Conheça a história de um pioneiro do ministério dos surdos no contexto adventista brasileiro
André Barbosa de Oliveira
O mundo de Vivaldo Rodrigues Mesquita foi silencioso desde que ele nasceu, em 16 de maio de 1940, na cidade de Quintana, interior de São Paulo. Filho de Nerina Rodrigues Mesquita e José Mesquita Netto, aos seis anos de idade sua mãe e sua avó descobriram o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro, e decidiram levá-lo para lá.
Esse foi um momento marcante na vida dele. Ao ser deixado pela avó no instituto, ele chorou e gritou muito, querendo voltar para os braços da mãe, que havia ficado em Quintana. Sem dominar a língua dos sinais nem saber ao certo que lugar era aquele, ficou angustiado por não entender o que estava acontecendo. Aos prantos, foi levado para o dormitório. Cansado de tanto chorar, Vivaldo se sentou na cadeira em frente a uma mesa e, depois de algum tempo, adormeceu. Tempos depois, alguém o acordou. Assustado, ele foi conduzido ao refeitório. Depois de ter se alimentado, fez um passeio interno pelo instituto para conhecer as dependências da escola. Olhava os estudantes surdos se comunicando por meio de sinais, mas não entendia nada.
Vivaldo tinha a mania de morder a palma da mão direita logo abaixo do polegar. Esse, aliás, logo se tornou o sinal pelo qual ele passaria a ser identificado na comunidade surda. Entre tantas coisas que ele viveu no INES, algumas ficaram gravadas na sua memória. Em uma entrevista concedida em 2017, Vivaldo contou, por exemplo, que a professora responsável por cuidar dele decidiu ajudá-lo a ler e escrever a língua portuguesa. Assim, ele foi treinando sua coordenação motora para depois iniciar a escrita. Essa professora o tratava muito bem, acompanhava seus estudos e o levava para a sua casa, em Petrópolis, nos fins de semana.
Foi nesse instituto que Vivaldo aprendeu Libras (Língua Brasileira de Sinais), o que lhe permitiu se expressar, conversar, fazer amigos, interagir com as pessoas e aprender a ler e escrever.
Outro fato marcante aconteceu quando ele tinha 9 anos. No dia 26 de setembro de 1949, o então presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, esteve na festa de aniversário do INES. Na ocasião, Vivaldo e outros colegas seguraram uma faixa no salão nobre na presença do presidente.
Em algum momento daquele dia, Vivaldo fez uma demonstração de sua habilidade em “caminhar” com as mãos (a famosa brincadeira conhecida como “plantar bananeira”). Vivaldo lembra que percorreu um trecho se equilibrando em ambas as mãos, enquanto todos o observavam, inclusive o presidente da República. Após sua apresentação, foi recebido com um abraço pelo diretor do INES, Antônio Carlos de Mello Barreto, e aplaudido pelos estudantes. O presidente Dutra o cumprimentou, dando-lhe os parabéns pela sua apresentação. E, ao fim da visita, cumprimentou os estudantes um por um, com um aperto de mão.
Assim, Vivaldo Mesquita foi se adaptando e convivendo com seus semelhantes. Aprendeu a língua de sinais, bem como a ler e escrever a língua portuguesa. Quando tinha por volta de 10 anos, também começou a se destacar nas aulas de educação física por sua habilidade no futebol. Escolhido para compor o time da escola, passou a ter um bom desempenho e ser admirado pelos colegas. Aos 14 anos, era famoso como goleiro da equipe que representava o instituto.
O tempo passou e, em 1956, Vivaldo deixou o INES. Voltou a morar no interior de São Paulo com a família. Cerca de dois anos depois, Vivaldo e sua família mudaram para a capital paulista. Com 19 anos de idade, ele fez sua carteira de trabalho e, em 1963, foi registrado no primeiro emprego, como auxiliar de serviços gerais numa indústria de eletrônicos.
CONTATO COM A IGREJA
De família católica, Vivaldo teve seu primeiro contato com a Igreja Adventista quando tinha 26 anos. Quem lhe apresentou a mensagem adventista foi Luiz Melito, surdo que frequentava a Igreja Central Paulistana. Tornaram-se grandes amigos. Inicialmente, Luiz apresentou a Vivaldo um livro com imagens e textos escritos em português. O jovem gostou do material ilustrado, pois falava de Jesus e sobre os 10 mandamentos. Especialmente a mensagem do sábado era uma novidade para ele.
Vivaldo passou a frequentar a igreja aos sábados. Lá ele e Luiz também participavam de um estudo bíblico que reunia outras pessoas. Como dominava tanto Libras quanto português, Vivaldo atuava como intérprete durante os sermões, transmitindo as passagens bíblicas para o amigo. Com a ajuda de um retroprojetor, os dois também ministravam estudos bíblicos a pessoas que não eram surdas. Ao mesmo tempo que ensinavam, também aprendiam. Assim, Vivaldo foi sendo evangelizado enquanto estava evangelizando.
Certo dia, quando o estudo terminou, foram almoçar em um restaurante vegetariano. Influenciado pelo colega, Vivaldo decidiu se tornar vegetariano e permaneceu assim até o fim da vida.
Vivaldo sempre fez questão de dizer que seu batismo, realizado no dia 24 de dezembro de 1967, foi resultado do esforço do amigo. Ao evangelizar outro surdo, Luiz Melito estava inaugurando esse ministério no contexto adventista brasileiro.
Luiz e Vivaldo passaram a procurar outros surdos e surdas para evangelizar. Costumavam visitar a Associação de Surdos de São Paulo (ASSP), que ficava na Rua São Joaquim, e lá convidavam pessoas para ir à igreja. Sempre que encontravam surdos em outros lugares também estendiam o convite. Alguns aceitavam e se juntavam ao grupo para estudar a Bíblia.
Essa dupla missionária iniciou um trabalho que, anos mais tarde, se tornou o Ministério Adventista dos Surdos (MAS), hoje vinculado ao Ministério das Possibilidades. Na década de 1970, por dois anos o grupo foi liderado por Antony Caloroso, surdo que veio dos Estados Unidos para o Brasil com o objetivo de evangelizar outros surdos. Porém, em 1979 a lista dos brasileiros que ajudavam nesse ministério já era longa. O grupo estava crescendo, ganhando visibilidade e despertando o interesse das pessoas.
Apesar disso, nessa época o grupo de surdos da Igreja Central Paulistana estudava a Lição da Escola Sabatina num lugar à parte (a sala pastoral) e foi só a partir de 1985 que o culto local passou a ser interpretado em Libras.
EVANGELISMO
O evangelismo entre os surdos não segue, evidentemente, o mesmo modelo nem o mesmo ritmo do evangelismo voltado para o público ouvinte. As pessoas surdas ordenam o mundo através da visão. Assim, os recursos utilizados na época prolongavam ainda mais o tempo de estudo e as decisões ao batismo. Por isso, o trabalho que iniciou no ano 1970 teve os primeiros frutos colhidos somente uma década mais tarde.
Em 1982, a Revista Adventista publicou uma matéria sobre a origem e o funcionamento do grupo. Essa reportagem se espalhou pelo Brasil, o que motivou outros a criar Grupos de Surdos em suas igrejas.
A trajetória de Vivaldo entrou para a história do Ministério Adventista dos Surdos. Seu esforço em ajudar outros surdos a ter uma vida saudável e com esperança é lembrado até hoje
Nesse período, Luiz Melito e Vivaldo continuavam trabalhando para expandir o evangelismo entre os surdos, o que incluía estudos bíblicos e programas voltados para essa comunidade, como visitas a instituições da igreja. Certa vez, o grupo fez um passeio pela Casa Publicadora Brasileira, em Santo André, e pelo Instituto Adventista de Ensino (atual Unasp, campus São Paulo). Além disso, realizavam programas no sábado à tarde em algumas igrejas adventistas. Foi em uma dessas congregações que, em 1986, Luiz Melito e Vivaldo conheceram Paulo Rodrigues de Siqueira, surdo que morava em Hortolândia (SP).
Paulo passou a frequentar a Igreja Central Paulistana, pois queria aprender sobre a Bíblia. Como resultado do trabalho da dupla missionária e do contato com os recursos que a igreja local oferecia, em 1988 nasceu um ministério dos surdos também em Hortolândia.
CONTEXTO FAVORÁVEL
Nos anos 1990, já existiam algumas publicações de dicionários de Libras e pesquisas sobre surdez e língua de sinais no Brasil. Isso promovia os ministérios de surdos de outras denominações religiosas, como mostra o livro intitulado Cultura Surda: Agentes Religiosos e a Construção de Uma Identidade, de César Augusto de Assis Silva (Terceiro Nome, 2012).
Esse cenário contribuiu para que os adventistas organizassem novos grupos de surdos e a presença de intérpretes nos cultos se tornasse mais frequente em alguns templos adventistas. Encontros também começaram a ser promovidos, dando mais visibilidade e unidade para esse ministério.
NOVA FASE
Ao longo da vida, Vivaldo apoiou vários desses grupos que estavam surgindo. Em meados de 1993, por exemplo, ele passou a visitar a comunidade surda da Igreja Adventista da Vila Galvão, em Guarulhos (SP). Esse grupo tinha sido criado por um casal de surdos que havia frequentado a Igreja Central Paulistana. Na comunidade onde passaram a congregar, eles ensinavam a língua de sinais para alguns ouvintes que os auxiliavam na interpretação durante os cultos. Nesse novo espaço, Vivaldo iniciou uma nova fase do seu ministério.
Em 1993, quando esse grupo foi convidado para conduzir um culto na Igreja do Jardim Irene, em Guarulhos, num sábado à tarde, teve início um projeto que seria fundamental para o Ministério Adventista dos Surdos: o grupo “Mãos em Louvor”. Com o auxílio da intérprete/regente, Doralice, o conjunto musical sinalizava a letra das músicas. Essa foi uma inovação para o ministério e o trabalho com os surdos na IASD e algumas práticas servem de base até os dias de hoje. A partir de então, Vivaldo descobriu que poderia evangelizar não só os surdos, mas também os ouvintes por meio de mensagens musicais interpretadas em Libras.
O ministério “Mãos em Louvor” tinha uniforme, organização e alegria; promovia passeios e estudava a Bíblia; evangelizava outros surdos e despertava a empatia nos ouvintes. Para Vivaldo, especialmente depois da perda do amigo Luiz Melito, em 1996, o grupo “Mãos em Louvor” foi uma família que lhe deu amparo, amor e oportunidade de expressar sua fé em Jesus.
Entre 1993 e 2000, Vivaldo participou de diversos eventos, tendo se apresentado não apenas em congressos de surdos, mas também em assembleias da igreja, concílios pastorais, encontros de educação e programas de TV.
Grupo “Mãos em Louvor”, na década de 1990. Foto: Acervo pesssoal Grupo sinalizava a letra das músicas, o que, na é´poca, representou uma inovação no trabalho do ministério adventista dos surdos. Foto: Acervo pessoal O grupo “Sinais da Liberdade”, da Igreja Central Paulistana, nasceu com uma proposta semelhante à do conjunto “Mãos em Louvor”. Foto: Acervo Pessoal
Esse período foi mais um momento importante na vida dele. Certa vez, em conversa com uma integrante do “Mãos em Louvor”, ele assegurou: “Essa foi a melhor época da minha vida”. Por essas palavras, podemos ter uma ideia da dimensão que o projeto alcançou no Brasil. Surgiram novos grupos em São Paulo, Maranhão, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Bahia.
No começo dos anos 2000, o grupo “Mãos em Louvor” passou por algumas mudanças e a rotina de saídas foi diminuindo. Vivaldo, que já estava com 60 anos, resolveu retornar para a Igreja Central Paulistana, próxima de sua residência. Nesse período, a congregação contava com o grupo “Sinais da Liberdade” (antes chamado de Efatá), cuja proposta era semelhante à do “Mãos em Louvor”, e no qual Vivaldo esteve envolvido até 2012.
Depois, ele foi para a Igreja do Lauzane Paulista, na zona norte da capital. Jovens surdos interagiam com Vivaldo, que aproveitava para compartilhar suas experiências e ensinar os preceitos da Bíblia. Ele foi muito bem recebido pelos membros em geral e pela juventude surda. Nessa igreja, Vivaldo teve a oportunidade de comemorar seu 72º aniversário e participar de encontros com outros grupos.
FATO MARCANTE
Em 2015, Vivaldo pôde ver o primeiro pastor adventista surdo, Douglas Silva, iniciar seu ministério na Associação Paulistana. Querendo estar perto para apoiá-lo, pediu transferência novamente para a Igreja Central Paulistana, onde o pastor Douglas Silva organizou o núcleo de membros para começar o projeto de uma igreja de surdos, em 2013.
Vivaldo sempre gostou de fazer parte das inovações e mudanças que ocorriam no Ministério dos Surdos e ele não queria ficar distante desse momento tão singular para os surdos adventistas no Brasil. Afinal, era um sonho que havia sido cultivado tanto por ele quanto por seu amigo, Luiz Melito.
Com seu exemplo, Vivaldo Rodrigues Mesquita sinalizou o amor de Jesus
Em 2016, ao lado do pastor Douglas e de vários outros surdos, Vivaldo participou de uma encenação para mais de 100 integrantes da comunidade surda. Na peça intitulada A Verdade, que falava sobre a mensagem do sábado e da volta de Jesus, ele interpretou um pregador norte-americano que tornou a mensagem do advento acessível a uma mulher surda nos primórdios do adventismo.
Em 2015, o paulista participou do seu último congresso em Brasília, onde pode ver o número expressivo de surdos que integravam o ministério que ele ajudou a estabelecer.
Vivaldo Rodrigues Mesquita faleceu no dia 26 de agosto de 2021, aos 81 anos, em São Paulo, de morte súbita. Era membro do Espaço Comunidade Surda, igreja da capital paulista liderada por surdos.
Sua vida é como uma biblioteca: a cada página que se abre existe muitas histórias para se contar. Vivaldo sabia na pele o que era a ausência de afeto e de comunicação por ser surdo em um mundo de ouvintes. Mesmo assim, persistiu em anunciar sua maior esperança. “Sigam sempre firmes até a volta de Jesus”, era o que ele sempre nos dizia.
VEJA OUTRA IMAGENS
Estudos bíblicos ministrados na sala pastoral da Igreja Central Paulistana com a ajuda de um retroprojetor. Foto: Acervo Pessoal Encontro nacional do ministério dos surdos adventistas realizado no Unasp, campus São Paulo, em 1996. Foto: Acervo pessoal Formatura do primeiro pastor adventista surdo no Brasil, na Faculdade Adventista da Amazônia. Foto: Acervo da Faama Cerimômia de Santa Ceia durante o último congressso de surdos do qual Vivaldo Mesquita participou, em 2015, na capital federal. Foto: Acervo Pessoal Sinal pelo qual Vivaldo foi identificado na comunidade surda desde sua passagem pelo INES, no Rio de Janeiro. Foto: Acervo pessoal
SAIBA +
O Ministério Adventista dos Surdos foi oficializado pela Igreja Adventista em 2008. Porém, o surgimento desse trabalho no Brasil se deu na Igreja Central Paulistana, no fim da década de 1960, tendo como pioneiros os surdos Luiz Melito e Vivaldo Rodrigues Mesquita e o ouvinte Paulo Moreira, que os auxiliava. O grupo de surdos que lá surgiu foi referência para outras igrejas ao redor do país. A partir de 1980, surdos e intérpretes organizaram, voluntariamente, e com o apoio da liderança local, encontros, congressos, palestras, programas e ministérios. Desde 2008, esse trabalho passou a ser orientado pela Divisão Sul-Americana.
ANDRÉ BARBOSA DE OLIVEIRA é intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) na Associação Paulistana da Igreja Adventista
LEIA TAMBÉM
Última atualização em 24 de setembro de 2021 por Márcio Tonetti.