A perda de liberdade experimentada em tempos de emergência como o que a humanidade está vivendo é um pálido vislumbre do que virá pela frente
YURI SCMITKE ALMEIDA BELCHIOR TISI
Estamos vivendo momentos tenebrosos, em virtude da pandemia do novo coronavírus. O mundo certamente não será o mesmo, e líderes oportunistas poderão mudar o status quo nestes tempos de crise. Ainda não é possível dimensionar exatamente as consequências de ordem sanitária e econômica que sobrevirão, mas é certo que cada vez mais haverá restrições quanto à liberdade religiosa.
Com a redução e controle da pandemia, leis e decretos ainda poderão perdurar e outros poderão vir a ser editados, com vistas à prevenção desta e de outras pandemias que podem vir a se espalhar. Mediante argumentos para o enfrentamento da crise, medidas drásticas podem ser tomadas, como designação de apenas um dia para encontros religiosos, ou mesmo o estabelecimento de uma autoridade mundial com poderes para editar regras e julgar (jurisdição internacional), ferindo a soberania das nações (jurisdição interna) hoje existente.
Um exemplo disso é a “Lei Patriótica” dos Estados Unidos, editada após o atentado de 11 de setembro de 2001 nas Torres Gêmeas, em Nova York, com o objetivo de conter futuros atentados terroristas. Sob o pretexto de que alguém esteja envolvido em um ato terrorista, a legislação dos EUA permite prender alguém sem um inquérito instaurado. Se o suspeito for estrangeiro, ele pode ser mantido em reclusão por 90 dias. Além disso, o sigilo bancário e de dados pode ser quebrado sem ordem judicial, em qualquer parte do mundo. Veja, por exemplo, os escândalos de quebra de sigilo de dados pessoais pelas agências de inteligência americanas em diversos países e os casos de muçulmanos acusados de terrorismo que foram submetidos a julgamento e prisão internacional, como ocorreu em Guantánamo, Cuba, sem direito de defesa como ocorreria em situações normais.
O estudo da liberdade religiosa destaca-se como um tema de grande relevância, especialmente para os tempos difíceis em que estamos vivendo. Sob a perspectiva adventista escatológica, a interpretação das profecias assume papel relevante para nos posicionarmos no tempo e sabermos de onde viemos, onde estamos e para onde iremos. Deus, na sua infinita sabedoria, relevou aos seus servos o que haveria de vir desde os tempos antigos (Dn 2:28).
A liberdade religiosa pode ser definida como o direito que cada um tem de praticar ou expressar livremente uma religião ou convicção, segundo os ditames de sua própria consciência. É uma questão de foro íntimo, inerente ao próprio conceito de dignidade, que hoje assume como princípio supremo da constituição de um Estado Democrático de Direito.
A liberdade religiosa garante o direito de consciência, crença, culto e evangelização, assim como o direito de não crer. Ao permitir o amplo e irrestrito exercício da liberdade de crença, garante-se a plena concretização da dignidade humana, valor máximo inerente ao exercício de todos os valores individuais e coletivos. Segundo Günter Dürig, “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda” (A eficácia dos direitos fundamentais, 9ª ed [Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008]).
Por sua vez, o Estado laico é o grande pressuposto para o exercício da liberdade religiosa. Conceitua-se como a separação absoluta, mas sem que haja inimizade entre a Igreja e o Estado. Em vez disso, pressupõe a cooperação recíproca entre Estado e Igreja para que se concretize o exercício pleno da liberdade religiosa. O Estado pode empregar recursos para que a Igreja promova o bem comum e social, da mesma forma que Igreja pode apoiar e financiar atividades do Estado para a realização dos valores sociais e democráticos. No entanto, é vedado à igreja nomear os líderes do Estado, e vice-versa, assim como estabelecer regras de conduta reciprocamente. Estado laico também não se confunde com “Estado ateu”. O conceito de laicidade defende que haja harmonia entre o exercício de todas as crenças e as atividades públicas de interesse social inerentes.
O primeiro registro que se tem do termo “liberdade religiosa” é de Tertuliano, cidadão romano que viveu entre 160 e 220 d.C. Para ele, “a religião exige, por si só, a recusa a todo tipo de repressão em termos de religião”. Em 13 de junho de 313, o imperador romano Constantino promulgou o Édito de Milão, estabelecendo que o Império Romano seria neutro em relação à religião e que cada um poderia ter o privilégio de escolher e adorar qualquer divindade que lhe agradasse. Surge, então, o primeiro conceito jurídico de liberdade religiosa e Estado laico. No entanto, 12 anos depois, por meio do Concílio de Nicéia, a Igreja começou a perseguir todos aqueles que ousavam discordar dos seus dogmas (John Graz, Discussões Sobre Fé e Liberdade [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009]).
A partir da Reforma Protestante e da ênfase no estudo da Bíblia Sagrada, tiveram início diversos movimentos pela busca da liberdade religiosa. Com a Revolução Americana de 1776, foi editada a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, fundamentada no direito ao exercício da liberdade religiosa e na separação entre Igreja e Estado (Estado laico). Esse documento influenciou diversas constituições democráticas a adotarem medidas semelhantes.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia também teve um papel embrionário sobre a liberdade religiosa em termos mundiais. As primeiras declarações foram proclamadas em 1850, antes da organização formal da denominação, em 1863. Com a proposta de lei do senador americano Henry Blair (1888), que pretendia definir o domingo como dia de guarda (blue law) e, assim, punir todos aqueles que trabalhassem neste dia, teve início entre os adventistas um grande movimento para impedir a aprovação de legislações contrárias à liberdade religiosa. O pastor Alonzo Trévier Jones (1850-1923) foi designado representante dos adventistas para defender a liberdade de crença perante o Senado americano. Sua notável defesa desse direito fundamental levou ao arquivamento do projeto de Lei (Alonzo T. Jones, A Lei Dominical Nacional [Oregon: Adventist Pioneer Library, 1889]).
Em 1892, alguns adventistas chegaram a ser presos por trabalharem no primeiro dia da semana no Estado do Tennessee. Porém, tais leis dominicais regionalizadas foram, evidentemente, revogadas e não mais subsistem nos Estados Unidos. Como resultado dessas ações, a sede mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia criou uma comissão sobre liberdade religiosa, que, em 21 de julho de 1889, foi absorvida pela Associação Nacional de Liberdade Religiosa, órgão que, mais tarde, se tornou o que hoje conhecemos como Associação Internacional de Liberdade Religiosa (IRLA, na sigla em inglês.
Em 1889, foi promulgada a Declaração de Princípios da Associação Nacional de Liberdade Religiosa nos Estados Unidos. Sua principal premissa consistia no seguinte: “Acreditamos em apoiar o governo civil, e submeter-nos à sua autoridade. Negamos o direito de qualquer governo civil legislar sobre questões religiosas. Acreditamos que é o direito, e deve ser o privilégio de cada homem adorar de acordo com os ditames de sua própria consciência. Também acreditamos ser nossa responsabilidade usar todos os meios legais e honoráveis de evitar a legislação pelo governo civil”. Tais princípios foram depois incorporados ao estatuto da IRLA, que, em 1948, passou a admitir pessoas de outras religiões no seu quadro de associados.
Conforme o doutor John Graz, ex-presidente da entidade, comenta em seu livro, Eleanor Roosevelt e René Cassino, membros proeminentes da IRLA, influenciaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento histórico proclamado na Assembleia Geral da ONU) em 1948 e que até hoje é considerado um marco para a sedimentação da liberdade religiosa nas constituições das nações democráticas em todo o mundo. Em seu Artigo XVIII se lê: “Todo ser humano tem direito a? liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”.
Em 1981, a ONU editou a “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções”. O art. 6º, alínea “h”, estabelece a liberdade de “[…] observar dias de descanso e de comemorar festividades e cerimônias de acordo com os preceitos de uma religião ou convicção”. É, portanto, um texto relevante para aqueles que dedicam um dia exclusivo para o descanso religioso, como os adventistas do sétimo dia.
A guarda do sábado tem sido um grande desafio para os adventistas do sétimo dia, especialmente por se tratar de um grupo minoritário que não ocupa espaços relevantes nos cargos governamentais. Depois de anos de debates e esforços, foi sancionada a Lei 13.796/2019, que garante a todos os estudante de instituições de ensino não militares o direito à prestação alternativa (saiba mais clicando aqui). Contudo, ainda é necessário avançar para a concretização desse direito na esfera trabalhista, objetivo proposto pelo Projeto de Lei 3.346/2019, que tramita na Câmara dos Deputados.
Apesar de todos esses esforços, sabemos que virão tempos difíceis em que a liberdade religiosa será tolhida daqueles que creem que o sábado é o selo de Deus (Ez 20:20 e Isaías 8:16), o memorial da criação (Gn 2:3), e o dia estabelecido e santificado por Deus (Êx 20:12). O sábado não é uma tradição temporal, mas sim um mandamento perpétuo (Êx 20:8-11), parte da lei imutável, escrita pelo dedo de Deus. O próprio Jesus disse que não a veio a esta terra para mudar a lei (Mt 5:17-19). Tampouco, como disse o apóstolo Paulo, devemos anulá-la pela fé (Rm 3:31), como muitos ensinam.
A guarda do sábado será, em breve, um ponto de fidelidade entre o povo de Deus e os que receberão a marca da besta (Ap 13:16-18). Sendo o sábado o selo do Deus vivo, o domingo será a marca daqueles que desobedecem aos Seus preceitos. E chegará um tempo em que o inimigo das almas irá batalhar e buscar a morte de todos aqueles que não adorarem a besta e a sua imagem (Ap 13:15).
Mas o povo de Deus, os que guardam os Seus mandamentos e têm o testemunho de Jesus (Ap 12:7 e 14:12), que é o Espírito de profecia (Ap 19:10), serão salvos nesse contexto profético. “Nesse tempo, se levantará Miguel [Jesus], o grande príncipe, o defensor dos filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas,naquele tempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro” (Dn 12:1).
Esse tempo de angústia é justamente o período da história em que a liberdade religiosa será retirada por meio de decretos-leis que serão promulgados em diversos países, começando com os Estados Unidos, nação representada pela segunda besta que emerge da terra (Ap 13:11). Amparada pela Bíblia, Ellen White declarou o seguinte: “Quando as principais igrejas dos Estados Unidos, ligando-se em pontos de doutrinas que lhes são comuns, influenciarem o Estado para que imponha seus decretos e lhes apoie as instituições, a América protestante terá então formado uma imagem da hierarquia romana, e a aplicação de penas civis aos dissidentes será o resultado inevitável” (Eventos Finais [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1992], p. 131).
Em outra de suas obras, a escritora norte-americana adverte que “o trabalho que a igreja tem deixado de fazer em tempo de paz e prosperidade terá de realizar em terrível crise, sob as circunstâncias mais desanimadoras e difíceis” e que “as advertências que a conformidade com o mundo tem silenciado ou retido, precisam ser dadas sob a mais feroz oposição dos inimigos da fé” (Testemunhos Seletos, v. 2 [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira], 164. Nos parágrafos seguintes, ela também faz uma severa advertência aos que negligenciarem essa obra em tempos mais oportunos. “Os membros da igreja serão individualmente provados. Serão colocados em circunstâncias em que se verão forçados a dar testemunho da verdade. Muitos serão chamados a falar diante de concílios e em tribunais de justiça, talvez separadamente e sozinhos. A experiência que os haveria ajudado nessa emergência, negligenciaram obter, e sua alma se acha opressa de remorsos pelas oportunidades desperdiçadas e os privilégios que negligenciaram” (p. 165).
Vivemos hoje tempos desafiadores em que se torna necessário estudar mais as profecias, especialmente aquelas que detalham o tempo do fim. Não chegamos ainda no “tempo de angústia”, mas podemos vislumbrar claramente o “princípio das dores” (Mt 24:8, Mc 13:8), em que fomes, pestes, terremotos, guerras e rumores de guerras irão aumentar cada vez mais.
Esse é o tempo em que a maioria dos cristãos está seguindo e sendo enganada por falsos profetas (Mt 24:11), seguindo doutrinas que são preceitos de homens (Mt 15:9, Mc 7:7). Esse é o tempo em que aqueles que guardam os mandamentos de Deus e têm o Espírito de Profecia devem proclamar em alta voz as três mensagens angélicas (Ap 14:6-11).
YURI SCMITKE ALMEIDA BELCHIOR TISI, advogado e mestre em Direito e Políticas Públicas, é membro da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE)
Última atualização em 1 de maio de 2020 por Márcio Tonetti.