heaven and a New Earth [Orbis Books, 2003), p. 256). Apenas os textos que “rompem criticamente a cultura patriarcal […] têm a autoridade teológica da revelação” (E. Schüssler-Fiorenza, In Memory of Her [Crossroad, 1994], p. 33). Os textos bíblicos “podem, portanto, representar a ‘Palavra de Deus’ e a ‘Sagrada Escritura’ apenas conforme determinado pelas próprias mulheres” (S. Schroer, “‘We will know each other by our fruits’: Feminist exegesis and the hermeneutics of liberation”, em Feminist Interpretation of the Bible and the Hermeneutics of Liberation [Continnuum-3PL, 2004], p. 9, grifo nosso).

A sugestão, portanto, é que as mulheres devem “examinar um texto e decidir com quais textos elas querem se identificar, quais querem contestar e quais querem descartar” (E. Cheney, She Can Read: Feminist Reading Strategies for Biblical Narrative [Trinity, 1996], p. 42). Por isso, parte do trabalho das teólogas feministas é desconstruir a ideia de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Seu exercício teológico procura “buscar a palavra de Deus com o texto, apesar do texto ou contra mesmo o texto” (E. Tamez, “A mulher que complicou a história da salvação (Agar: Gn 16 e 21)”, Estudos Bíblicos, v. 7, 1985, p. 58-61, grifo nosso).

Além dessas, ainda existem, por exemplo, as teologias queer, ecumênica, política, indígena, decolonial, cultural, ecumênica e emergente, que têm um acentuado caráter existencialista. Elas impõem ao texto as demandas existenciais, sentimentos e opiniões do leitor. Assim, a experiência, e não a Bíblia, torna-se o critério para julgar verdades e valores espirituais.

As Teologias Contextuais da Libertação também instrumentalizam politicamente a religião, fazendo a teologia perder “seu caráter próprio, para adotar um tom mais sociológico e político”, restando apenas uma “hermenêutica cristã da existência humana” (C. Boff, “Teologia da Libertação e volta ao fundamento”, Revista Eclesiástica Brasileira, v. 67, 2007, p. 1007). O pecado é definido como se fosse as estruturas sistêmicas de opressão na vida econômica, política e social, ou como atos individuais que reforçam essas estruturas de opressão. Assim, a libertação seria a superação do capitalismo, do patriarcado, do racismo e da ­homofobia, entre outros pontos.

CONCLUSÃO

Nenhuma dessas opções de leitura da Bíblia parece servir para quem crê na inspiração e na autoridade das Escrituras. Cristãos bíblicos não lerão as Escrituras com o grau de seletividade, manipulação e suspeita que essas leituras exigem.

O evangelho pregado por essas teorias não são o poder de Deus para a salvação eterna de todo aquele que crê. São apenas a força humana para conseguir objetivos individuais e transformar as estruturas sociais. É humanismo com verniz religioso.

Infelizmente, é possível que o ethos da Teologia da Prosperidade tenha encontrado espaço entre nós. O estilo de vida do povo do advento não combina com a ostentação e acumulação incentivados pela Teologia da Prosperidade.

O método texto-prova contraria a visão adventista das Escrituras e as diretrizes adventistas de interpretação bíblica. O documento “Métodos de Estudo da Bíblia” (1986) recomenda estudar “o contexto da passagem sob consideração, ­relacionando-o com as sentenças e parágrafos que a precedem e os que a seguem”. A igreja deve cuidar quando palavras das Escrituras “são separadas do contexto” e “tais passagens desconexas são distorcidas e usadas para provar doutrinas que não têm fundamento na Palavra de Deus” (Ellen G. White, O Grande Conflito [CPB, 2021], p.450).

A ideia de que os cristãos vão dominar o mundo e continuamente torná-lo um lugar melhor para que Jesus finalmente volte é uma distorção do tema do grande conflito e vai contra a previsão de que “nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis” (2Tm 3:1). São teorias incompatíveis com a Bíblia, que apresenta o próprio Deus trazendo soberanamente o Seu Reino – a pedra que é cortada “sem auxílio de mãos” (Dn 2:34).

A ênfase existencialista das Teologias Contextuais também é um problema. A experiência é importante na interpretação bíblica, pois a fé cristã é uma questão tanto do coração quanto da mente. Porém, ela deve ser balizada pela Palavra, não ser tratada como uma juíza à parte do texto sagrado (ou contrário a ele). A Bíblia é a prova da experiência, pois a experiência pode não ser confiável: “Nenhum outro escrito, nem a tradição, nem a sabedoria ou a experiência humana deve ser posto no mesmo nível que a Bíblia” (P. M. van Bemmelen, “Revelação e inspiração”, em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia [CPB, 2011], p. 49).

Além disso, todas essas teologias instrumentalizam politicamente a fé, ao longo de todo o espectro ideológico. Por conta da agitação social da última década, muitos de nós estamos inebriados e intoxicados politicamente e precisamos buscar, em arrependimento, a sobriedade. É uma questão de lealdade: “Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence da forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa” (C. S. Lewis, O Peso da Glória [Thomas Nelson, 2017], p. 38).

Precisamos ficar atentos às opções. Por vezes, quem denuncia um erro propõe como solução um erro oposto. A pregação antropocêntrica da autoafirmação pode vir de várias formas. Se o evangelho se desfaz com a Teologia da Prosperidade, não se refaz com essas Teologias Contextuais. Não somos obrigados a escolher entre opções igualmente ruins. Colocar a sola Scriptura abaixo dos interesses materialistas ou da experiência resulta no ser humano ouvindo sua própria voz e acreditando que foi Deus quem falou.

O fato de teólogos e pregadores cristãos defenderem essas ideias é um problema antigo e, em sua época, Ellen White já denunciava: “Muitos professos ministros do Evangelho não aceitam toda a Bíblia como a Palavra inspirada” (Exaltai-O [MM 1992], p. 116). É uma “incredulidade disfarçada de cristianismo, enquanto abala a fé nas Escrituras como revelação de Deus” (Serviço Cristão [CPB, 2022], p. 47).

ISAAC MALHEIROS é professor da Faculdade Adventista de Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho

(Matéria de capa da Revista Adventista de julho/2023)

Última atualização em 20 de julho de 2023 por Márcio Tonetti.