O amigo dos pobres

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A história do filantropo australiano que, por entender um chamado de Deus, ajudou a alimentar mais de um milhão de pessoas nos últimos 20 anos
Em junho de 2017, a Fundação Rotary da Austrália entregou a Dennis Perry o prêmio Paul Harris Fellow, maior reconhecimento conferido à pessoas que se destacam na prestação de serviços à comunidade. Créditos da imagem: Theodora Amuimuia

“Vou encontrar você na estação vestindo meu uniforme”, explicou em tom simpático a voz ao telefone. “Para ficar mais fácil me identificar, camiseta, shorts e boné azul-marinho, com o símbolo do projeto”, completou. Eu sorri do outro lado. “Será fácil identificá-lo, senhor Perry. Estou vendo sua foto nas notícias sobre sua premiação.” Ele ri, espontâneo e acanhado. E apenas acrescenta: “Por favor, só uma gentileza: me chame apenas de Dennis.”

Dennis Perry, adventista de 70 anos, teve o rosto estampado em canais de comunicação da Austrália ao receber o prêmio do governo de Nova Gales do Sul pela contribuição exemplar à comunidade. “O senhor Perry é uma das pessoas mais inspiradoras que já encontrei”, declarou o parlamentar municipal Matt Kean, que lhe entregou a condecoração em dezembro. “Modesto, gentil e humilde, ele tem trazido esperança aos desesperançados. Ele tem dedicado a vida para Cristo e para servir aos outros. Seu amor altruísta é um modelo para todos os cristãos. Sua luz tem feito o mundo um lugar menos escuro, e nós somos um lugar melhor por causa de Dennis Perry”, completou Kean.

O jornal The Daily Telegraph também testemunhou. “O senhor Perry disse que foi sua fé cristã que o compeliu a ajudar a comunidade, e ele começou a prover alimentos, roupas e suporte […] para outras regiões de Papua- Nova Guiné, as Ilhas Cook, Kiribati e Tonga”, escreveu o periódico australiano ao publicar um perfil do adventista. A reportagem incluiu que o aposentado prega regularmente para mais de 500 prisioneiros na maior prisão de Papua-Nova Guiné, construiu escola para prover educação gratuita e estabeleceu um abrigo que cuida em tempo integral de crianças e juvenis em risco. “Quatorze anos atrás, Dennis Perry teve uma ideia que mudaria a vida de milhares de pessoas. Hoje ele é reconhecido por sua luta para findar a pobreza.”

Ao desembarcar do trem, encontro na estação um senhor em uniforme azul-marinho da missão que veste seu corpo e reveste sua alma.

“Tive fome, e vocês me deram de comer”

Era a segunda metade dos anos 1990, e ele lembra como se fosse ontem. O australiano só conhecia a pobreza por meio de noticiários e documentários. Até que, numa viagem de negócios a Tonga, foi confrontado com a miséria pela primeira vez.

Na estrada principal, não muito longe da capital, havia um lixão. Seus olhos foram ­atraídos para as pessoas que estavam ali, em cima do entulho, vestidas em trapos. “Fiquei chocado com o que vi. Eles estavam competindo com os porcos pela comida que podiam encontrar. Fiquei observando por uns 15 minutos, e então segui dirigindo.”

A cena, porém, não o deixou. Pouco depois, naquela mesma tarde, ele foi compelido a voltar. “Continuei assistindo aquilo. Havia ali umas 200 famílias vivendo literalmente no lixo. Clamei a Deus: “O que o Senhor está fazendo a respeito disso?” A resposta não tardou. “Deus me disse: ‘Dennis, estou fazendo algo a esse respeito. E é por isso que você está aqui’.” E continuou: “Agora, saia do carro e comece a alimentar essas pessoas.”

Um acanhado Dennis, desconfortável em seu terno e gravata, saiu do carro e de sua zona de conforto para servir quem estava no lixo. “Não estava preparado nem vestido adequadamente, mas conversei com aquelas pessoas. Apesar de Tonga ser um país cristão, nenhuma igreja os estava ajudando. Eles estavam vivendo assim por 15 anos!” Dennis foi ao mercado, comprou comida e os alimentou.

Aquele episódio mudou sua visão sobre o que é ser cristão. O olhar de Dennis agora brilha comovido ao me contar sobre as pessoas a quem serve desde aquele dia. Nos olhos de cada uma, ele vê Jesus olhando de volta. No condenado por assassinato que hoje é convidado a pregar para oficiais do exército. Na menina que não tinha mãe e viu o pai ser assassinado na sua frente. No pai que segura sua criancinha morrendo de Aids e recebe fruta fresca pela primeira vez. “Corpos feridos, corações quebrados. Se você é levado a alguém que precisa de ajuda e encorajamento, e você está ali, creio que Deus levou você para ajudar.”

Enquanto investe tempo e recursos para ajudar os que necessitam, Dennis serve de inspiração a outros. David Woolley, colega de escritório, decidiu somar forças à causa quando se aposentou e com Dennis fundou a Operation Food for Life (Operação Alimento Para a Vida). A organização sem fins lucrativos, apoiada pela Igreja Adventista, já tem alimentado mais de um milhão de pessoas. “Nunca imaginei que 20 anos depois viriam até nós voluntários para nos ajudarem. Não temos um patrocinador majoritário, nunca apelamos por dinheiro. Aprendemos que, se você tem fé e faz o que é reto diante do Senhor, os dois peixes e cinco pãezinhos que temos irão alimentar mais de 5 mil”, comenta Dennis.

Dennis também nunca imaginou que um dia construiria escolas. No dia da entrevista, ele havia acabado de voltar de Papua-Nova Guiné após a inauguração da segunda instituição de ensino. Mais de cem matrículas haviam sido feitas em apenas uma semana! As duas escolas são cristãs e gratuitas em vilarejos em que todas as demais cobram mensalidade.

O que eu e você não imaginamos é que esse aposentado que torna a educação formal mais acessível a outros não pôde completar seus próprios estudos. Dennis passou os dez primeiros anos de sua vida em um hospital após ter contraído encefalite. “Meus pais vinham me visitar parecendo apicultores, porque não podiam me tocar por causa do risco de infecção”, relembra. Não conseguia caminhar nem falar. “Durante uma década, fiquei olhando para cima, e nunca parei de olhar para o alto desde então.”

O milagre da recuperação foi sucedido pela tragédia. Quando voltava da escola, foi sequestrado, abusado e largado no mato para morrer. “Você se lembra?”, perguntei. “Infelizmente, sim. Não há como esquecer aquele horror.”

E, como um conto de desventuras em série na crua realidade, Dennis teve a vida por um fio pela terceira vez quando, ao caminhar na chuva, escorregou com uma garrafa de vidro. “Cortei-me e tive que ser ressuscitado por paramédicos. Meu pai só conseguiu me contar isso anos depois.”

A cicatriz dessa vez é física. Dennis mostra-me a mão e, para minha surpresa, somente agora reparo na sua sequela: ele não consegue estendê-la. E é exatamente essa mão que Deus tem usado para compartilhar alimento, amor e sua Palavra a milhares de vidas. “Para Deus, o que importa não é sua habilidade, é sua disponibilidade”, Dennis sorri. “Eu poderia ser amargo, mas escolhi ser melhor”, conclui o filantropo, que enxerga num coração inclinado para o serviço a atitude humilde que agrada ao Céu.

MARIANA VENTURI é jornalista e mora na Austrália, onde cursa o mestrado em Ciências Sociais e Jornalismo na Universidade de Sydney

(Perfil publicado na edição de abril de 2017 da Revista Adventista)